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PRECISAMOS FALAR SOBRE SIMPLIFICAÇÃO TRIBUTÁRIA: A SAGA DO GATO E O RATO

Ao longo da história, o tributo sempre esteve no centro dos mais diversos embates políticos e econômicos. Como venho falando [1], sempre foi desenhado como o patinho feio da história, mas, até os dias atuais, desconhece-se qualquer modelo de Estado em que a participação dos tributos não seja a principal fonte de receitas dos gastos públicos. Inclusive, Leonard E. Burman e Joel Slemord, dois economistas ex-integrantes das equipes de análise de tributos do governo norte-americano, apontam que uma das razões pelas quais os meios alternativos de receita não terem relevância no contexto dos Estados Unidos da América (EUA) se explica pela ineficiência e distorções que podem causar [2].

Estando certo o seu valor, devemos passar a discutir os termos de um sistema tributário eficiente e, acima de tudo, mais justo.

No Brasil, a criação da Nota Fiscal Eletrônica (Nfe, ajuste Sistema Nacional de Informações Econômicas Fiscais 07/05) e, em seguida, a instituição do Sistema Público de Escrituração Digital (Sped, Decreto 6.022, de 22 de janeiro de 2007) provocaram uma verdadeira revolução no campo da administração e da arrecadação dos tributos administrados pela Receita Federal do Brasil (RFB). No resultado de 2020, por exemplo, alcançaram-se as cifras de R$ 1,5 trilhão [3], mantendo o volume de crescimento do gráfico em nível exponencialmente superior em relação aos anos anteriores da implantação [4]. A evolução não só se verificou no valor médio recuperado por auditor-fiscal, como no grau de acerto da fiscalização [5].

Efetivamente, o uso de uma tecnologia disruptiva permitiu um verdadeiro salto na produtividade do Fisco, reduzindo, gradativamente, a possibilidade de sonegação fiscal. A partir do momento em que toda escrituração contábil, refletindo cada movimentação dos negócios, passa a compor a massa de dados recepcionada pelos Fiscos, erros ou omissões dos contribuintes dificilmente escapam do constante cruzamento de dados. É possível haver quase que um monitoramento constante, uma espécie de Big Brother Brasil (BBB) fiscal, principiando desde a saída ou entrada de NFe's. Dificilmente, alguma rotina passa despercebida.

Com o Fisco dentro de sua atividade, os contribuintes tiveram que investir, proporcionalmente, em um sistema de governança, compliance e gestão. O desenvolvimento de um sistema de integridade, apoiado em inteligência, passou a ser condição de sobrevivência. A consolidação dessas práticas, aliás, estendeu-se para os demais setores da organização empresarial, consagrando-se uma cultura em que não mais as interpretam como gasto, mas sim como investimentos. Sem muito exagero, conjectura-se certa relação no desenvolvimento de novas tecnologias, desenhos produtivos e de infraestrutura, operações de estocagem e distribuição, escrituração etc., em razão dessa inevitabilidade de se aderir à padronização e transparência exigidas pelos Fiscos.

Não poderíamos conversar a respeito da simplificação do sistema tributário sem tratar das obrigações acessórias. Por isso, mencionamos alguns de seus avanços, mas precisamos enfrentar alguns de seus gargalos. Sem dúvida alguma, parcela significativa é de ordem paradigmática. A relação entre Fisco e contribuinte persiste imersa no imaginário lúdico do saudoso desenho "Tom e Jerry", sendo necessário enfrentá-lo.

Cabe ao Estado induzir os contribuintes a aderir à legislação tributária e fomentar o crescimento do grau de compliance. Na esfera federal, há diversos exemplos do incentivo à figura do "contribuinte legal", tais como a Lei 13.988/2020, que traz os requisitos e as condições para a União, bem como suas fundações e autarquias, para que possam transacionar obrigações de natureza tributária ou não tributária; e as Portarias da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) 11.956/2019 e 2382/2021, que regulamentam a transação na cobrança da dívida ativa.

Outras rotinas são os projetos de autorregularização promovidos no âmbito da RFB. O próprio Sped deve continuar implementando melhorias para reduzir os custos de conformidade (automatizando rotinas, sincronizando dados, diminuindo o envio de obrigações acessórias e de informações já enviadas e recepcionadas pelo Fisco mediante uniformização etc.), bem como criar mecanismos para reduzir erros humanos nos lançamentos e envios (inclusive, quando importar em pagamento a maior).

Governo e cidadãos devem se ver como parceiros, servindo-se da tecnologia e da modernização na troca de informações como a base de projeto de maior aproximação, um tipo especial de protocooperação. Nesses termos, a conformação de um "governo eletrônico" não pode frustrar a expectativa que se deposita nele, para acabar virando apenas um ônus para o contribuinte [6].

Ao menos idealmente, a eficiência na arrecadação e na recuperação do crédito deveriam desempenhar papel fundamental na carga tributária, uma vez que, havendo menos gastos na atividade e maior aderência do contribuinte, a tendência seria que o governo não necessitasse elevar os tributos cobrados para compensar o desperdício e a evasão. No cenário contrário, evidentemente seriam os bons contribuintes e o consumidor final quem sairiam perdendo, pois é sobre eles que a alta de tributos repercutiria. Não é apenas um apelo pragmático, mas, sobretudo, ético e moral, que deve responder às seguintes indagações: em que modo de vida que queremos viver? Em que padrão de sociedade pretendemos nos relacionar?

Debruçando-se sobre a questão da governança tributária global, Magalhães aponta a preocupação das mais diversas organizações e instituições no plano do Direito Internacional com a temática da tributação [7]. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, empenha esforços na implementação da Convenção-Modelo [8], que trata das trocas de informações e assistência mútua entre os Fiscos dos países integrantes, a fim de se evitar a evasão fiscal e a concorrência desleal. Instituições financeiras, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), são, igualmente, grandes financiadores de projetos tributários, como a promoção da implementação do Imposto sobre o Valor Agregado (IVA) e do aperfeiçoamento dos mecanismos fiscalizatórios e de controle.

Também perseguindo uma maior aderência, países como a Alemanha, tradicionalmente, acolhem bem a regulamentação da tipificação do tributo mediante edição pelo Executivo, vinculando o Judiciário, quando a medida está fundada no princípio da igualdade [9]. Os EUA, igualmente, seguem o mesmo caminho de flexibilização [10], não tão rígido quanto aquele construído pela retórica positivista vigente no Brasil  [11]. Se duas das maiores economias do mundo, classificadas dentre as mais liberais, não se escondem por detrás de teorias formal-individualistas, mostra-se inescusável que nossa comunidade jurídica não revolva o solo hermenêutico em que está arraigada.

Como lembra Ronald Dworkin [12], não há um plano ou sistema que seja politicamente neutro, uma vez que quaisquer dos arranjos institucionais previstos irão, de alguma forma, favorecer alguns em detrimento de outros. Envolve sempre escolhas éticas, morais e políticas, que se misturam com os complexos fenômenos sociais e econômicos, havendo, no centro de tudo isso, pessoas reais. O direito é interpretativo e, como tal, extrai a sua validade da realidade em que está inserido. Todavia, o senso comum teórico censura o que se enxerga fora dele, normaliza a desigualdade social, naturalizando-a, mediante um discurso que abstrai, impessoaliza, despersonifica e, com isso, encobre a realidade [13]. Daí se impõe romper com o paradigma de que a tributação, necessariamente, rivalizaria com o direito de propriedade e com a liberdade individual. Em vez disso, urge a reformulação das teorias vigentes, com a criação de novos conceitos, significados e aplicações que levem em consideração efetivas bases democráticas, dotando-lhe de um sentido realizador dos objetivos reais de distribuição de riquezas e oportunidades.

O ideal de simplificação da tributação não deve levar em consideração apenas o volume da legislação, pois a quantidade de palavras, tais como as encontradas nos regulamentos, instruções normativas e soluções de consulta, muitas vezes visam a esclarecer a previsão legal. Nem tampouco deve se servir do custo implicado na fiscalização e no compliance como critério, tendo em vista que o relaxamento nos requisitos pode acabar aumentando o déficit fiscal. Em verdade, a questão central a se avaliar é o equilíbrio de todos esses elementos com o valor social de o crédito ser disponibilizado para mais pessoas que "merecem" [14]. Nesse sentido, a estrutura e o nível de tributação devem pressupor, na maior medida possível, os modos mais eficientes de redistribuição de renda na busca da equidade [15]. O próprio desenvolvimento e uso das ferramentas tecnológicas devem pressupor essa nova conformação, não se limitando a apenas a ocupar o espaço instrumentos substituídos, sob pena de já nascerem anacrônicas.

Em conclusão, a simplificação, embora bem-vinda, não pode se transformar num fetiche. Se, por um lado, deve-se privilegiar um ambiente mais ágil, transparente e menos burocrático para o cumprimento das obrigações, por outro, há limites e custos a serem observados. Igualmente, existe uma questão paradigmática para se desentulhar, removendo-se certos medos e preconceitos. Resumindo, não se deve mais procurar respostas a partir das mesmas perguntas, é vital desprender-se das amarras que impedem o novo de vir à tona.