EFEITOS DA REFORMA ADMINISTRATIVA SOBRE OS ATUAIS SERVIDORES
Tem sido anunciado que a reforma administrativa (PEC 32/2020) criará novas regras apenas para os futuros servidores públicos e que os atuais não serão atingidos por ela.
Ocorre que, examinando o texto da proposta, não é isso o que se verifica. Nota-se que as regras de transição da PEC (artigos 2º a 9º) não são suficientes para preservar os presentes servidores da incidência do novo regime. O atual texto, em diversos pontos, atinge diretamente os atuais agentes administrativos, conforme será demonstrado.
Falamos em atingir diretamente os servidores atuais para nos referir a regras especificamente aplicáveis a eles. Tem sido comentado que a reforma poderá deteriorar o serviço público, enfraquecendo a meritocracia e a segurança jurídica dos efetivos, sem gerar efetiva economia ao erário. Sob essa ótica, mesmo que as novas regras se apliquem apenas aos futuros agentes, elas indiretamente afetarão também os atuais, caso as mudanças realmente degenerem o serviço público. Tal aspecto poderá ser objeto de uma análise futura. Neste trabalho, focaremos os dispositivos que incidem diretamente sobre os presentes servidores, analisando-os e formulando sugestões de alterações ao seu texto.
Para preservar os agentes de hoje dos efeitos da reforma é necessário que as regras de transição nela veiculadas efetuem essa proteção. Isso é importante diante do entendimento do STF de que não existe direito adquirido a regime jurídico [1], de modo que, se as regras de transição não ressalvarem expressamente a aplicação das normas futuras aos servidores atuais, eles poderão ser alcançados pelas novas disposições.
Examinando as regras de transição, nota-se que elas não preservam de forma adequada o regime jurídico dos atuais servidores. Por exemplo, o caput do artigo 2º prevê que aos servidores atuais será garantido um regime jurídico específico. Porém, com exceção dos seus três incisos e dois parágrafos, o artigo não esclarece em que consistirá exatamente esse regime específico. Adiante retornaremos a esse ponto.
Já o inciso II do caput do artigo 2º assegura aos servidores atuais a não aplicação do novo inciso XXIII do artigo 37 da Constituição Federal, caso haja lei vigente em 1/9/2020 que tenha concedido os benefícios nele previstos, exceto se houver alteração ou revogação da referida lei. Esse inciso vedará, por exemplo, férias acima de trinta dias por ano, adicional por tempo de serviço, licença-prêmio, redução de jornada sem redução de remuneração [2], aposentadoria compulsória como punição, promoção por tempo de serviço e parcelas indenizatórias sem previsão em lei.
Boa parte desses direitos não são assegurados aos servidores administrativos, seja por serem previstos apenas para juízes e membros do Ministério Público (que não estão na reforma), por exemplo, férias superiores a trinta dias e aposentadoria compulsória como punição [3], [4]; seja por já terem sido revogados, como a licença-prêmio e o adicional por tempo de serviço, extintos na União desde 1997 e 1999 [5], [6], respectivamente; seja, ainda, por terem sido vedados pelo STF, a exemplo de parcelas sem previsão legal [7].
Quanto aos direitos que alguns ainda possuam, por exemplo, adicional por tempo de serviço obtido por servidor federal antes de 1997, promoção por tempo de serviço nos termos da lei, férias de vinte dias por semestre para os que operam com raios X [8], o artigo 2º, II, da PEC permite que eles sejam posteriormente revogados por lei, o que contraria o discurso de que a reforma não afetará os presentes servidores. Para corrigir isso, parece-nos suficiente a alteração do inciso II para suprimir a expressão final "exceto se houver alteração ou revogação da referida lei".
Já o inciso III do artigo 2º prevê que aos servidores atuais (para os quais, segundo o caput, é previsto um regime jurídico específico) serão assegurados os demais direitos previstos na Constituição. A redação é nebulosa. Que demais direitos são esses? Os atualmente previstos ou aqueles a serem inseridos pela PEC para os futuros agentes?
Por exemplo, o artigo 39 da CF proposto prevê que lei complementar federal estabelecerá normas gerais para os servidores de todos as esferas. Sem entrar no debate da provável ofensa à autonomia dos entes subnacionais, pergunta-se: os atuais servidores ficarão sujeitos às regras dessa futura lei? Se sim, então a PEC estará afetando eles, principalmente porque não se sabe que regras essa lei de caráter nacional estabelecerá, inclusive pela indeterminação dos conceitos na nova redação do artigo 39.
Outro caso refere-se à perda do cargo por servidor com estabilidade. Hoje o artigo 41 da CF prevê que o servidor estável só perderá o cargo por sentença judicial transitada em julgado, processo administrativo ou avaliação periódica de desempenho na forma de lei complementar. Mas as novas regras propostas dispõem que tal servidor poderá perder o cargo também por decisão judicial colegiada e que a avaliação periódica de desempenho será na forma de lei ordinária. Ante a obscuridade do artigo 2º, III, da PEC, indaga-se: poderão os atuais servidores estáveis perder futuramente o cargo por decisão colegiada não transitada em julgado? Ou por avaliação de desempenho prevista apenas em lei ordinária? A dúvida permanece no §2º do artigo 2º, que reza que os estáveis de hoje só perderão o cargo nas hipóteses do artigo 41, §1º, I a III, sem esclarecer se tais hipóteses são as atuais ou as decorrentes da reforma.
Noutro giro, a PEC estabelece, na nova redação do artigo 84, VI, da CF, que o presidente da República poderá, por decreto, dispor sobre alteração e reorganização de cargos públicos efetivos e suas atribuições. Estarão os atuais ocupantes dos cargos sujeitos às disposições do decreto? Ou, no caso deles, será exigido lei para alteração ou reorganização de seus cargos, como prevê hoje o artigo 48, X, da CF e também já decidiu o STF [9]?
Cite-se ainda a nova previsão do artigo 37, V, da CF de que os cargos de liderança e assessoramento, que substituirão os atuais cargos em comissão, poderão exercer atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas. O Supremo já decidiu que a criação de cargos em comissão para atribuições técnicas contraria o artigo 37, V, da Constituição [10]. Com a nova redação, porém, a CF autorizará que servidores em comissão exerçam atribuições técnicas e estratégicas, como as de fiscalização, regulação, policiamento e diplomacia. Indaga-se: as competências dos cargos dos atuais servidores de áreas técnicas ou estratégicas poderão ser exercidas por comissionados? Poderá o Estado nomear servidores em comissão para suprir a carência, por exemplo, de policiais ou fiscais tributários? Caso sim, isso afetará toda a carreira em questão e, consequentemente, os servidores atuais que as integram.
Ainda, o atual artigo 247 da Lei Magna reza que a lei estabelecerá critérios e garantias especiais para a perda do cargo pelo servidor público estável que desenvolva atividades exclusivas de Estado (lei até hoje não editada). A PEC pretende alterar esse artigo para prever a regra apenas para o servidor investido em cargo típico de Estado. Mas os atuais servidores estáveis, ainda que desenvolvam atividades exclusivas de Estado, não serão classificados como ocupantes de cargos típicos de Estado (caso contrário, as novas regras da PEC estariam sendo aplicadas a eles [11]). Manterão eles o direito a critérios e garantias especiais para a perda do cargo? Se não, a alteração do artigo 247 os prejudicará, pois perderão o direito à regulamentação desse artigo.
Assim, caso se interprete que os "demais diretos previstos na Constituição" do inciso III do artigo 2º seriam os decorrentes das novas regras a serem criadas, e não os relativos à redação atual da Carta Magna, isso significaria que o regime jurídico específico para os agentes de hoje previsto no caput do artigo 2º não seria um regime próprio para eles, mas o próprio novo regime decorrente da PEC, excetuando-se, apenas, o constante dos incisos I e II e do §1º desse artigo. Mas tal interpretação, se admitida, jogaria por terra o discurso de que a reforma não atingirá os atuais servidores.
Isso pode ser resolvido por uma alteração na redação do inciso III, para constar que aos servidores atuais serão garantidos os demais direitos previstos na Constituição "anteriores à entrada em vigor desta Emenda Constitucional"; bem como por alteração similar no §2º, para dispor que os estáveis atuais só perderão o cargo nas hipóteses do artigo 41, §1º, I a III, "com a redação anterior à entrada em vigor desta Emenda Constitucional". Assim, restará previsto, efetivamente, um regime específico para os presentes servidores.
O artigo 3º da PEC veicula regras de transição semelhantes às do artigo 2º, porém para os atuais empregados públicos. As mesmas questões acima aplicam-se neste caso. Para evitar que a reforma atinja os celetistas de hoje, seria necessário suprimir do artigo 3º a expressão "exceto se houver alteração ou revogação da referida lei" e acrescentar ao seu final o trecho "assegurados os demais direitos previstos na Constituição anteriores à entrada em vigor desta emenda constitucional", para não restar dúvidas de que as novas regras não se aplicarão a eles.
Já o artigo 5º busca preservar as regras atuais de acumulação de cargos para os presentes servidores. Registre-se que o fundamento social da permissão de acumulação é o incentivo a que aqueles que tenham capacidade de contribuir com atividades consideradas essenciais, como ensino e saúde, possam fazê-lo, trazendo benefícios a toda a sociedade. O exemplo clássico é o de um servidor da área jurídica que exerce também um cargo de professor, contribuindo para a formação dos futuros profissionais. A própria Carta Magna permite, em ponto não atingido pela reforma, que Magistrados acumulem seus cargos com outro de magistério [12]. Como ensina Hely Lopes Meirelles [13], a Constituição reconhece a conveniência do aproveitamento da capacidade técnica e científica desses profissionais pela sociedade.
Ocorre que o artigo 5º, como está redigido, garante a acumulação nos moldes atuais apenas para os servidores que já exercem dois cargos públicos, deixando os agentes presentes que ainda não acumulam, mas que podem vir a fazê-lo, sujeitos às novas regras. Isso gera dois problemas: o primeiro é que isso prejudicará os atuais servidores que ainda não exercem dois cargos públicos, que ficarão excluídos da regra de transição sobre acumulação. O segundo é que, mantida essa redação, haverá dúvida sobre a regra de acumulação aplicável aos atuais servidores.
A nova PEC cria duas regras de acumulação: a dos incisos XVI e XVI-A do artigo 37, para os ocupantes dos futuros cargos típicos de Estado, que só poderão acumular seu cargo com outro de docência ou saúde; e a do inciso XVI-B, para os demais servidores, que poderão acumular seu cargo com qualquer outro. Já alertamos que o novo regime jurídico do artigo 39-A, que divide os cargos efetivos em cargos com vínculo por prazo indeterminado e cargos típicos de Estado, não será aplicável aos atuais servidores, por expressa previsão do artigo 2º da PEC, que prevê um regime jurídico específico para eles. Assim, poderá surgir a intepretação de que os atuais ficarão sem autorização para a acumulação de cargos, ficando mais prejudicados do que os futuros servidores, o que não é razoável.
Para evitar a interpretação acima, seria preciso aplicar uma das futuras regras de acumulação aos servidores atuais, o que exigiria primeiramente classificá-los como ocupantes de cargos com vínculo por prazo indeterminado ou cargos típicos de Estado e então aplicar a eles uma das duas regras. Todavia, isso significará aplicar as normas futuras aos presentes servidores, justamente o que se tem anunciado querer evitar.
Para corrigir isso, uma emenda pode alterar o caput do artigo 5º para constar o seguinte: "Ao servidor público investido em cargo efetivo ou emprego permanente até a data da entrada em vigor desta emenda constitucional é admitida a acumulação remunerada de cargos ou empregos públicos, se houver compatibilidade de horários e observado em qualquer caso o disposto artigo 37, caput, inciso XI, da Constituição, nos seguintes casos: (...)". Assim, a regra de transição será estendida a todos os atuais servidores, evitando submetê-los às novas regras ou, pior, deixá-los sem regra expressa de acumulação de cargos.
Além disso, o inciso II do artigo 5º parece dizer que os atuais servidores só poderiam acumular cargos de professor e de cunho técnico ou científico de natureza estatutária, não dois empregos públicos (celetistas) ou um cargo e um emprego. Ainda que tal ponto já tenha sido resolvido pelo STF, que decidiu que, embora o atual artigo 37, XVI, da CF se refira à acumulação de cargos, é admissível também a acumulação de cargo com emprego [14], é conveniente, para evitar controvérsias futuras, que o inciso II do artigo 5º se refira tanto a cargo como a emprego, como, aliás, já fazem os incisos I e III desse artigo. Uma possível redação para o inciso II seria: "um cargo ou emprego de professor com outro técnico ou científico".
Assim, não obstante o que vem sendo anunciado, há vários dispositivos da PEC 32/2020 que, na atual redação, afetam diretamente os atuais servidores. Para corrigir essas distorções, podem ser feitas as emendas aqui sugeridas aos artigos 2º, 3º e 5º da proposta, aperfeiçoando as regras de transição e efetivamente afastando a aplicação das novas disposições aos atuais agentes públicos. Isso homenageará a segurança jurídica e reduzirá a possibilidade de futuras discussões judiciais sobre a incidência das novas regras.