ADO 55: ENTRE A DEFERÊNCIA E O COMBATE ÀS OMISSÕES INCONSTITUCIONAIS
Na última quarta-feira (16/6), o ministro Marco Aurélio, atual decano do Supremo Tribunal Federal, incluiu a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) 55, de sua relatoria, na pauta de julgamentos do Plenário virtual da Corte. Com início previsto para 25/6, e inexistindo pedidos de vistas ou destaques, os ministros têm até o dia 2/8 para depositarem seus votos, em virtude do recesso judicial, .
Na ação de controle concentrado de constitucionalidade em questão, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol) e assinada pelo ilustre professor doutor Fábio Konder Comparato, afirma-se que o Congresso Nacional está em omissão inconstitucional total há mais de três décadas por não regulamentar, via lei complementar, o imposto previsto no artigo 153, VII, da Constituição da República Federativa do Brasil, qual seja, o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF).
Ademais, informa o partido legitimado que a inexistência de lei regulamentadora do IGF, previsto constitucionalmente, afronta os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil elencados no artigo 3º da CRFB, notadamente em seus incisos I e III, quais sejam, "construir uma sociedade livre, justa e solidária" e "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais", respectivamente.
Ao final, aduz o requerente que a regressividade do nosso sistema tributário, observada, por exemplo, na elevada incidência tributária sobre o consumo e diminuta sobre altas rendas, é um dos fatores que levam ao alto grau de desigualdade social no Brasil. Logo, a instituição do IGF auxiliaria na resolução de problemas sociais endêmicos e prestigiaria a justiça tributária no Brasil.
O dever constitucional de legislar e a mora inconstitucional
Inicialmente, destaca-se que estão presentes os dois elementos necessários para o controle omissivo de constitucionalidade em sede de ADO: o dever constitucional de legislar, imposto por hipótese normativa constitucional ao legislador, e o excessivo lapso temporal entre a promulgação da Constituição e a inexistência, total ou parcial, da lei, ora chamado de mora inconstitucional [1].
No caso em tela, o dever constitucional de legislar está previsto no artigo 153, VII da CRFB. Este, ao informar que compete à União instituir imposto sobre grandes fortunas, nos termos de lei complementar, não faz mera recomendação, tampouco atribui à discricionariedade do legislador a regulamentação a norma constitucional [2]. A Constituição, como lei maior de eficácia imediata, nos termos do artigo 5, § 1º, CRFB, exige que o tema seja conformado em lei complementar para que manifeste todos os seus efeitos, não permitindo o silêncio, deliberado ou não, do legislador.
Por mesmo vértice, a mora inconstitucional também é clara: houve o transcurso de mais de três décadas, desde a promulgação da Constituição Cidadã, para o Congresso Nacional confeccionar a lei complementar do IGF — o que não ocorreu. O simples fato de existir projetos de lei em curso no parlamento que regulamentem a norma constitucional em questão não afasta a mora inconstitucional, já que, como projetos de leis, possuem mera potencialidade de adentrar o ordenamento jurídico.
Somado os dois elementos, i.e., o dever constitucional de legislar e a mora inconstitucional, evidencia-se que o Congresso Nacional padece em omissão inconstitucional quando se desincumbe de regulamentar o IGF, ou, em outros termos, deixa de "fazer aquilo a que se estava constitucionalmente obrigado" [3]. Dessa forma entendeu o relator ministro Marco Aurélio ao votar pela total procedência da ADO nº 55, no sentido de declarar a inconstitucionalidade por omissão do Congresso Nacional na regulamentação do artigo 153, VII da CRFB [4].
Caso a maioria dos ministros vote com o relator, declarar-se-á a inconstitucionalidade por omissão do Congresso Nacional e, em seguida, dar-se-á a ciência do poder para a adoção das providências necessárias. Todavia, após a ciência, surgem os seguintes questionamentos: o que fazer se o Congresso Nacional, mesmo cientificado, continuar em mora inconstitucional? Há garantia de que o Congresso Nacional modificará a sua conduta? Qual é o efeito prático da declaração de inconstitucionalidade por omissão em ADO?
A deferência e o combate às omissões inconstitucionais
As perguntas acima dizem respeito não só ao processo constitucional brasileiro, vez que tocam em questões delicadas que envolvem o sistema de check and balance como um todo, colocando em voga os limites da separação das funções estatais e a natureza da legitimidade do Poder Judiciário. Nesse sentido, podemos traçar dois caminhos para responder as inquirições: 1) o da deferência judicial às omissões inconstitucionais; e 2) o do combate judicial às omissões inconstitucionais.
O primeiro caminho, defendido no voto do ministro Marco Aurélio na ADO 55, dialoga com uma postura de autocontenção judicial. Argumenta o Ministro que, conforme artigo 103, § 2º da CRFB, quando declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, o Poder competente será cientificado para a adoção das providências necessárias, e não mais do que isso. Tal ideia pauta-se no receio de que se o STF for além, fixando prazos ou criando direitos, haverá perda substancial de sua legitimidade institucional. Conforme o ministro Marco Aurélio:
"Ausente regulamentação do tributo, constitui passo demasiado largo fixar prazo ao legislador, visando a adoção de providências. Mantenho-me fiel ao que venho sustentando, em se tratando da mora de outro Poder. Não cabe ao Supremo, sob pena de desgaste maior, determinar prazo voltado à atuação do Legislativo. É perigoso, em termos de legitimidade institucional, uma vez que, não legislando no Congresso Nacional, a decisão torna-se inócua."
A Constituição, nesse sentido, não abre margem para que o Poder Judiciário dê prazo ao Poder Legislativo a fim de que edite a lei faltante, tampouco atribui aos magistrados o papel de regulamentar o direito constitucional quando o poder competente, devidamente cientificado, não o faz. Na mesma linha, o caput do artigo 12-H da Lei 9.868/1999 repete a previsão constitucional e limita a eficácia da decisão à mera declaração de inconstitucionalidade e ciência do poder competente. Em suma, tal posição advoga que o STF não deve ir além do texto legal e constitucional, pois, "em caso de ADO, a decisão, em princípio, limita-se a declarar a omissão inconstitucional, cientificando-se o órgão competente para, em prazo razoável, editar a norma" [5].
Todavia, a posição de deferência é rechaçada pelos adeptos ao combate judicial às omissões inconstitucionais. Por esta segunda visão, mais próxima do ativismo judicial, o STF, como guarda da Constituição (artigo 102, caput, CRFB), deve exercer papel ativo no combate judicial às omissões inconstitucionais, não meramente as declarando em sede de ADO, como também fixando prazos e regulando, se for o caso, a norma constitucional até que sobrevenha lei específica (ou ato normativo, no caso de omissão da administração) sobre o tema.
Conforme assevera Luiz Guilherme Marinoni [6], o provimento declaratório da ADO, previsto no artigo 103, § 2º da CRFB e no caput do artigo 12-H da Lei 9.868/1999, não impede que o Supremo Tribunal Federal também profira um provimento de natureza constitutiva quando consciente da inefetividade de mera declaração. Isso porque a decisão deve ser pensada à luz do princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigo 5º, XXXV, da CRFB), constituindo verdadeiro dever do julgador adequar a sua decisão à realidade fática.
Na mesma toada, Dirley da Cunha Júnior [7] observa que a mera declaração de inconstitucionalidade e ciência ao omisso afronta os princípios da Supremacia da Constituição e da Inafastabilidade da Jurisdição Estatal (artigo 5, XXXV, CRFB). Assim, deve o Poder Judiciário, em ADO, dispor sobre a temática do mandamento constitucional não regulamentado após expirado determinado prazo, fixado em decisão final, para que o Poder Público crie a norma.
Os defensores de um papel mais ativo do STF no combate judicial às omissões inconstitucionais manifestam, ainda, que não seria a primeira vez que a corte, em controle omissivo de constitucionalidade, fixaria prazos e regulamentaria direitos constitucionais em face de omissão inconstitucional sem expressa previsão legal para tanto. Tal postura, em tese, já haveria ocorrido com o Mandado de Injunção (MI) na jurisprudência do Supremo.
O Mandado de Injunção, ora tratado como remédio constitucional, ora tratado como controle de constitucionalidade omissivo concreto, tem previsão constitucional no artigo 5, LXXI da CRFB, pelo qual "conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania". Por muito tempo, a jurisprudência do STF entendeu que a decisão em Mandado de Injunção se limitaria somente à comunicação da omissão ao poder público (cita-se, v.g., o MI 107). Todavia, a partir do MI 708, adotou o STF postura mais atividade no sentido de suprir a omissão inconstitucional do legislador e estabelecer os termos em que se daria a aplicação de uma norma constitucional não regulamentada no caso concreto.
Decerto que a Lei 13.300/2016, o qual regulamentou o procedimento do Mandado de Injunção, pacificou a questão quando estabeleceu, em seu artigo artigo 8, que declarada a inconstitucionalidade por omissão, será dado prazo para a edição da norma, e, caso não seja suprida, poderá o Poder Judiciário estabelecer as condições para exercício do direito constitucional reclamado. Porém, não se deve olvidar que o pontapé inicial para adoção de efeitos concretos em MI adveio exatamente da jurisprudência do STF, o que, para os defensores da postura combativa às omissões inconstitucional, também poderia ser replicado, abstratamente, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão.
As disfuncionalidades das soluções em face da ADO 55
Entre a deferência e o combate judicial às omissões inconstitucionais em sede de ADO, não há resposta definitiva. Isso porque as duas posições, quando tomadas por absoluto, são passíveis de críticas.
No caso da deferência judicial às omissões, criticam-se os efeitos práticos da decisão. Toma-se, v.g., a ADO 55: se julgada procedente, declarada a inconstitucionalidade por omissão e comunicado o Congresso Nacional sobre sua inconstitucionalidade, nada garante que esse adotará as providências necessárias após 31 anos de omissão. E isso essencialmente por duas razões: 1) há enorme resistência de grupos de lobby econômico contra o IGF, pois os membros das classes mais abastadas do país, representados pelo lobby, figurariam como sujeitos passivos no critério pessoal da consequência jurídica do IGF [8]; e 2) mais da metade dos membros do Congresso Nacional eleitos em 2018 para a atual legislatura são milionários [9], ou seja, também estariam sujeitos à tributação em caso de regulamentação do IGF.
Quanto ao combate judicial às omissões, critica-se o exacerbado ativismo judicial na ideia de regulações judiciais de normas constitucionais sem expressa previsão na Constituição e na Lei 9.868/1999. Não pode o Poder Judiciário criar norma constitucional onde não existe sob o argumento de que há mandamentos constitucionais de tutela jurisdicional efetiva, supremacia da constituição, inafastabilidade da jurisdição estatal e outros. Com efeito, no caso da ADO 55, contestável seria o Poder Judiciário fixar prazo ao Poder Legislativo para confecção da lei complementar do IGF e, em caso de persistência da omissão, determinar a aplicação, v.g., da Lei 9.250/1995, que versa sobre o Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF), para suprir a falta de norma regulamentadora do IGF. Contestável também seria o Poder Judiciário descrever a hipótese de incidência tributária e a consequência jurídica do IGF, em clara afronta ao princípio da legalidade tributária estrita (artigo 150, I, CRFB).
Considerações Finais
Se nenhuma das duas posições são isentas de críticas, certo é que a contemporânea jurisprudência do STF está muito mais próxima da deferência judicial do que do combate judicial às omissões nos julgamentos de ADO. E é provável que a ADO 55, se julgada procedente, limite-se a declarar a inconstitucionalidade omissiva, com a respectiva comunicação ao Congresso Nacional, sem a concessão de prazo ou regulamentação da norma constitucional faltante, nos termos do voto do relator. A posição prezaria pela legitimidade institucional da corte no sentido de evitar desgastes e conflitos com os outros poderes, a despeito de ser, como elucidado no texto, de pouca repercussão prática.
Meio-termo possível entre a deferência e o combate judicial às omissões inconstitucionais em ADO, que fuja da inefetividade ao mesmo tempo que não abra um leque exagerado ao ativismo judicial, é emendar a Constituição, por meio do poder constituinte derivado reformador, a fim de que o artigo 103, § 2º da Carta passe a estabelecer prazo para que o poder competente regulamente a norma constitucional faltante — tal como já o faz com a administração pública — e, em caso de persistência omissiva, trace parâmetros mínimos de atuação do Poder Judiciário na regulamentação da norma constitucional, a qual produziria efeitos erga omnes, típico do controle judicial de constitucionalidade abstrato, somente enquanto perdurasse a omissão do poder competente.
Eis um caminho viável.