ATÉ QUANDO HÁ DE SE REJEITAR O DANO EXISTENCIAL NA RESPONSABILIDADE CIVIL?
Certos casos tornam-se tão emblemáticos e com peculiaridades tão distintas que merecem uma maior atenção dos problemas a serem enfrentados. O próprio Direito muitas vezes não encontra e alcança sozinho os elementos concretos essenciais ao humano, alicerçados na dignidade da pessoa humana, tornando-se irrecusável um diálogo transdisciplinar, sobretudo quando identificados contextos em que a Filosofia e Psicologia se lançam em fundamentos à explicação dos danos à pessoa.
Qual o valor da vida de uma pessoa ainda jovem que é levada indevidamente ao cárcere e lá é mantida por 17 anos?
Certamente, pela sua natureza, o dano moral não possui parâmetros para conceber situações como essa, ainda que, em verdade, tais perguntas não possuam uma resposta plausível ou quantificada na multiplicidade da categoria de danos.
Já encarado por grande parte da doutrina civil, o dano existencial torna-se um desses institutos relevantes e que permanecem até os dias de hoje em grande evidência na jurisprudência nacional. Com diferentes conceitos em variados campos do Direito, foi na seara trabalhista, com a gradativa adoção pela jurisprudência, que o mesmo foi estabelecido e expresso.
Ainda que se vislumbre uma apreciação inicial do instituto, para casos envolvendo cenários análogos à escravidão, ou que lesam substancialmente a saúde do trabalhador. Por certo, a jurisprudência não precisou de cenários tão lesivos à apreciação do dano, aplicando-o frequentemente em casos de cumprimento de jornada excessiva ou de não concessão de férias, ao reduzir substancialmente os momentos de lazer e convívio social.
Anteriormente afirmado por aqui [1], o dano merece e deve ser provado, sendo inclusive retratado dessa maneira no sistema jurídico italiano, de onde advém o termo, no sentido de demonstrar, em sede de apreciação nacional para jurisprudência, a efetiva perda e/ou redução de eventuais momentos de lazer ou convívio. Caso contrário, a banalização do dano existencial, que não se confunde com o dano moral, estaria prematuramente ameaçada, e serviria, antes de mais nada, para uma maior indenização, ao invés da efetiva reparação. Destarte, já que os parâmetros utilizados à aplicação do dano existencial tornam-se fundamentalmente a redução ou perda desses eventos, ou situações análogas de escravidão com nítidos transtornos de abalo moral e físico, os mesmos podem ser mais facilmente provados no caso concreto, passível de constatação objetiva.
Entre todos os danos advindos do sustentáculo do princípio da dignidade da pessoa humana e da propensão contemporânea ao lesado na responsabilidade civil, o dano existencial, por uma essência que engloba a reparabilidade de eventos de diferentes figurações em diferentes searas do sistema jurídico, apresenta-se como o mais promissor deles.
A intensidade lesiva do dano, as consequências in pejus, quando comprovadas, em nada se situam na incessante fixação pela jurisprudência em alocá-las, erroneamente, como mero dano moral, contribuindo para o alargamento e maior banalização do instituto, em que pode naturalmente não haver a legítima reparação.
A contemporânea jurisprudência italiana, ao delimitar a dimensão do instituto, ainda produzindo efeitos, preconiza que sua aplicação se deve à comprovada mudança radical na vida do lesado, longe dos parâmetros de frustrações ou sofrimento de esfera íntima, retratados como violações do direito à paz de espírito (diritto alla tranquillità). Ainda que subjetiva em seu conceito, essa avaliação objetiva tem o fito de, no caso concreto de alegação do instituto, ser um procedimento cautelar para questões que almejam transfigurar um dano moral em dano existencial, configurando o bis in idem. A necessária "convulsão existencial", torna-se, portanto, o critério definidor para o enquadramento da discussão.
Para essa diferenciação, pelas diversas contribuições doutrinárias italianas, já se chegou a pensar em definir o dano existencial, por sua intensidade e gravidade da lesão à vítima, como absorsor do dano moral, excluindo-se no caso em questão, o dano moral. Nessa perspectiva, o dano existencial por uma lesão preponderante e valor compensatório maior deveria sobressair-se, exaurindo a incessante preocupação do bis in idem com a indicação de valores mais vultuosos através da categoria única. É uma ideia e faz sentido, ainda que deva ser desenvolvida, para uma maior integralidade na reparação dos danos extrapatrimoniais, sobretudo, em ambientes cujo dano moral representa uma banalização que inevitavelmente proporciona montantes discretos e que não corroboram às lesões do caso concreto.
Certo é que existem situações com eventos tão peculiares que as ofensas a determinados bens jurídicos passam a ser de tal gravidade que tradicionais critérios de aplicação se tornam defasados e, por vezes, inadequados. Notavelmente, vislumbra-se uma maior viabilidade quantitativa e qualitativa dos danos extrapatrimoniais quando estão em causa repercussões aos bens jurídicos da vida e da liberdade, por atingir penetrantemente a personalidade do lesado e familiares, fator determinante para o acréscimo reparatório no quantum debeatur.
Dito isso, não é difícil encontrar na jurisprudência nacional situações que correspondem efetivamente a legítimos casos de danos existenciais, mas que, ao final, são julgados e estabelecidos como danos morais.
A jurisprudência nacional e a inobservância do dano existencial: considerações dos aspectos fundamentais
O inacreditável caso de Marcos Mariano da Silva, preso injustamente por 19 anos, período em que contraiu tuberculose e, atingido por estilhaços de granada, ficou cego, havendo a desagregação de sua família, então casado, com 11 filhos, pode ser vislumbrado como o exemplo mais notável, ainda que incorra outros danos, de um dano existencial.
Para ilustração, em julgamento no Superior Tribunal de Justiça no ano de 2006, a ministra Denise Arruda afirmou ser o caso mais grave que já viu; já o ministro Teori Zavaski, à época no STJ, concluiu: "Esse homem morreu e assistiu à sua morte no cárcere". Diante da complexidade do caso, foi arbitrada a indenização no valor de R$ 2 milhões a título de danos morais.
O dano existencial ganhou "roupagem" com o tempo, e sua evidente dissociação do dano moral perante a doutrina garantiu-lhe um maior destaque, inclusive viabilizando sua categoria autônoma expressamente no Direito do Trabalho com a reforma trabalhista. Não por acaso, a busca por uma reparabilidade integral da pessoa, tutelando diversos aspectos da vida humana e dos danos à pessoa, tornou-se mais evidente diante da sociedade contemporânea de riscos.
Ainda que se vislumbrem inúmeras situações semelhantes, o caso em questão, do artista plástico Eugênio Fiúza de Queiroz, demonstra não somente a falência do Estado, mas o amadurecido retorno do dano existencial na responsabilidade civil, alegada e deferida pela 5° Vara da Fazenda Pública e Autarquias da Comarca de Belo Horizonte.
Confundido com o "maníaco do Anchieta", Eugênio ficou 17 anos preso injustamente em regime fechado em Belo Horizonte, razão pela qual a Defensoria Pública de Minas Gerais pleiteou a condenação do Estado em ação por danos material, moral e existencial, postulando a indenização total de R$ 3 milhões e pensão alimentícia, sendo R$ 2 milhões a título de indenização por danos morais e R$ 1 milhão por danos existenciais.
Vislumbrado no Processo nº 1.0000.16.061366-7/008 [2], o julgamento em primeira instância condenou o governo estadual ao pagamento tanto a título de danos morais quanto existenciais, entendendo, ainda que de maneira breve e sucinta, a diferença do dano moral presente no caso específico, conforme sintetizou: "Trata-se de um dano que decorre de uma frustração ou de uma projeção que impedem a realização pessoal do trabalhador, com perda da qualidade de vida e, por conseguinte, modificação in pejus da personalidade. Nesse aspecto, o dano existencial impõe a reprogramação e obriga um relacionar-se de modo diferente no contexto social".
Cumpre salientar que o dano existencial possui diversos conceitos, no entanto, no meu entender, o julgado evidencia um fator primordial à discussão do dano existencial, o tempo, conforme elucida: "Deve este juízo, definir o que poderia ao menos minimizar a dor que o autor experimentou e que se perpetuará no tempo".
Ainda que sem critérios técnicos e de longo embate sob os institutos, o julgado externaliza que a natureza do dano, comprovadamente lesiva, com intensidade e prolongamento, não se conceberia com a tradicional natureza dos danos morais, subjetiva e banalizada. Contudo, sabemos que essas circunstâncias, derivadas de um dano corporal (resultantes de lesões à integridade física e psíquica), causam alguma perplexidade, já que não permitem uma clara e necessária delimitação entre a própria definição do conceito de dano e as consequências dele resultante.
No entanto, o fator ''tempo" revela-se como contributo essencial na aplicação e contexto de um dano existencial. Os eventos lesivos à pessoa, ainda que ocorridos no passado, acarretam transformações substanciais da vida e na impossibilidade do status quo anterior. É nesse sentido, em que pode-se avistar uma continuidade, um prolongamento dos efeitos, e que se tornam fatores limitadores e de reviravoltas à vida dinâmico-relacional do lesado.
A lesividade ocorrida traduz-se em tal gravidade no lesado, objetivamente verificada, que permite conservar resquícios significativos no presente, tornando-se passível de agravamento ou limitações futuras. Por certo, o dano é constituído na experiência da vítima ao suportar lesões gravosas que produzem efeitos prolongados na vida dinâmico-relacional, não havendo uma dissociação razoável entre a lesão e o tempo.
No desfecho do caso, o estado de Minas Gerais recorreu e interpôs recurso de apelação, pleiteando a eliminação ou redução da indenização. Em recurso, o relator e desembargador Wilson Benevides do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) expôs a gravidade e reprovabilidade social da conduta, além da magnitude das lesões, no entanto, preconizou que os danos existenciais estariam abarcados e cumulados na indenização por dano moral, indeferindo o valor de R$ 1 milhão e fixando o valor da compensação em R$ 2 milhões.
Apontamentos finais da categoria e alguns desconfortos jurídicos
Fato é que casos envolvendo torturas durante o regime militar e prisões injustas, ao proporcionar uma plena transformação negativa na vida do lesado, são claros exemplos de situações que encontram no dano existencial a tutela jurídica à reparabilidade civil. Já para outros, como o ilustríssimo jurista peruano Carlos Fernández Sessarego, o cerceamento da liberdade, pela sua gravidade particular, estaria intimamente vinculado ao "dano ao projeto de vida", categoria de dano que reiteradamente é vislumbrada em casos semelhantes na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), como o notável caso Loayza Tamayo Vs. Perú em 1997.
Ainda que visível sob o rótulo de "danos morais", a recente Súmula do STJ nº 647, já observada pela jurisprudência, explicita o caráter grave das violações de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar, e que por sua natureza, deveriam ter as ações indenizatórias imprescritíveis. Além de constituir retrocessos nítidos à vida do lesado, advindo da gravidade dos danos, tais situações não condiziam com o prazo prescricional de cinco anos, ora apresentado pelo artigo 1º do Decreto nº 20.910 /32.
Mesmo em um cenário contemporâneo diferente, mas pelas suas singularidades, que se fundam nas discussões da imprescritibilidade, por tratarem-se de violações gravíssimas dos direitos de personalidade, seria, portanto, o dano existencial imprescritível?
Ao que se apresenta, os riscos de uma autonomização da categoria, tal como ocorrera com o dano estético, têm as mesmas problemáticas de uma imprescritibilidade, a possível transmutação infundada do dano moral para o existencial.
Se por um lado temos mais uma espécie de dano indenizável, dá-se possibilidade de verificarmos um quid pluris pela suposta gravidade da lesão ensejada pela via dos danos existenciais. Por outro, há a banalizadora e incessante busca de enquadrarmos o mero dano moral, já prescrito e constituído de maiores elementos, à apreciação por dano existencial, sem limite temporal. Outrossim, além de diferentes argumentações possíveis, a imprescritibilidade, sem exceções ou delimitações para um dano extrapatrimonial, como o dano existencial, figura-se no risco da natureza essencialmente íntima do lesado, onde qualquer pretensão, e possibilitada pelos malabarismos e criatividade jurídica, poderá ser requerida a qualquer momento.
Seria, afinal, somente uma questão de nomenclatura? Caso for, deve-se ter em mente que a abundante aplicação do dano moral e consequente banalização produziram um efeito restringido de compensação, e que, por vezes, não estabelece uma devida reparabilidade para casos singulares ou verdadeiros hard cases.
Insta afirmar que estamos diante de outra espécie de dano, e que retrata um caráter objetivo, que deverá sempre ser plenamente comprovado pela efetiva mudança radical na vida do lesado, para fazer sentido.
São muitas as preocupações e os desconfortos jurídicos para sua consagração no fértil terreno nacional da responsabilidade civil, ao qual simpatizo com grande parte delas, contudo, devemos efetivamente compreender e verificar se tais situações, de lesões caracterizadoras do dano existencial, estão compreendidas e apreciadas na reparação integral do lesado. Em suma, a lesão ao sistema jurídico é maior quando a reparabilidade não se faz presente no caso concreto, pela ausência de institutos que suprem e garantam a efetiva proteção do lesado.
Ainda que ocorra sua viabilidade num futuro próximo, as delimitações ocorridas em solo italiano, prezando a objetividade intrínseca e comprovada, são fatores basilares para uma correta e justa reparabilidade pelo instituto, ao não se correr o risco de erroneamente confundir-se com o dano moral, perfazendo-se na banalização de mais uma categoria dos danos extrapatrimoniais.