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A FISCALIZAÇÃO DAS CONDIÇÕES ERGONÔMICAS DO TELETRABALHO

No campo das relações de trabalho, entre outras derivações atual pandemia da denominada Covid-19, verificou-se um crescimento exponencial e abrupto da quantidade de teletrabalhadores, com as naturais incertezas sobre diversos aspectos jurídicos a isso relacionados.

É certo que o trabalho fora das instalações da empresa não é propriamente uma novidade e que até mesmo o labor na residência do trabalhador está previsto pela CLT desde sua edição (ver artigos 6º, na redação originária, e 83). No que pertine ao denominado "teletrabalho" especificamente, apesar de seu surgimento estar referido desde a década de 1970, não era muito comum sua utilização no Brasil, o que talvez explique seja bastante incipiente a legislação brasileira relativa ao tema, autorizando parcela da doutrina [1] a aduzir que existe uma regulamentação, mas sim uma desregulamentação sobre o tema.

A evidência da exígua legislação sobre o tema pode ser comprovada pela necessidade de o Ministério Público do Trabalho editar a Nota Técnica 17/2020, com 17 diretrizes e recomendações a tanto relacionadas, contendo, inclusive, orientações relativas ao aspecto da ergonomia.

Pretende-se, neste texto, explorar, mas não esgotar, a temática concernente à fiscalização das condições ergonômicas das atividades realizadas em teletrabalho, consideradas as regras da Norma Regulamentadora nº 17 do extinto Ministério do Trabalho e Emprego.

O artigo 75-E, caput e parágrafo único, da CLT, tratando especificamente do teletrabalho, impõe ao empregador o dever de "instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho" e estabelece a obrigatoriedade de o empregado "assinar termo de responsabilidade comprometendo-se a seguir as instruções fornecidas pelo empregador". Não nos parece, contudo, que as empresas devam considerar que as obrigações do empregador se limitem à instrução e ao compromisso mencionados.

Efetivamente as empresas, por conta de seus deveres sociais e para evitar riscos de responsabilização, devem cercar-se de todas as cautelas possíveis para assegurar que o teletrabalho seja desenvolvido em condições adequadas. Essa postura responde, aliás, ao risco de posterior invocação, em caso de discussão judicial relacionada a suposto adoecimento, das regras gerais de responsabilidade civil, do dever do empregador de zelar por condições de trabalho seguras e da garantia constitucional de "redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança" (CF, artigo 7º, XXII).

No particular, é relevante conhecer os Enunciados 72 e 83 da 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, promovida pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) [2]:

"72. TELETRABALHO: RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPREGADOR POR DANOS
A mera subscrição, pelo trabalhador, de termo de responsabilidade em que se compromete a seguir as instruções fornecidas pelo empregador, previsto no art. 75-e, parágrafo único, da CLT, não exime o empregador de eventual responsabilidade por danos decorrentes dos riscos ambientais do teletrabalho. Aplicação do art. 7º, XXII da Constituição c/c art. 927, parágrafo único, do Código Civil."
(Grifos acrescidos)
"83. TELETRABALHO: CONTROLE DOS RISCOS LABOR-AMBIENTAIS
O regime de teletrabalho não exime o empregador de adequar o ambiente de trabalho às regras da NR-7 (PCMSO), da NR-9 (PPRA) e do artigo 58, § 1º, da Lei 8.213/91 (LTCAT), nem de fiscalizar o ambiente de trabalho, inclusive com a realização de treinamentos. Exigência dos artigos 16 a 19 da convenção 155 da OIT."

Ditos verbetes, a despeito de serem destituídos de efeito vinculante, sinalizam entendimentos que podem vir a prevalecer em eventuais demandas sobre o tema.

Em sede doutrinária, Rodrigo Bulcão Vianna Domingues [3] defende caber ao empregador "realizar vistorias e adequar o ambiente de trabalho do empregado submetido no teletrabalho, sob pena de ter sua culpa presumida no evento danoso". Não concordamos com a ideia de que a presunção de culpa seja uma consequência necessária da ausência de vistorias ou adequações de iniciativa da empresa, mas é um fato que o risco de responsabilização da empresa é acrescido significativamente por tal circunstância.

Insta aclarar, na sequência, que, conforme artigos 156 e 157 da Consolidação das Leis do Trabalho, compete aos órgãos de fiscalização e aos empregadores a verificação do atendimento às normas de segurança e medicina do trabalho e a sua efetivação. Por força disso e considerando que "não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância", como disposto no artigo 6º da CLT, apresenta-se possível e exigível que sejam adotadas providências para verificar se as condições de execução do teletrabalho são adequadas e seguras.

As circunstâncias atuais, estando ainda em curso a pandemia da Covid-19, acrescem dificuldade à questão. Primeiro, porque a repentina migração forçada e praticamente generalizada para o teletrabalho teve lugar quanto a uma grande maioria de postos de trabalho cujas atividades, anteriormente à pandemia, eram exercidas de maneira presencial, motivo pelo qual muitos empregados, quando deslocados para o home office, não possuíam (e talvez ainda não possuam) as condições ideais ao desempenho saudável de suas atividades rotineiras. Depois, por conta da necessidade de compatibilização do distanciamento social com a fiscalização das condições ergonômicas.

As empresas que não adotarem as providências adequadas para cumprimento das normas e protocolos de segurança, mais especificamente das disposições relativas à ergonomia do labor, sob o pretexto do cenário viral, poderão ser responsabilizadas por eventual doença ou acidente do trabalho.

Não era comum que houvesse fiscalização do trabalho fora das dependências da empresa, principalmente porque o trabalho em domicílio e o teletrabalho não eram significativamente difundidos. A possibilidade de fiscalização dentro do estabelecimento empresarial não gera maiores debates, pois já faz parte da rotina das relações de trabalho. Todavia, não se pode aduzir o mesmo sobre a fiscalização na residência do colaborador.

De uma simples e literal interpretação do artigo 5º, incisos X e XI, da Constituição da República, os quais versam sobre a inviolabilidade da intimidade, da vida privada e da casa dos cidadãos, poder-se-ia extrair a compreensão de que haveria inviabilidade objetiva de fiscalização do trabalho na residência do empregado, seja de maneira presencial ou virtual.

Com o devido respeito aos que assim pensam, parece-nos que a questão merece um tratamento diferente. Com efeito, entender que as condições de teletrabalho pudessem estar imunes a qualquer controle implicaria risco acentuado para empregados e empregadores, podendo isso até inviabilizar o exercício do teletrabalho, principalmente quando se consideram os riscos de afecções especificamente decorrentes do teletrabalho, inclusive osteomusculares, mentais e decorrentes de esforço repetitivo

A letra expressa do inciso XI do artigo 5º da Constituição Federal, de fato, ao qualificar a casa como "asilo inviolável do indivíduo", estabelece que nela não se possa ingressar "sem consentimento do morador", apenas ressalvadas as situações de "flagrante delito ou desastre", de prestação de socorro ou "durante o dia, por determinação judicial".

De outro lado, a questão específica do acesso de órgãos de fiscalização do trabalho a espaços residenciais não é inédita no ordenamento jurídico brasileiro. A Instrução Normativa nº 110, do extinto Ministério do Trabalho e Emprego, regulando o cumprimento das normas referentes ao trabalho doméstico, dispõe, em seu artigo 4º, que o Auditor Fiscal do Trabalho, "após apresentar sua Carteira de Identidade Fiscal (CIF) e em observância ao mandamento constitucional da inviolabilidade do domicílio, dependerá de consentimento expresso e escrito do empregador para ingressar na residência onde ocorra a prestação de serviços por empregado doméstico."

O que se extrai dessas considerações é que o acesso de órgãos de fiscalização do trabalho ou de empregadores ao interior dos espaços residenciais dependerá da ocorrência de alguma das situações excepcionais indicadas no inciso XI do artigo 5º da Constituição Federal, entre as quais avulta como a mais verificável o assentimento expresso do trabalhador.

A questão foi abordada assim no Enunciado 23 do XIX Congresso Nacional dos Magistrados do Trabalho [4], em que anotadas outras condições que se entendeu deverem ser observadas para a validade dos atos fiscalizatórios:

"TELETRABALHO. FISCALIZAÇÃO DO MEIO AMBIENTE LABORAL. OBRIGAÇÃO DO EMPREGADOR. LIMITES
Sempre que o teletrabalho seja realizado no domicílio do trabalhador, a visita ao local de trabalho para fins de fiscalização do meio ambiente laboral deverá se dar: (i) com a anuência e presença do empregado ou de alguém por ele indicado; (ii) a visita ao local de trabalho só deve ter por objeto o controle da atividade laboral, bem como dos instrumentos de trabalho; (iii) em horário comercial, segundo os usos e costumes do local; (iv) com respeito aos direitos fundamentais — intimidade e vida privada — do empregado." (Grifos acrescidos)

Na mesma linha, é oportuno referir, ainda, para fins de ilustração, a experiência de Portugal, cujo Código do Trabalho, em seu 170º, item 2, expressamente estabelece a viabilidade de visita à residência do teletrabalhador, determinando, porém, que ela "só deve ter por objecto o controlo da atividade laboral, bem como dos instrumentos de trabalho e apenas pode ser efetuada entre as 9h e as 19h, com a assistência do trabalhador ou de pessoa por ele designada".

Não se deve desconsiderar, ainda a possibilidade de fiscalização virtual, sobretudo para os teletrabalhadores que fazem parte do grupo mais afetado pelo Sars-CoV-2. Seria mesmo ilógico permitir que um auditor fiscal ou um preposto da empresa comparecesse à residência do empregado, mas não se permitisse que a fiscalização fosse feita por meios telemáticos, que, aliás, são muito menos invasivos.

A fiscalização virtual já é utilizada por diversas empresas, podendo ser, exemplificativamente, realizada por meio de fotografias e vídeos fornecidos pelo teletrabalhador, exibindo o seu local de labor, demonstrando a altura da mesa de trabalho, as condições e a altura da cadeira, a postura adotada etc.

Conclui-se, portanto, que, longe de violar as normas legais, a fiscalização das condições de labor dos teletrabalhadores, feita na casa do colaborador ou virtualmente, desde que seguidos alguns requisitos mínimos, é adequada aos objetivos das normas protetivas do trabalho.

Ao lado da definição de acompanhamento médico especificamente estabelecido para trabalhadores em tais condições, a verificação das condições de labor dos teletrabalhadores é medida que se impõe, em atenção aos interesses dos trabalhadores e dos empregadores.

É conveniente, nesse ponto, a normatização do teletrabalho por meio de disposições coletivas, que podem, a um só tempo, atender às necessidades de premência na regulamentação de vários aspectos relacionados a tal prática e de observância das condições específicas e particulares dos empregados de uma dada empresa ou de uma categoria profissional.