PORQUE É ACERTADA A SUSPENSÃO DE DESPEJOS DURANTE A PANDEMIA
Junho começa com uma decisão emblemática do Supremo Tribunal Federal envolvendo o direito à moradia. Em recente posicionamento, o ministro Barroso deferiu parcialmente o pedido de cautelar formulado nos autos da ADPF nº 828, contra desocupações, despejos e reintegrações de posse encampados pelo Poder Público.
Em sua fundamentação, o ministro fez uma compilação das normas existentes no ordenamento jurídico brasileiro tratando de situações análogas, mencionando algumas iniciativas no âmbito estadual suspendendo ou restringindo desocupações como medida de enfrentamento à Covid-19, a exemplo da Lei nº 9.020/2020 (RJ), Lei nº 9.212/2021 (PA), Lei nº 5.429/2021 (AM), Lei nº 6.657/2020 (DF) e Lei nº 11.676/2020 (PB). No âmbito federal, destacou-se a previsão expressa do artigo 9º da Lei nº 14.010/2020 (RJET) suspendendo a liminar para a desocupação do imóvel urbano nas ações de despejo de que trata os incisos I, II, V, VII, VIII e IX do §1º do artigo 59 da Lei nº 8.245/2020.
Sob esse panorama, o ministro Barroso delimitou algumas situações de fato que seriam albergadas pela medida cautelar, com consequências jurídicas distintas; são elas: 1) ocupações antigas, anteriores à pandemia; 2) ocupações recentes, posteriores à pandemia; 3) despejo liminar de famílias vulneráveis. No primeiro caso, determinou-se que a remoção das ocupações consolidadas ficarão suspensas pelo prazo de seis meses; no segundo caso, determinou-se que os agentes estatais poderão agir com a finalidade de evitar a consolidação de novas ocupações irregulares, desde que com a devida realocação em abrigos públicos ou em locais com condições dignas (sublinhe-se); no terceiro caso, prorrogou-se a suspensão do despejo liminar de pessoas vulneráveis (sublinhe-se).
O relator também frisou situações que não estariam alcançadas pela cautelar, destacando-se: 1) quando a ocupação for realizada em áreas suscetíveis à deslizamentos, inundações ou processos correlatos; 2) quando a desocupação for necessária para o combate do crime organizado; 3) quando houver precedente do Supremo Tribunal Federal ou legislação local conferindo proteção mais abrangente para os grupos vulneráveis.
Considerando a relevância do debate, cada hipótese merece ser analisada com mais detalhes. Sobre o despejo liminar em locações residenciais, ponto a ser ressaltado é a aplicação do artigo 9º da Lei nº 14.010/2020 (RJET), com a postergação no tempo do prazo de suspensão já determinado pelo legislador, tendo em vista que a causa subjacente à previsão normativa ainda não cessou. Quer dizer, se o que levou o legislador a suspender provisoriamente as liminares de despejo foi o reconhecimento de que o isolamento social é fundamental ao enfrentamento à pandemia da Covid-19, e se a habitação continua sendo indispensável para que seja cumprida a recomendação das autoridades sanitárias, então a postergação dos efeitos do artigo 9º da Lei 14.010/2020 é consequência lógica da própria continuidade da crise sanitária e econômica no país.
Pode-se dizer que é um recurso a analogia, palavra de origem grega, com o significado de semelhança ou paridade. A utilização da analogia deve ter o cuidado de identificar a razão da previsão legal análoga. De modo que: "Se a razão desta, da previsão legal, justificar o caso a ser decidido aplica-se a analogia. Caso contrário, não. Vale aqui, o aforisma romano: ubi eadem legis ratio, ubi eadem legis dispositio" [1]. Ou seja, "onde há igual razão, há igual disposição": Ubi eadem est ratio eadem juris disposit teiosse debet [2].
Tal forma de interpretação e aplicação do direito também se encontra consignada no Livro 15 do Digesto: "As leis ou senatusconsultos não podem prever minuciosamente todas as ocorrências; porém, quando o seu sentido é claro em alguma de suas partes, o juiz deve estendê-lo aos casos semelhantes, proferindo nessa conformidade o seu julgamento" [3].
A nosso sentir, a decisão do ministro Barroso não é no sentido de estender a vigência da Lei nº 14.010/2020, mas sim no intuito de recorrer a analogia legis na construção da decisão. Não se trata da primeira decisão proferida pelo STF que faz uso da analogia legis com o efeito prático de postergar os efeitos de uma norma cuja vigência se deu por prazo certo.
Em 30/12/2020, o ministro Lewandowski deferiu a cautelar na ADI nº 6.625 para, na prática, estender a vigência de dispositivos da Lei nº 13.979/2020 (Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019), após admitir que a intenção do legislador foi manter "medidas profiláticas e terapêuticas extraordinárias, preconizadas naquele diploma normativo, pelo tempo necessário à superação da fase mais crítica da pandemia, mesmo porque à época de sua edição não lhes era dado antever a surpreendente persistência e letalidade da doença".
Cabe ainda mencionar um agravante a ser considerado no caso da suspensão da liminar de despejo prevista pelo artigo 9º da Lei nº 14.010/2020. É que o dispositivo, inicialmente, foi vetado pela presidência da República, somente entrando em vigor após a derrubada do veto presidencial pelo Senado Federal, o que ocorreu em 8/9/2020 [4]. Considerando que a suspensão das liminares foi prevista até o dia 30/10/2020, criou-se uma norma que teve sua vigência por menos de dois meses, sem ter cumprido a missão de atenuar o problema das locações urbanas em tempos de pandemia. Ainda sobre o tema dos despejos liminares, é importante desconstituir alguns mitos que costumam cercar o tema. Em nenhum momento houve a suspensão de toda e qualquer ordem de despejo. O que foi suspenso foi somente a liminar de despejo tratada no §1º do artigo 59 da Lei nº 8.425/1991.
Nas hipóteses legais, o cumprimento da ordem de despejo pode ser realizada no exíguo prazo de 15 dias, sem a oitiva do locatário, desde que prestada caução equivalente a 3 meses de aluguel. Trata-se de uma técnica processual existente na ação de despejo que posterga o exercício do contraditório, antecipando o provimento judicial. Por excepcionar o contraditório, trata-se de um rol numerus clausus e "não se permite elastério às situações tipificadas no artigo", conforme ensina Venosa [5].
Vale dizer que a mera falta de pagamento, por si só, nunca justificou a liminar de despejo. É preciso também que o contrato esteja desprovido de qualquer garantia, seja por não ter sido contratada, seja por sua extinção [6]. Existindo fiador, por exemplo, não é e nunca foi possível a concessão da liminar [7]. A suspensão do dispositivo possui assim uma razão de ser. Se a postergação do contraditório já é medida excepcional, ainda mais o deve ser em um cenário de crise sanitária.
Diante da situação excepcional de pandemia, pretende-se evitar o despejo do locatário de maneira abrupta, sem a sua manifestação nos autos. Esse entendimento não é incentivo à inadimplência, por não impedir o despejo após o contraditório, muito menos o manejo dos meios ordinários para a cobrança dos aluguéis. Ultrapassando o caso das locações residenciais, a cautelar também tratou das ocupações urbanas coletivas.
Embora o RJET tenha restado omisso sobre o tema, estando a matéria em análise pelo Senado Federal no Projeto de Lei nº 827/2020, é certo que há em nosso ordenamento jurídico fundamentos aptos a justificar a suspensão provisória das ordens de desocupação de imóveis utilizados para fins de moradia, enquanto perdurarem os efeitos da pandemia da Covid-19. Isso é possível pela própria abertura hermenêutica proporcionada pelos direitos fundamentais, tendo em vista utilizarem como técnica, por diversas vezes, conceitos jurídicos abertos ou cláusulas gerais, como é a função social.
A função social não se sobrepõe ao direito de propriedade. No entendimento aqui defendido, o direito de propriedade poderá ser condicionado ou limitado pela função social, à luz da chamada "teoria externa" [8]. Significa que o direito à propriedade não é absoluto e pode sofrer restrições, limites e intervenções [9], como todos os direitos fundamentais. É de se louvar a contenção do ministro Barroso na construção da decisão sob análise, respeitando os espaços de autonomia do direito civil.
Assim, a proteção do Estado a vida, liberdade e propriedade nas relações privadas deve ocorrer pela mediação normativa de direito privado, e não da Constituição; tendo em vista a necessidade de separação entre Estado e Sociedade Civil enquanto conquista jurídica [10].
Na Alemanha, desde o julgamento do emblemático caso Lüth pelo Tribunal Constitucional Federal em 1958, prevalece justamente o entendimento de que os direitos fundamentais não afetam diretamente as relações de direito privado, provocando apenas um efeito indireto nas situações jurídicas privadas, posto que os atos pertinentes a elas sejam limitados pelos direitos fundamentais a partir de uma interpretação a luz destes direitos; daí a ideia de irradiação de efeitos do direitos fundamentais nas relações privadas [11].
Segundo Otávio Luiz Rodrigues Júnior, não há que se falar em concorrência de espaços entre a Constituição e o legislador ordinário, posto que "este último tem uma função de grande relevo para a democracia: ao reduzir o grau de abstração constitucional, restringe a esfera de discricionariedade de outros agentes públicos (o administrador e o juiz), impondo-lhes uma valoração prévia, democrática e representativa das pautas axiológicas escolhidas pelo povo em sua regular e periódica substituição de seus procuradores ao Parlamento" [12].
Ao se valer, portanto, de regras da legislação ordinária de modo a mediar a irradiação de direitos fundamentais em tais relações entre proprietários e posseiros, a decisão do ministro Barroso ganha em previsibilidade e respeita a autonomia do direito privado. Mas, como nem tudo são flores, sobretudo no Supremo Tribunal Federal, a decisão também deixa lacunas que poderão limitar a aplicação prática do comando judicial.
Um exemplo é o uso do termo "pessoa vulnerável" ao tratar do despejo liminar nas locações residenciais, sem estabelecer qualquer parâmetro para aferir a aludida vulnerabilidade. A vulnerabilidade será comprovada pela renda per capita? A vulnerabilidade aqui entendida é somente financeira? Se até a hipossuficiência, presumida no Código de Processo Civil, é matéria controversa, o que se dirá do termo "pessoa vulnerável"?
Outro ponto de difícil compreensão: as ocupações ocorridas após 20/3/2020 podem ser desfeitas "desde que as pessoas sejam levadas para abrigos públicos ou que de outra forma se assegure a elas moradia adequada". Mas a quem cabe tal obrigação? Ao particular? Ao Poder Público? Aliás, a sentença em ação possessória envolvendo apenas particulares poderá criar obrigações para o Poder Público? Veja-se que, nas ações possessórias multitudinárias, o § 4º do artigo 565 do Código de Processo Civil permite que o juízo determine a intimação dos órgãos responsáveis pela política agrária e pela política urbana da União, de Estado ou do Distrito Federal, e de Município onde se localize o bem em disputa, para que participem da audiência de tentativa de conciliação ou de mediação para que informem se têm interesse na causa e se podem contribuir para a pacificação da lide possessória [13].
Isto, contudo, não significa necessariamente uma eventual transferência da responsabilidade do particular para o ente estatal quanto a realocação dos ocupantes do imóvel. Lançam-se as bases de um debate que certamente vai ocupar espaço nos Tribunais e poderá acabar por comprimir o alcance da decisão.
Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFam).