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REFORMA ADMINISTRATIVA: PRIMEIROS PASSOS E PRIMEIRAS SUGESTÕES

A proposta de reforma constitucional da Administração Pública da gestão Bolsonaro, PEC 32/20, inicia a sua tramitação no Congresso Nacional. Na terça-feira (25/5), a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou a admissibilidade da proposta.

O relator na CCJ, o deputado Darci de Matos (PSD-SC), apresentou parecer com apenas três supressões ao texto original da PEC 32/20:

a) Retirou a referência a novos princípios da Administração Pública na cabeça do artigo 37 da Constituição (v.g., imparcialidade, transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança pública e subsidiariedade), sob o argumento de que a inclusão desses enunciados acarretava insegurança jurídica e estimulava o ativismo judicial;

b) Expurgou o enunciado que proibia os servidores ocupantes de cargos típicos de Estado de exercerem qualquer outra atividade remunerada, sob a alegação de traduzir limitação à liberdade de trabalho e atividade cumulativa mesmo quando houvesse compatibilidade de horários; e, por fim

c) Eliminou a previsão que atribuía prerrogativa ao presidente da República para, por decreto, extinguir entidades da Administração Pública autárquica e fundacional, sob o fundamento dessa medida afetar gravemente o sistema de freios e contrapesos inerente à separação de poderes.

O parecer do relator foi aprovado por maioria simples (39 votos a favor e 26 votos contrários). A PEC 32 segue para a Comissão Especial e, na sequência, será votada em dois turnos pelo Plenário da Câmara, sendo aprovada se reunir o apoio de 308 deputados. Se ultrapassar as duas votações na Câmara, segue ao Senado, sendo aprovada nesse órgão se obtiver o acolhimento de 49 senadores.

Penso que na nova fase de tramitação, no âmbito da Comissão Especial, não devem os críticos da PEC 32 original limitar o discurso a avaliações genéricas negativas, sem oferecimento de outros diagnósticos e enunciados normativos alternativos. Manter o discurso geral reativo é contraproducente; mais eficaz é ampliar o debate e oferecer alternativas que evidenciem as próprias contradições e insuficiências da proposta original. "A consciência é o mais cru dos chicotes", já sentenciava Machado de Assis.

Escrevi sobre a proposta original artigo severamente crítico [1]. Porém, vencida a etapa da admissibilidade, entendo útil oferecer sugestões ao aperfeiçoamento do texto em análise e ao próprio regime administrativo que se pretende alterar. Em face dos limites do texto, nessa primeira abordagem trato dos chamados "cargos de liderança e assessoramento" (artigo 37, V), na redação da PEC 32/20, tema que convoca tanto a questão da criação abusiva de cargos em comissão (plano legislativo) quanto a questão do provimento abusivo dos cargos em comissão (plano administrativo).

Criação abusiva e provimento abusivo de cargos em comissão
As exigências ético-jurídicas do princípio republicano e os princípios constitucionais da Administração Pública tanto podem servir de parâmetro de controle de constitucionalidade para aferir a legitimidade de leis de criação de cargos públicos em comissão quanto informar o controle administrativo e judicial da legitimidade do próprio ato administrativo de provimento dos cargos denominados de "livre nomeação e exoneração" (artigo 37, II, da CF). A voz "livre" é enganosa na Administração Pública, pois a liberdade do administrador sempre é prerrogativa condicionada ao interesse público e aos princípios constitucionais da administração, com destaque para os referidos na cabeça do artigo 37 da Constituição Federal.

No plano prático, qual o significado desse entendimento? Muito já foi definido e explorado pela doutrina e pela jurisprudência. Um consenso mínimo em matéria de criação de cargos em comissão pode ser resumido no seguinte:

a) Cargos em comissão não podem ser criados por decreto (TJDF, Acórdão 842488, ADI, Cruz Macedo, CE, DJE 20-01-2015);

b) Atribuições dos cargos em comissão devem estar explicitadas em lei e não delegadas para enunciação em atos administrativos infralegais (ADI 4125, Cármen Lúcia, Pleno, DJe 14-02-2011);

c) As atribuições legais previstas devem corresponder a funções de direção, chefia e assessoramento, sendo inconstitucional a criação de cargos em comissão para funções técnicas e executivas ordinárias (ADI 1.269, Celso de Mello, Pleno, DJe 28-8-2018; ADI 3.706, Gilmar Mendes, Pleno, DJ 5-10-2007);

d) As funções dos cargos em comissão, no domínio material referido, devem pressupor vínculo de fidúcia especial com a autoridade política (ADI 3145, Luiz Fux, Pleno, DJe-232 24-10-2019; AI 309399 AgR, Dias Toffoli, 1ª T , DJe 20-04-2012);

e) O provimento dos cargos comissionados não pode servir a nepotismo próprio ou cruzado (STF, Súmula Vinculante 13);

f) As habilidades, competências e aptidões associadas a cargos em comissão não podem atinar com o desempenho usual de tarefas burocráticas, rotineiras e operacionais permanentes (RE 1.041.210 RG, Dias Toffoli, j. 27-9-2018, Pleno, DJE 22-5-2019, Tema 1.010; ADI 3145, Luiz Fux, Pleno, DJe-232 24-10-2019);

g) Há cargos de carreira que não podem ser definidos como cargos de assessoramento eventual e precário por direta previsão constitucional deferente do concurso público (exemplos: advogados públicos, procuradores estaduais e municipais, ex vi do artigo 131 e 132, CF), ressalvado os cargos de cúpula (ADI 4.261, Ayres Britto, Pleno, DJe 20-8-2010; ADI 4.843 MC-ED-REF, Celso de Mello, Pleno, DJE 19-2-2015);

h) Lei não pode adotar mecanismos de eleição para, por voto secreto, definir o provimento de cargos em comissão administrativo, com exclusão da participação do chefe do Poder Executivo (ADI 123, Carlos Velloso, j. 3-2-1997, Pleno, DJ 12-9-1997; ADI 2.997, Cezar Peluzo, Pleno, DJE 12-3-2010);

i) Lei pode criar cargos cujo provimento esteja condicionado à indicação do chefe do Poder Executivo e à aprovação pelo Senado Federal ou, por simetria, pela Assembleia Legislativa, na forma do artigo 52, III, f, da CF (ADI 2.225, Dias Toffoli, Pleno, DJE 30-10-2014);

j) Lei que cria cargos em comissão deve observar o princípio da proporcionalidade, pois "deve ser guardada correlação entre o número de cargos efetivos e em comissão", sendo inconstitucional a criação de número excessivo de cargos comissionados em face do número de cargos efetivos providos (RE 365.368 AgR, Ricardo Lewandowski, j. 22-5-2007, 1ª T, DJ 29-6-2007; ADI 4.125, Cármen Lúcia, j. 10-6-2010, Pleno, DJE 15-2-2011; RE 1.041.210 RG, Dias Toffoli, j. 27-9-2018, Pleno, DJE 22-5-2019, Tema 1010).

Parte desses consensos foi sintetizada no Enunciado do Tema 1.010 do STF, que possui eficácia vinculante:

"A criação de cargos em comissão somente se justifica para o exercício de funções de direção, chefia e assessoramento, não se prestando ao desempenho de atividades burocráticas, técnicas ou operacionais; b) tal criação deve pressupor a necessária relação de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado; c) o número de cargos comissionados criados deve guardar proporcionalidade com a necessidade que eles visam suprir e com o número de servidores ocupantes de cargos efetivos no ente federativo que os criar; e d) as atribuições dos cargos em comissão devem estar descritas, de forma clara e objetiva, na própria lei que os instituir".

Esses são limites razoáveis para inibir a politização excessiva da função pública, assegurar um mínimo de profissionalização no RH público, preservar a memória do Estado, e evitar que a força de trabalho predominante nos órgãos públicos seja volátil, instável e sujeita a captura por agentes privados e políticos. São limites que buscam ao menos inibir transgressões grosseiras ao igualitário acesso a cargos por concurso público, forma por excelência de identificação inicial do mérito profissional objetivo [2].

Porém, o que essas decisões judiciais também revelam — e inumeráveis outras — é a tentativa permanente e ainda frequente no cenário político brasileiro de subversão do caráter excepcional da criação de cargos de provimento em comissão, de modo a reafirmar práticas clientelistas que elevam a despesa pública e favorecem esquemas de dízimo partidário e transferência individual e clandestina de recursos públicos para agentes políticos (as famosas "rachadinhas").

Foi uma conquista importante da Emenda Constitucional 19/1998, também denominada reforma gerencial da Administração, haver inserido no artigo 37, V, da Constituição, que os cargos de provimento discricionário somente poderiam ser criados para funções de direção, chefia e assessoramento. Muitos esquecem dessa origem. Esses limites materiais reforçaram as defesas do Estado republicano.

Direção, chefia e assessoramento constituem limites materiais à criação de cargos em comissão porque exibem um núcleo mínimo de sentido objetivo. Não basta para legitimar a criação de cargos de provimento em comissão a demanda por uma especial fidúcia em face da autoridade — elemento subjetivo imprescindível, porém insuficiente para o atendimento do preceito constitucional. Como exceção ao concurso público, somente se justificam cargos comissionados ante o princípio da igualdade, da moralidade e da eficiência, se suas atribuições forem vinculadas a um conjunto especial de habilidades, aptidões e competências incomuns aos exercentes de funções técnicas e burocráticas rotineiras.

Os cargos de provimento discricionário são legítimos apenas quando estruturados de forma a ampliar a capacidade de resposta administrativa às decisões políticas da autoridade públicacomo instrumentos de preparação e tradução dessas decisões para os demais escalões da administração pública. Em termos mais modernos: os cargos em comissão, à luz dos princípios da Administração Ppública, são legítimos quando exigem habilidades estratégicas e analíticas incomum, próprias de uma elite administrativa capaz de diagnosticar problemas, planejar programas, elaborar acordos, negociar com equipes e inovar em nível gerencial e estratégico. Os cargos em comissão são legítimos quando assumem funções de liderança pública e assessoramento superior da administração e exigem habilidades, aptidões e competências especiais de seus exercentes.

Os titulares de cargos em comissão são o elo entre os políticos e os agentes administrativos comuns, efetivos e permanentes do aparato do Estado. Não devem ser a maioria dos cargos públicos providos em qualquer órgão público permanente ou, menos ainda, compor a única força de trabalho em órgãos públicos de atuação contínua. Não devem existir diretores e chefes sem dirigidos ou chefiados. Não são admissíveis assessores sem domínio técnico algum ou detentores de domínio técnico incompatível com as funções atribuídas. Viola a Constituição a nomeação de comissionados despreparados para o exercício das tarefas de liderança exigentes de seus cargos. Não basta o vínculo de confiança, pois a Administração Pública não é família, nem sociedade comercial, nem quadrilha. Essas limitações decorrem diretamente do texto constitucional, desde que percebido sob o prisma dos princípios republicanos e não sob o ângulo do ethos clientelista, cimentado em fidelidade, privilégio e obediência pessoal [3].

Lamentavelmente, a EC 19/98 enunciou essa importante limitação material à criação de cargos comissionados, mas não a desenvolveu com maior explicitação. Deixou de referir a necessária proporcionalidade entre o número de cargos de livre designação e o número de cargos efetivos nos órgãos públicos. Tampouco definiu se essa proporcionalidade deve observar o número de cargos criados ou o número de cargos providos, pois seria fácil expediente ilusório criar grande número de cargos efetivos, mas não promover concursos públicos, limitando-se a prover os cargos em comissão. Embora esses limites implicitamente decorram da adoção do concurso público como regra de acesso aos cargos públicos, a ausência de uma explícita referência à proporcionalidade ensejou que em muitos órgãos permanentes, ainda hoje, a maior parte do quadro seja formado por agentes investidos precariamente, em cargos de confiança, muitos dos quais sem expressar qualquer atribuição objetiva de liderança pública ou assessoramento superior.

Embora a EC19 também tenha avançado ao estabelecer a necessidade de um percentual mínimo de acesso interno aos cargos comissionados, com vistas a favorecer a nomeação para esses postos de servidores de carreira, também não ofereceu parâmetros para esse percentual mínimo, entregando a definição ao legislador ordinário que, como esperado, tem-se revelado desinteressado de estabelecer limites à influência da designação política, com raríssimas exceções, quase sempre no âmbito da União e por via infralegal. Por igual, é equívoco e parece dizer menos do que pretende o enunciado do inciso II do artigo 37, da Constituição, com a redação que lhe foi conferida pela EC nº 19/98: não é apenas o concurso público que deve ser consentâneo com "a natureza e a complexidade do cargo ou emprego".

A investidura em qualquer cargo ou emprego público, de natureza efetiva ou de provimento em comissão, deve ser consentânea à "natureza e a complexidade do cargo ou emprego". A discricionariedade no provimento de cargos, quando admitida, é discricionariedade estruturada, delimitada por exigências materiais de avaliação. Demonstrada a ausência manifesta do preenchimento de requisitos do cargo, inclusive técnicos, a investidura deve ser anulada, tendo em conta o fenômeno da redução da discricionariedade a zero ou do vício de avaliação.

Essas lacunas da EC19 podem ser supridas no debate em curso, com medidas pertinentes, a exemplo dos enunciados contemplados na PEC 110/2015, da relatoria do senador Álvaro Dias, pronta para deliberação de Plenário do Senado desde 7/6/2016, cujo texto pode ser incorporado à proposta a ser votada na Comissão Especial da Câmara.

A PEC 32/2020 original segue na contramão de todas essas considerações: não limita a criação abusiva de cargos em comissão e o seu provimento abusivo, ao contrário. Propõe que os cargos de "liderança e assessoramento" sejam destinados "às atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas”, formulação vaga e imprecisa, que regride a estado de coisas anterior à EC 19/98. Funções simplesmente técnicas pelo texto da PEC 32 poderiam ser loteadas e exercidas sem neutralidade e profissionalismo. Não se estabelece proporção entre o número de cargos efetivos, ocupados ou vagos, e os cargos em comissão; suprime-se a previsão de "funções de confiança", postos gerenciais hoje reservados a servidores concursados; e, por fim, não é fixado qualquer patamar mínimo de ocupação de cargos de liderança e assessoramento por servidores concursados, permitindo o amplo loteamento das posições de chefia.

No plano do provimento, a PEC 32 não exige nível superior, treinamento, qualificação técnica ou preparo em escolas de governo para o acesso a "cargos de liderança e assessoramento", na contramão de meritórias iniciativas no plano infraconstitucional já vigentes [4].

As normas propostas na PEC 32 configuram nesse tópico uma contrarreforma administrativa, um movimento de reação aos avanços da EC 19/98 na limitação à criação abusiva de cargos comissionados. São propostas que não ampliam a profissionalização da política de pessoal, não melhoram a qualidade dos agentes públicos de liderança, não reduzem custos, não incentivam o interesse de novos e melhores talentos pelo ingresso em funções públicas e, para agravar, estimulam a multiplicação sem limite dos cargos de nomeação política.

A importância da adequada composição dos quadros de elite do serviço público em uma sociedade hipercomplexa conflita com essa avenida aberta ao desvio clientelista e à improvisação administrativa.