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SOBRE A PRESTAÇÃO DE SERVIÇO À COMUNIDADE NA CRISE DA COVID-19

iante da pandemia da Covid-19, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o governo brasileiro foi obrigado a administrar a crise que se instalou no território nacional. Entre as medidas adotadas, foi publicada a Lei n° 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que disciplinou a emergência na saúde pública e procurou seguir, ainda que de forma bastante tímida e, em muitos casos, meramente protocolar, as diretrizes internacionais para o enfrentamento do coronavírus. O texto prevê ações a serem adotadas pelas autoridades para controlar a crise [1] e evitar a propagação, como, entre outras, o isolamento social.

Em realidade, ingressamos em um tempo de quarentena, pois ficou cientificamente comprovado que o caminho mais eficaz para controle do vírus é a restrição de atividades e de circulação de pessoas. O período de isolamento, que se esperava fosse transitório, ultrapassa um ano e os impactos da pandemia são gigantescos. No sistema de Justiça Criminal não tem sido diferente, pois todos os serviços e atividades foram afetados: desde a investigação preliminar e a realização de audiências judiciais à execução das penas. E a fase final da persecução penal merece especial atenção pela vulnerabilidade das pessoas em cumprimento de sentenças ou acordos.

Além dos graves problemas sanitários que envolvem as pessoas encarceradas, presas cautelarmente ou em razão de sentença condenatória, outro ponto de estrangulamento do sistema está na execução das penas restritivas de direitos, especialmente a de prestação de serviços à comunidade. Frente à falência da pena de prisão, a prestação de serviços é a pena alternativa que mais se aproxima, na realidade, da busca pela reinserção social do condenado [2], justamente por desenvolver sua aptidão profissional por meio do trabalho em entidades de natureza social conveniadas ao Poder Judiciário (varas de execução penal). Nas palavras de Shecaira, "tal modalidade de pena tem por objetivo evitar a segregação da comunidade, não afastando o condenado dos seus afazeres normais, do trabalho que desempenha, de sua família que o apoia, sem que, com isso, se enfraqueça a reprovação penal" [3]. Exatamente por isso o entendimento de Reale Júnior, que considera essa espécie de sanção "altamente positiva, pois une o caráter retributivo ao de prevenção especial, na medida em que pode ser fonte de revelação de valores positivos. Assim, além de ter poder coercitivo a pena de prestação de serviço à comunidade revela-se útil, sendo possível que o condenado sinta que pode ser necessário aos que precisam de ajuda (...)" [4].

Ocorre que, diante das necessárias restrições impostas pela pandemia, por circunstâncias de força maior, parte significativa dos condenados, de forma involuntária, teve interrompido o serviço em benefício da comunidade. Foi o que ocorreu, por exemplo, em São Paulo, onde o Poder Judiciário interrompeu temporariamente o cumprimento da pena pela Portaria Nual n° 1º de 2020, emitida pelo coordenador-geral da Central de Penas e Medidas Alternativas da Justiça Federal. Na sequência, nova portaria possibilitou o retorno parcial das atividades, mas de forma restrita àqueles condenados que manifestassem interesse na retomada e que não fizessem parte das pessoas em grupo de risco. O problema é que a situação concreta de cumprimento de pena, de qualquer espécie, por si só configura situação de risco, de vulnerabilidade, pela interação social que as penas demandam. Significa dizer que a natureza do cumprimento das penas está na razão oposta ao isolamento social — medida preventiva mais eficaz e recomendável.

É evidente que estamos perante uma situação excepcional, não controlada, derivada de força maior, e a suspensão involuntária no cumprimento da pena além de gerar um incalculável acúmulo de horas, sobrecarregando o Judiciário, produz uma situação de instabilidade emocional aos condenados, muitos constrangidos a retornar "voluntariamente" aos serviços comunitários por não se adequarem aos critérios sanitários oficiais de risco. Assim, não é difícil: a) perceber o agravamento da saúde mental dos condenados, em razão do conflito de deveres provocado pela pandemia; e b) antever o colapso que a paralisação do cumprimento das penas de prestação de serviços à comunidade ocasionará em todo o território nacional.

Para além da dimensão humana, o não cumprimento das penas comunitárias produzirá, sob o ponto de vista da administração da Justiça criminal, um acúmulo substantivo de serviço em razão da necessidade de conciliar, no futuro, a execução regular das penas com o passivo gerado pela pandemia. Situação que pode simplesmente inviabilizar as poucas alternativas efetivas que temos ao sistema carcerário. Há milhares de condenados interessados em retomar o cumprimento da pena a fim concluir suas obrigações com a Justiça. Todavia as diretrizes sanitárias recomendam a suspensão das atividades. Por outro lado, é de conhecimento público que, malgrado os inúmeros recursos disponíveis atualmente, a imensa maioria das entidades que recebe os condenados não tem modalidade de prestação de serviços online. Em síntese: o Estado não dispõe de um modelo de prestação de serviços à comunidade compatível com as exigências impostas pelo distanciamento social.

Em razão dessa situação excepcional, é preciso uma tomada de posição urgente. Se os organismos internacionais indicam a necessidade de distanciamento e se o Estado não oferece a possibilidade de cumprimento da prestação de serviços à comunidade, é imperativo pensar soluções alternativas. Afinal, é importante sublinhar que as inúmeras pessoas que cumprem serviços comunitários, decorrentes de sentenças condenatórias à pena restritiva de direito, de conversão em incidente de execução, de suspensão condicional da pena (sursis) ou do processo, de acordos de transação penal, não persecução e de colaboração premiada [5], não deram causa à paralisação e, fundamentalmente, devem ter assegurados o respeito à integridade física e moral (artigo 5º, XLIX, CF/88) e o direito à saúde (artigo 6º, caput, CF/88).

Uma das soluções encontradas pelo próprio Poder Judiciário foi a de considerar o período de paralisação dos serviços à comunidade como trabalho efetivamente prestado, uma espécie de cumprimento ficto da pena restritiva de direito em razão da força maior. Em 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou "Orientações sobre Alternativas Penais no Âmbito das Medidas Preventivas à Propagação da Infecção pelo Novo Coronavírus (Covid-19)", nas quais aponta ações judiciais para contribuir com a redução da propagação do contágio. Entre as medidas preventivas, o CNJ recomenda que seja computado como pena cumprida o período de dispensa temporária do trabalho em benefício da comunidade.

A assistência ao condenado é um dever do Estado e, como indicado, existe um conjunto de respostas penais alternativas que pode ser utilizado pelos juízes em sede de execução penal, sobretudo nesse momento em que se percebe um significativo aumento da aplicabilidade dos institutos da justiça penal consensual. Nesse ponto, é fundamental reconhecer que vários juízes têm cumprido a recomendação do computo do cumprimento ficto das horas de prestação de serviços, por precaução ou pela impossibilidade de efetivação, na linha do que indicou o CNJ [6]. Contudo, por se tratar de direitos básicos de pessoas em situação de alto risco, entendemos que esta deve ser uma medida institucional, de caráter vinculante, de maneira a evitar posições judiciais personalistas e arbitrariedades. Isso porque infelizmente também são percebidas resistências da magistratura nacional, não apenas no reconhecimento do cumprimento ficto, mas na adoção de (outras) possibilidades como, dentre outras, a substituição da prestação de serviços pela leitura, estudo e frequência a cursos de capacitação. Atividades que podem ser efetuadas no domicílio, de forma remota, em respeito às regras de distanciamento social.

Conforme destacado na diretriz do CNJ, além da necessidade de reduzir os evidentes riscos de contaminação decorrentes da mobilidade e do encontro entre as pessoas característicos da prestação de serviços, há um evidente efeito dessocializador na manutenção de uma suspensão de pena não causada pelo condenado. Exatamente por isso a legislação penal já prevê modalidades de computação de tempo por execução ficta.

O artigo 126, §2º, da Lei de Execução Penal estabelece que o preso "impossibilitado de prosseguir no trabalho, por acidente, continuará a beneficiar-se com a remição". Conforme destaca Scapini, o dispositivo não nomina qual a espécie de trabalho, motivo pelo qual entendemos ser aplicável aos casos em que o condenado tem sua prestação de serviço interrompida por acidente, caso fortuito ou força maior. Por outro lado, destaca o autor que "não é necessário que a incapacidade seja superveniente, bastando, para a concessão do benefício, que o preso não apresente condições para o trabalho (...)". Assim, "se a deficiência ou doença impedir o preso de trabalhar, negar-lhe a remição implicaria punir o infortúnio, o sofrimento, em atitude de inconcebível preconceito" [7].

O reconhecimento do cumprimento ficto de pena não é, portanto, nenhuma novidade no sistema normativo nacional. Motivo pelo qual o cômputo do trabalho em benefício à comunidade não efetivado em decorrência da crise pandêmica não pode ser simplesmente descartado, mormente porque retrata uma situação fática amplamente discutida em termos de teoria da imprevisibilidade, materializada na execução penal pela cláusula rebus sic stantibus.

Os efeitos dessocializadores da paralisação involuntária da prestação de serviços à comunidade não podem recair sobre as pessoas que estão em cumprimento de pena ou de medidas de natureza análoga como as derivadas de acordos penais. Pensemos sobretudo nas situações que envolvem pessoas idosas, naturalmente inseridas em grupo de risco. Nesses casos, o reconhecimento do cumprimento ficto da prestação de serviço à comunidade se justifica inclusive por razões humanitárias.

Se a paralisação é involuntária e se as agências do Estado não oferecem uma forma remota de prestação de serviços à comunidade, o cumprimento ficto da pena restritiva de direito deve ser computado como pena efetivada, pois é medida racional e humanitária de redução dos danos atuais (dessocialização dos condenados) e dos futuros (colapso das varas de execução). Trata-se de uma questão relativamente simples, com precedentes normativos e diretrizes administrativas claras, e que envolve, além de uma gestão eficiente da Justiça Penal, o respeito aos direitos de todas as pessoas envolvidas — prestadores de serviço, funcionários da Justiça, colaboradores das instituições envolvidas e público em geral. A paralisação involuntária não pode representar estorvo à execução penal e nem demora injustificável do retorno integral do apenado à sociedade.