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ARTIGO 16 DA LEI DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA: A NECESSIDADE DE RESPEITO AO LEGISLADOR

No próximo dia 25, voltará à pauta de julgamentos do Plenário do Supremo Tribunal Federal o Recurso Extraordinário 1.101.937/SP, com repercussão geral reconhecida, em que se analisará a constitucionalidade do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, com a redação dada pela Lei nº 9.494/97.

A controvérsia sobre o tema data de mais de duas décadas de intensos debates e reviravoltas na posição dos tribunais. O STJ reafirmou, por mais de uma década, a legalidade da restrição trazida pelo artigo 16, mas, em 2011, alterou radicalmente o entendimento até então adotado para afastar a limitação territorial dos efeitos da sentença: afirmou-se que a natureza do dano é que deveria ditar o alcance subjetivo da decisão.

O próprio STF teve a oportunidade de se debruçar sobre o tema, porém de maneira mais sumária. Ao apreciar pedido liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.576-1/DF, de que foi relator o ministro Marco Aurélio, foi indeferido o pedido de suspensão dos efeitos do dispositivo. Mais tarde, os autos foram baixados sem conhecimento do pedido. Logo depois, em 2017, reconheceu-se a repercussão geral da questão relativa à extensão dos efeitos da sentença proferida em ação coletiva ordinária proposta por entidade associativa de caráter civil, no Recurso Extraordinário nº 612.043/PR. Naquela oportunidade, decidiu-se que os beneficiários do título executivo, no caso de ação proposta por associação, são aqueles que, residentes na área compreendida na jurisdição do órgão julgador, detinham, antes do ajuizamento, a condição de filiados e constaram da lista apresentada com a peça inicial. Embora se tratasse de questão diversa, há importante ponto de identificação: o artigo 2-A da Lei 9.494/97 estabelecia restrição territorial à eficácia subjetiva da coisa julgada, que foi considerada constitucional por maioria de votos.

No recurso extraordinário que vai a julgamento nos próximos dias, o relator, ministro Alexandre de Moraes, bem registrou a importância da discussão "em jogo, a correta compreensão e a legitimidade dos limites da (e à) coisa julgada e a eficácia das diferentes formas de tutela coletiva".

Estamos, agora, diante do que deverá ser o último capítulo dessa história, ao menos em relação à lei hoje vigente.

O artigo 16 estabelece que "a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova".

A grande discussão em torno desse dispositivo centra-se na limitação territorial dos efeitos da sentença. De um lado, estabeleceu-se que a sentença proferida em ação coletiva tem efeito erga omnes, isto é, produz efeitos para além das partes integrantes do litígio, justamente porque essa é a vocação da tutela de direitos coletivos. De outro, limitou-se essa eficácia à competência territorial do órgão prolator, por diversas razões que trataremos adiante.

A alegada inconstitucionalidade do artigo 16, portanto, estaria fundada na ideia de desrespeito à coisa julgada, constitucionalidade protegida, pois, ao se limitar a sua eficácia territorial, em alguma medida, se estaria impedindo a plena produção de efeitos. A crítica que se encontra no âmbito de respeitável doutrina também fala em violação à isonomia, diante da possibilidade de diferentes decisões nos diversos juízos em que ações coletivas forem propostas e de acesso à jurisdição, por criar dificuldades na proteção dos direitos coletivos em juízo.

O argumento relativo à violação à coisa julgada não procede. Como é assente na doutrina, a coisa julgada é a eficácia que se agrega ao decisum da sentença de mérito, de modo que seu conteúdo se torna imutável, ou pelo menos, razoavelmente estável. Limitar o espaço territorial em que isso ocorrerá não retira da decisão seu caráter de imutabilidade para todos aqueles que serão vinculados pela decisão. É um critério que obedece a normas concernentes à competência territorial e estabelece limites subjetivos para a coisa julgada.

Nessa medida, nenhuma afronta se vê ao instituto da coisa julgada e a comparação com outras situações em que existem normas restritivas, de natureza infraconstitucional, ao exercício de um direito, podem revelar. Pense-se, por exemplo, no princípio também constitucional do duplo grau de jurisdição. Ao se admitir o raciocínio de que a limitação territorial preconizada pelo artigo 16 da LACP feriria a coisa julgada, poder-se-ia afirmar, também, que quaisquer limitações quanto ao cabimento e recursos configurariam violação ao duplo grau ou de acesso ao judiciário. Em Portugal, a propósito, houve no passado amplo debate neste sentido, quando se instituiu valores de alçada para determinados recursos. E a conclusão a que a Corte Constitucional daquele país chegou foi a de que a Constituição assegurava o acesso ao Judiciário, e isso deveria ser respeitado, mas não acesso irrestrito a todos os graus de jurisdição. Ou, ainda, pensando-se na coisa julgada, esse tipo de racional permitira concluir que a ação rescisória seria inconstitucional. A questão é substancialmente a mesma: estabelecer limites ao exercício de um direito fundamental não significa desrespeitá-lo. No plano da doutrina constitucional é muita clara a percepção de que limites são inerentes à natureza das liberdades. Não há, portanto, direito fundamental absoluto, insuscetível de qualquer restrição.

Nunca ninguém afirmou que o fato de a coisa julgada ser limitada a operar efeito entre as partes, no processo civil tradicional, seria inconstitucional, apesar do risco de haver situações idênticas resolvidas de maneira contraditória. O caráter metaindividual das ações coletivas, se foi reduzido, não foi suprimido, isso porque a regra é a de que as sentenças nas ações coletivas que dizem respeito a direitos difusos e individuais homogêneos produzam coisa julgada para uma coletividade, só que restrita a determinado espaço territorial.

E, se esses limites foram estabelecidos pelo legislador, está-se diante de escolha político legislativa, que não pode ser suprimida por "inconveniências" ou por opções de caráter ideológico.

E isso se afirma porque não se desconhece que a possibilidade de virem a existir decisões conflitantes em diferentes estados e de pessoas serem beneficiadas ou não, por tais decisões, por razões circunstanciais, são, de fato, inconvenientes.

Porém, o sistema legal as admite e deve lidar com elas, no contexto permitido pelo sistema normativo, especialmente porque não se confundem com afronta à Constituição. Aliás, o resultado advindo da extirpação do limite territorial traria de volta ao sistema regra excepcionalíssima e que traz, em si, enorme risco social. A possibilidade de "escolha" do juízo para ajuizamento de ações coletivas, entre vários competentes, em clara violação ao princípio do juiz natural e, o que é mais grave, com poderes para proferir decisão capaz de produzir efeitos em âmbito nacional. Estaríamos, certamente, diante de grande retrocesso: hoje, sistematicamente, decisões vinculantes em âmbito nacional são aquelas proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal mediante ritos especialíssimos, em que se privilegia o amplo debate e a maturidade das teses jurídicas.

Esse julgamento toca em ponto tão delicado quanto frequente, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, e que envolve os sutis limites que há na separação dos poderes.

Em nosso sentir, não há como se reconhecer a inconstitucionalidade do artigo 16 da LACP sem que se enverede para o campo do ativismo judicial, em situação em que não há, minimamente, omissão a ser suprida. Houve, aqui, uma clara escolha legislativa pela limitação territorial dos efeitos da sentença, revelada na exposição de motivos da Lei 9.494/97: "Tal proposta resolve uma conhecida deficiência do processo de ação civil pública que tem dado ensejo a inúmeras distorções, permitindo que alguns juízes de primeiro grau se invistam de uma pretensa ́jurisdição nacional ́. A despeito das censuras já emitidas pelo Supremo Tribunal Federal sobre o mau uso da ação civil pública inclusive como instrumento de controle de constitucionalidade com eficácia contra todos, persistem algumas tentativas de conferir eficácia universal às decisões liminares ou às sentenças dos juízes de primeiro grau. Daí a necessidade de que se explicite, de certa forma, o óbvio, isto é, que a decisão judicial proferida na ação civil pública tem eficácia nos limites da competência territorial do órgão judicial".

Essa compreensão, aliás, foi a mesma tida pelo ministro Marco Aurélio ao apreciar a liminar na mencionada ADI nº 1.576-1/DF: "A alteração do artigo 16 ocorreu à conta da necessidade de explicitar-se a eficácia erga omnes da sentença proferida na ação civil pública. Entendo que o artigo 16 da Lei n. 7.347, de 25 de julho de 1985, harmônico com o sistema Judiciário pátrio, jungia, mesmo na redação primitiva, a coisa julgada erga omnes da sentença civil à área de atuação do órgão que viesse a prolatá- la. A alusão à eficácia erga omnes sempre esteve ligada à ultrapassagem dos limites subjetivos da ação, tendo em conta até mesmo o interesse em jugo — difuso ou coletivo — não alcançando, portanto, situações concretas, quer sob o ângulo objetivo, quer subjetivo, notadas além das fronteiras fixadoras do juízo. Por isso, tenho a mudança da redação como pedagógica, a revelar o surgimento de efeitos erga omnes na área de atuação do Juízo e, portanto, o respeito à competência geográfica delimitada pelas leis de regência. Isso não implica besvaziamento da ação civil pública nem, tampouco, ingerência indevida do Poder Executivo no Judiciário. Indefiro a liminar".

A necessidade de se respeitar a escolha legislativa para limitação territorial dos efeitos da sentença coletiva (= autocontenção), ao lado da constatação de que de tal restrição não resulta afronta à coisa julgada, à isonomia ou ao acesso ao Judiciário, é, para nós, central e insuperável no sentido da constitucionalidade do artigo 16 da LACP.