FARRA DO BOI, OLHOS VAZADOS DA JUSTIÇA: 24 ANOS DESRESPEITANDO O STF
Há 33 anos, Cláudio Cavalcanti já lutava pelos bois tendo como suporte apenas a contravenção penal (artigo 64 do Decreto-Lei n° 3.688/41, ou Lei das Contravenções Penais, que tipificava a conduta de "tratar animal com crueldade"). Naquela época inexistia a Lei Federal 9605/98 e defender bicho não era levado a sério no Brasil, sendo por muitos considerado ridículo. Cláudio perseverou e conseguiu que o então governador Pedro Ivo Campos baixasse um decreto (baseado no Decreto 24.645, de 10/7/34) proibindo a realização da "farra do boi", prática cruel que consiste em torturar bois mansos após provocá-los com agressões variadas tais como olhos vazados, patas cerradas e chifres quebrados. Os farristas descrevem a tortura como diversão herdada de imigrantes açorianos.
Infelizmente, com o decreto já publicado, pressões políticas fizeram com que fosse revogado e as farras foram realizadas. Esse triste e vergonhoso episódio, que demonstra os 33 anos de torturas sofridas pelos bois catarinenses, está registrado em artigo de autoria desse ícone da dramaturgia nacional, publicado no jornal O Globo na quinta-feira, 7 de abril de 1988 (página 4).
Sobrinho da então presidente da Associação Protetora dos Animais (APA), Lya Cavalcanti, inconformado, o ator, membro ativo da APA, liderou a iniciativa da ação judicial, então unida à Associação Amigos de Petrópolis, Defesa dos Animais e Proteção da Ecologia (Anpade), à Liga de Defesa dos Animais (LDA) e à Sociedade Zoológica e Educativa (Sozed) — assim, as quatro entidades integraram o polo ativo da ação civil pública contra o estado de Santa Catarina e proibiram a farra do boi.
O combate contra a farra agora foi tema da 5ª Reunião do Fórum Permanente de Pós-Humanismo e Defesa dos Animais-Cláudio Cavalcanti, da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) [1]. O ator e legislador pioneiro da defesa animal foi ativo contra a prática que resultou na vitoriosa ação civil pública, cuja decisão final de 1997, do Supremo Tribunal Federal, declara que a farra do boi é crime no Recurso Extraordinário n° 153.531-8.
Ainda assim, a perpetuação do ato criminoso é uma constante no litoral catarinense. O combate a tal crueldade une esforços do Ministério Público e da Polícia Militar Ambiental de Santa Catarina, em diversas campanhas de conscientização e repressão e, com tudo isso, a barbárie continua. O desacato à maior corte do país é flagrante e é pauta constante nas redes televisivas locais. O que causa ainda maior espanto não é apenas a violação à decisão judicial, mas sobretudo, como afirma Ingo Sarlet em coluna aqui na ConJur [2], a "inconsistência com que as decisões se baseiam em seus argumentos" pois o paradoxo se mantém: proibidas a farra do boi e a briga de galos, enquanto permitidas as vaquejadas e o sacrifício religioso [3], com base no que Ingo chama de má técnica legislativa da Emenda Constitucional nº 96/17, que veio trazendo uma roupagem de cultura para a crueldade no texto contido no novel §7º inserido no artigo 225 da Constituição da República brasileira. "Tendo em conta, todavia, a técnica legislativa quase que escandalosamente inapropriada, até mesmo isso soa relativamente difícil de se levar a efeito" [4].
O Supremo Tribunal Federal ainda não decidiu definitivamente a questão das vaquejadas, pois o tema entrou na pauta em 5 de novembro passado e não foi julgado. Aguardemos. E, como ensina Lenio Streck, precisamos amadurecer a resposta constitucionalmente adequada já que permanece uma total falta de coerência no ordenamento jurídico brasileiro quanto à questão animal. Temos um ótimo texto constitucional, mas o intérprete se perde diante de outros diplomas legais como a lei civil por exemplo. E importa muito fortalecer a norma constitucional como viga mestra sem extremidades fracas. A crítica hermenêutica do Direito é oportuna e útil para questionar. "A Constituição, que deveria ser o locus privilegiado para a obtenção de respostas concretizadoras, foi, ela mesma, transformada em um 'texto aberto', por vezes, pan-principiologista" [5].
Ensina Lenio sobre a importância do respeito ao texto constitucional que, afinal, passados tantos anos da entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, o que resulta de um descumprimento constitucional é um direito alienado da sociedade. E, quando o texto da Constituição é desprezado com más práticas sociais toleradas, estão sendo violadas as promessas do próprio Estado democrático de Direito, algo, portanto, muito grave e que merece toda a atenção.
"Em síntese: é preciso compreender que das condições da concretização da Constituição é, antes de tudo, uma crise do direito, que na realidade é uma crise de paradigmas, assentada em uma dupla face: uma crise de modelo e uma crise de caráter epistemológico".
A crítica hermenêutica do Direito proposta por Lenio Streck aprofunda a condição hermenêutica de sentido através da base linguística em que está assentada a tradição, e por intermédio de diálogos habermasianos com a sociedade pós-convencional leva o intérprete constitucional a buscar as respostas constitucionalmente adequadas, ao invés da metafórica "resposta certa" proposta por Ronald Dworkin. A decisão judicial da farra do boi está por assim dizer "constitucionalmente adequada". E sobre a força normativa, Streck ensina que:
"Argumentos para a obtenção de uma resposta adequada à Constituição (resposta correta) devem ser de princípio, e não de política. (...) Desse modo, propõe-se, aqui, um conjunto mínimo de princípios (hermenêuticos) a serem seguidos pelo intérprete. (...) tais como a inviolabilidade da Constituição, (...)" [6].
Torçamos para que não esqueça o atento guardião da Constituição que, afinal, habemus legem! E que o artigo 225, §1º, inciso VII, permanece em vigor garantindo a equidade intergeracional, o meio ambiente ecologicamente equilibrado, com os animais nele englobados enquanto microbens ambientais, inseridos, como tal, no macrobem ambiental. Essa categorização também é paradoxal, pois ocorre enquanto há a relutância na inserção dos animais como seres sencientes no ordenamento jurídico brasileiro. O Direito Comparado de diversos países já fez tal alteração, como França, Alemanha, Bélgica, Portugal, México e, recentemente, a Espanha.
Animais não são coisas, mas no Brasil o são pela lei civil, mas são também bens ambientais e afirma a Carta Magna que é dever do Estado tutelá-los impedindo que sejam submetidos à crueldade. (VII do artigo 225 da CF)
Lenio denomina de verdadeiro direito fundamental o direito à obtenção de respostas corretas/adequadas à Constituição. "Mais do que isso: a obtenção de respostas adequadas à Constituição implica o respeito à democracia. Trata-se de um direito (humano) fundamental do cidadão. Ou seja, o cidadão tem o direito a uma accountabillity hermenêutica" [7]. Acrescento o direito óbvio de que a Constituição seja cumprida em sua inteireza. A resposta adequada já temos, cabe agora exigir seu cumprimento.
E voltamos à farra do boi, que, além de cruel, se robustece em sua conotação simbólico-religiosa por ser o boi a encarnação de Judas, traidor de Cristo, no período da Quaresma. Habermas e Kohlberg [8] [9] espantar-se-iam com esse homem de moral pré-convencional morando em Santa Catarina em pleno 2021 e farreando no meio à pandemia! E a farra se estende para outras datas durante o ano, exigindo constante fiscalização e combate. A próxima data do calendário deste ano a ser vigiada é o Dia das Mães. A pergunta da simbologia ficará sem resposta, pois nessa data a mãe de quem o pobre boi representará?
Os crimes se avolumam: maus tratos; associação criminosa, pois as farras são previamente organizadas por grupos e custeadas por meios sub-reptícios e obscuros; aliciamento de menores, por ser comum haver crianças entre os farristas; prevaricação imputável às autoridades que se omitem em evitar a farra e em pleno combate ao coronavírus; contra a saúde pública, pois é da essência da farra a aglomeração de pessoas. Com isso concluo este texto na expectativa de uma campanha não apenas contra a cruel "farra do boi", mas contra o paradoxo da questão animal e seu acesso à Justiça.