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COMISSÃO DA OAB-SP NOS ENVERGONHA AO DAR APOIO A DESEMBARGADOR

Na tarde desta terça-feira (21/7), a advocacia brasileira foi envergonhada com a nota de apoio da Comissão de Direito dos Refugiados e Migrantes da OAB-SP, da subseção de Santo André, em favor do desembargador que humilhou guardas municipais valendo-se do seu cargo. A referida nota foi assinada pelo presidente da referida comissão, o advogado Alberto Carlos Dias.

Mas ó, bom deus! O que é isso? Que nome damos a esse fenômeno que se alastrou pelo direito, em que muitos advogados adoram adular juízes e desembargadores que têm atitudes autoritárias? Que vício é esse ou, como diria Étienne De La Boétie: "Que infeliz vício é esse?".

O mais incrível é que nem a magistratura (ao menos externamente — sabemos bem) manifestou "solidariedade" ao desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha Siqueira. Claro: não dava pra apoiar (publicamente) a prática de abuso de autoridade, nos termos do artigo 33, parágrafo único, da Lei 13.869, que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade.

Fico a imaginar a decepção de Luiz Gama, Sobral Pinto, Esperança Garcia e tantos outros lendo a nota de solidariedade do advogado Alberto Carlos Dias em favor do desembargador Eduardo Siqueira.

Aliás, o mais surpreendente, talvez, seja o trecho em que o advogado Alberto Carlos Dias afirma, na nota, que a atitude do desembargador — de telefonar ao superior do guarda municipal para tentar dar um jeitinho de solucionar a questão — "apresentou o condão em resolver o conflito de maneira efetiva e legal, afinal quem não preza pela celeridade processual?".

Devo confessar que tal argumento entristece, entre outras coisas, porque demonstra o nível da advocacia brasileira. Numa palavra: falhamos! Citou a celeridade processual para defender uma das heranças mais tristes que — enquanto brasileiros — envergonha-nos. Eis um retrato fiel do nível do ensino jurídico de nosso país.

É de se perguntar, então, ao ver alguns advogados elogiando a postura deste desembargador — mesmo com pescoço a jugo, pois não tardará a chegada do dia em que terão um de seus clientes julgado por pessoas como ele —, por que se prestam a defender juízes e desembargadores que descumprem a lei e menosprezam advogados, a exemplo daqueles que apoiavam Sérgio Moro à época em que este era juiz?

Há várias respostas. Para fins deste texto, interessam-me apenas duas. A primeira delas nos é dada por Étienne De La Boétie: a servidão voluntária, isto é: "o segredo, a força da dominação consiste no desejo — em cada um, seja qual for o escalão que ocupe na hierarquia — de identificar-se com o tirano, tornando-se o senhor de um outro" [1]  [2] (Jacinto Coutinho).

Dizendo de outra maneira: o oprimido aceita ser oprimido porque espera oprimir; daí ele gozar com o opressor porque sonha em ocupar um posto no qual possa, de algum modo, oprimir também. Em suma: servem ao tirano porque são tiranetes.

Cria-se, assim, uma rede de interesses que a torna muito mais complexa do que a polarização opressor/oprimido [3]"A tirania atravessa a sociedade de ponta a ponta" [4]. Por isso, a servidão é escolha e, naturalmente, escolha voluntária.

Por isso, o advogado que busca o respeito de um juiz pela bajulação — e não pela leitura de livros e a prática da advocacia estratégica e combativa — outra coisa não faz se não jogar para escanteio a sua dignidade, contribuindo para a sua humilhação e, consequentemente, a total destruição do direito.

Agora, por fim, apresento-lhes a resposta à segunda pergunta, qual seja — por que advogados aplaudem juízes autoritários que desrespeitam direitos fundamentais? Ora, a resposta é simples: ignorância. Pois, tendo aberto poucos livros durante toda a sua vida, não percebem o mal que há em desconsiderar a Constituição e o direito. Por isso tem razão Éttiene De La Boétieu quando afirma que "não sentimos falta daquilo que nunca tivemos" [5].

Eis por que tenho dito: advogado que se preze é como o fogo, não sobrevive sem lenha. Sua lenha são os livros. Por isso, ao retirar-lhe os livros, ele não tem mais o que consumir e consome a si mesmo, perdendo a força, deixando de ser fogo e, também, advogado.

Só isso justifica uma nota de solidariedade assinada por um advogado em favor de um desembargador que agiu daquela maneira. A propósito, quem sonha em exercer a mais belas das profissões, ponha os olhos neste fato e vede, nessa cena, como jamais um advogado deve se portar.

Afinal: por estarem mais preocupados em agradar os juízes do que defender o direito e a Constituição, os que assim agem abrem mão do exercício da defesa e, por conseguinte, deixaram de ser advogados — se é que um dia o foram.

Por fim, Sobre o argumento jurídico utilizado pelo desembargador, para além da discussão quanto à correção ou não de sua exposição, penso que o exemplo serve — e, por isso utilizarei aos meus alunos e alunas — para demonstrar por que (jamais) devemos estudar (somente) o Direito. Isso porque, como bem percebeu meu amigo e grande jurista Paulo Ferrarese, quando pediram aos londrinos para que apagassem as luzes à noite, durante a 2ª Guerra Mundial, com o intuito de dificultar os bombardeios do inimigo, nenhum londrino pensou em deixar as luzes acesas, mesmo a lei assegurando a eles o direito de deixar as luzes acesas; e simplesmente não exerceram o seu direito porque o exercício deste direito colocaria todos em risco.

 

[1] DE LA BOÉTIE, Etienne. Discurso da Servidão voluntária. Trad. Evelyn Tesche. Introdução: Paul Bonnefon. Edipro, 2017. p. 94 e COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Direito e Psicanálise. Interlocuções a partir da Literatura. Florianópolis. Empório do Direito, 2016, p. 94

[2] DE LA BOÉTIE, Etienne. Discurso da Servidão voluntária. Trad. Evelyn Tesche. Introdução: Paul Bonnefon. Edipro, 2017. p. 94.

[3] KARNAL, Leandro. Prefácio. In: DE LA BOÉTIE, Etienne. Discurso da Servidão voluntária. Trad. Evelyn Tesche. Introdução: Paul Bonnefon. Edipro, 2017. p. 12.

[4] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Direito e Psicanálise. Interlocuções a partir da Literatura. Florianópolis. Empório do Direito, 2016, p. 94.

[5] DE LA BOÉTIE, Etienne. Discurso da Servidão voluntária. Trad. Evelyn Tesche. Introdução: Paul Bonnefon. Edipro, 2017. p. 54.