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APONTAMENTOS SOBRE O DELITO DE PERSEGUIÇÃO: ANÁLISE CRÍTICA E VITIMOLÓGICA

A Lei nº 14.132/21 inseriu no Código Penal o artigo 147-A, que passou a prever o delito de nomen juris "perseguição", revogando expressamente a contravenção penal do artigo 65 do Decreto Lei nº 3.688/41. Destarte, criou-se uma figura penal específica para o delito denominado stalking, no entanto, andou mal o legislador em diversos pontos que aqui serão mostrados.

A expressão stalking, segundo definição do Dicionário Cambridge, consiste na "ação de seguir uma pessoa tão perto quanto possível, sem ser visto ou ouvido, a fim de capturá-lo ou matá-lo", porém o mesmo dicionário ainda fornece outra acepção mais adequada ao delito que consiste em "seguir e observar alguém, por certo período de tempo". Há inúmeras tentativas de construir um conceito de referido delito, contudo, por se tratar de postura que pode ser feita por múltiplos modos de execução a delimitação se torna especialmente difícil e em sede penal a excessiva amplitude da descrição típica encontra empecilho na taxatividade, o que torna a conceituação ainda mais truncada, pois há de se obter um equilíbrio. Caso o tipo se mostre excessivamente abrangente e abarque situações teratológicas, certamente violará a taxatividade; no entanto, se for delimitado em demasia, deixará de lado situações por lhes faltar adequação.

Antes de analisar o tipo inserido em nosso ordenamento de rigor, uma breve análise do conceito doutrinário da conduta e de que como outros ordenamentos tipificam referido delito.

A doutrina especializada [1] enuncia quatro requisitos para que se configure o stalking: 1) trata-se de comportamento doloso e habitual; 2) tal comportamento é composto necessariamente de mais de um ato de perseguição ou assédio à vítima; 3) a conduta é motivada por interesse pessoal; e 4) em razão da postura do stalker, a vítima deve se sentir incomodada em sua privacidade e/ou temerosa por sua segurança.

Desde já cabe uma apreciação crítica acerca do segundo requisito. Se ao mencionar o primeiro já se fez menção à habitualidade, o segundo requisito se mostra despiciendo. Ora, se a conduta precisa ser habitual, ou seja, ser praticada de maneira reiterada, evidente que haverá mais de um ato, sob pena de se descaracterizar a própria habitualidade.

Em se tratando de delito habitual, prevalente o entendimento de que não admite tentativa, com o qual coadunamos. Se a conduta se deu de modo habitual há o delito, caso tenha se dado de modo eventual nem o delito existe. É da essência do delito atrelar a relevância penal à pluralidade de condutas. Importante apontar respeitável entendimento minoritário pela possibilidade de tentativa em tais crimes [2].

Ao se analisar o tipo penal aprovado, verifica-se que não há qualquer menção à motivação do sujeito ativo, como o interesse pessoal trazido na proposta doutrinária. Isso certamente leva à tipicidade formal de situações teratológicas, como da atendente de telemarketing que liga diversas vezes no mesmo dia para o sujeito, causando-lhe perturbação em sua esfera de privacidade. Evidente que referida situação será considerada atípica por estar fora do âmbito de proteção da norma ou ao se fazer uma interpretação teleológica do tipo penal. Contudo, a própria tipicidade formal deveria de plano afastar ao menos situações absurdas como essa.

Na Itália, foi aprovada em 2009 uma descrição específica nos seguintes termos:

"Artigo 612-bis (1) Atti persecutori: 'Salvo che il fatto costituisca più grave reato, è punito con la reclusione da sei mesi a quattro anni ciunque, con condotte reiterate, minaccia o molesta taluno in modo da cagionare un perdurante e grave stato di ansia o dia paura ovvero da ingenerare un fondato timore per l'incolumità propria o di un prossimo congiunto o di persona al medesimo legata da relazione affetiva ovvero da costringere lo stesso ad alterare le proprie abitudini di vita'[3].

Da descrição trazida pela legislação italiana já se nota que se trata de tipo penal subsidiário expresso, opção que se mostra adequada, pois afasta parte das discussões atinentes à conflito de leis penais. No mais, há aqui dois verbos, "ameaçar" e "assediar". Nesse ponto nossa legislação se valeu do nomen juris e se valeu, de modo inadequado, do verbo "perseguir", quando nos parece que o verbo mais adequado seria "assediar". Pode haver o crime, mormente pela internet, sem que o sujeito ativo tenha em momento nenhum se aproximado da vítima ou buscado aproximação física. O verbo "assediar" representa melhor o âmago do delito e, neste contexto, seria menos vago.

Já, o Código Penal Alemão define referido delito em seu §238 da seguinte forma:

"(1) Whoever, without being authorised to do so, stalks another person in a manner which is suitable for seriously restricting that person's lifestyle by persistently
1.  seeking the other person's physical proximity,
2.  trying to establish contact with the other person by means of telecommunications or other means of communication or through third parties,
3.  improperly using the other person's personal data for the purpose of
a)   ordering goods or services for that person or
b)   inducing third parties to make contact with that person,
4.  threatening the other person, one of his or her relatives, or someone close to him or her with causing injury to life or physical integrity, health or liberty or
5.  committing other comparable acts" [4].

Aqui se nota que, não obstante o uso do verbo "perseguir", o tipo a seguir traz condutas que não necessariamente estão vinculadas à perseguição, como a ameaça, o que demonstra a real dificuldade de delimitar a incriminação. De todo modo, a legislação alemã se valeu do artifício denominado interpretação analógica, pelo qual se utiliza um rol exemplificativo seguido de um encerramento genérico (cometer outros atos comparáveis), que com o rol devem guardar nexo quando da interpretação, o que se mostra salutar e fornece balizas interpretativas, além de permitir que sejam afastadas de pronto adequações absurdas.

Nesse pequeno comparativo com tipos de outros países de tradição romano-germânica já se nota que a nossa descrição típica é a mais vaga e com maior potencial de gerar problemas e permitir a tipicidade formal de situações que fogem em muito do escopo da norma. A cobrança de dívida, a depender da forma como se dá, incidiria formalmente no tipo em tela, sendo necessário o recurso a algum filtro axiológico para se afastar tal situação, sob pena de a questão atinente ao injusto apenas se resolver na ilicitude, sob o manto do exercício regular do direito. Ainda assim, é teratológico pensar na cobrança de dívida de modo mais assertivo como um fato típico, mesmo que formalmente.

O tipo penal aprovado é bastante semelhante ao existente no natimorto Projeto de Lei 236/12 [5] (novo Código Penal), permitindo inferir que o tipo aprovado é praticamente uma cópia do tipo existente no projeto. Manteve também o tipo a preocupação excessiva em descrever hipóteses relacionadas à liberdade de locomoção, tanto que se vale destes termos e ao final traz a expressão "perturbando sua esfera de liberdade". Aqui se revela novo inconveniente também trazido pela doutrina [6], já que o tipo trouxe tais elementares que sequer são inerentes à conduta do stalker, tanto que não há qualquer menção a isso no Código Penal Italiano e há somente algo bastante pontual no Código Penal Alemão. Ademais, a referência é desnecessária, pois qualquer restrição à liberdade ameaça a integridade psicológica, elementares essas que já constam no tipo.

Por essa análise superficial, verifica-se que o preceito primário é tenebroso. Ora se deixa de trazer elementar que seria necessária e quando o faz, traz pontos imprecisos ou desnecessários. A pretexto de se "proteger" a vítima criou-se mais um sintoma demagógico do puro Direito Penal simbólico.

Agora, no que tange ao preceito secundário, quando da discussão do projeto de lei, até os últimos momentos de votação a pena estipulada havia sido de um a quatro anos, porém ao final aprovou-se um substitutivo que estabeleceu a pena de seis meses a dois anos de reclusão e multa. Já se nota aqui a incoerência inicial de se criar uma pena que admite institutos do Juizado Especial Criminal, porém apenada com reclusão. Ora, a reclusão é destinada, a priori, a crimes mais graves em abstrato. A pena imposta é inadequada à modalidade de pena privativa de liberdade eleita.

A sanção em abstrato permite, em tese, salvo se incidir alguma hipótese da Lei Maria da Penha ou alguma majorante do §1º, aplicação dos institutos da composição de danos (artigo 74, da Lei nº 9.099/95), transação penal (artigo 76 da mesma lei), suspensão condicional do processo (artigo 89 da mesma lei) e acordo de não persecução penal (desde que preenchidos os demais requisitos do artigo 28-A do Código de Processo Penal). Portanto, há ampla gama de institutos de Justiça consensual que pode ser aplicada a este crime e, ademais, estabeleceu-se ação penal pública condicionada à representação.

No que tange à natureza da ação penal, também andou mal o legislador, pois não criou exceção para nenhuma das majorantes, como nos casos de vítima adolescente, idosa, criança, crime contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, a revelar ausência de preocupação com a figura da vítima especialmente afetada pelo delito em análise.

O tratamento de referido delito como infração penal de menor potencial ofensivo (salvo nas hipóteses em que incidir majorante) acaba por ter um efeito desastroso sobre a própria vítima. Ao permitir um ato como a composição civil, que se dá em audiência preliminar e conta com a presença do autor do fato e da vítima (artigo 72 da Lei nº 9.099/95), o Estado torna possível e facilita o contato ao menos visual entre a vítima e o perseguidor! Os órgãos estatais, com sua máquina e indiferença burocrática, incrementam e perpetuam os efeitos nocivos derivado do delito, com a denominada vitimização secundária [7].

Age dessa forma o legislador justamente em um delito que tem especial aptidão para ensejar na vítima perene dano psicológico, decorrente de sua própria habitualidade, incremento de sua ansiedade, entre outros fatores ensejadores de somatização e que a tornam ainda mais vulnerável.

Evidente que a vítima pode se recusar a comparecer, justamente com escopo de evitar o fenômeno da vitimização secundária. Contudo, dadas as peculiaridades do delito, parece que o legislador deveria ter estabelecido um preceito secundário que sequer permitisse tal possibilidade.

Em suma, foram esses os apontamentos críticos feitos. Aguardemos a aplicação e interpretação que os tribunais darão à má redação construída.