A DESESTATIZAÇÃO PORTUÁRIA E A SEGURANÇA JURÍDICA DOS ARRENDATÁRIOS
Na última década, a soma dos investimentos públicos e privados em infraestrutura no Brasil não passou de 2% do PIB. O recomendável, para fins de crescimento sustentável, é mais que o dobro [1]. Considerando as já conhecidas limitações estatais, cresce a expectativa sobre a iniciativa privada para financiamento de grandes projetos.
Um dos setores que mais demandam investimento com vistas ao crescimento e desenvolvimento econômico nacional é o de transportes. As características particulares desse setor exigem o dispêndio de elevadíssimas quantias. A demanda é, portanto, por um capital significativo em um projeto de longa maturação. Justamente por isso, a segurança jurídica é condição para o financiamento privado da infraestrutura nacional [2] [3]. O investidor precisa ter a garantia de que o contrato será cumprido [4] e que as regras do jogo não serão alteradas.
Entretanto, em um dos mais relevantes projetos estatais no âmbito portuário, o de desestatização das autoridades portuárias, há uma dupla ameaça à segurança jurídica: os impactos decorrentes da concessão dos portos organizados sobre os contratos de arrendamento vigentes tanto sob a ótica do risco de descumprimento quanto sob a da alteração do regime contratual.
Disciplinados pela Lei dos Portos (Lei nº 12.815/2013), os contratos de arrendamento portuário regulam a cessão onerosa de área e infraestrutura públicas para exploração por prazo determinado. São contratos celebrados com a União, em regra precedidos de licitação, e de longo prazo (comumente 25 anos, prorrogável por até 70). Na modelagem prevista para a Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa) — eleita a primeira a passar pelo processo de desestatização —, esses contratos serão transferidos à autoridade portuária privada e terão, por consequência, seu regime alterado.
A modelagem de desestatização da Codesa foi aprovada no último dia 9 pela Resolução nº 188 do Conselho do Programa de Parceria de Investimentos. Conforme já previam os estudos submetidos à audiência pública, a privatização decorrerá da alienação da totalidade das ações detidas pela União no capital social da companhia e será acompanhada da celebração de um contrato de concessão entre a União e a Codesa, para desempenho das funções de administração do porto e exploração indireta das instalações portuárias dos portos organizados de Vitória e Barra do Riacho [5].
Esse modelo de gestão tem inspiração internacional (private landlord). É atualmente adotado nos portos de Melbourne, na Austrália, e Pireu, na Grécia, em que o particular, gestor do ativo, dispõe de ampla liberdade negocial para administrar o porto. Congrega competência inclusive para celebrar os novos contratos de exploração das áreas públicas e figurar como contratante nos contratos vigentes, mediante transferência. O exercício dessas competências por uma entidade privada, que tem por premissa a diminuição da presença estatal no setor tem como consequência, por outro lado, o aumento da presença do Estado enquanto regulador com o fim de dirimir conflitos [6].
O que chamou a atenção da iniciativa privada nessa modelagem foi justamente a previsão de adaptação e de transferência dos contratos de arrendamento à nova autoridade portuária congregada com mudança do regime público desses contratos para o privado. Essa adaptação contratual será resultado de negociação entre a nova autoridade portuária e o titular do contrato de arrendamento, em que se prevê uma ampla margem de liberdade para a nova autoridade, privada, manter, rever ou extinguir tais contratos.
Todos os direitos e obrigações relativos ao contrato de arrendamento serão transferidos à autoridade portuária, extinguindo-se qualquer vínculo entre o arrendatário e a União. A adaptação ao regime privado prevê, entre outras condições, a exclusão das cláusulas exorbitantes, a desnecessidade de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contato, o estabelecimento do regime dos bens reversíveis previstos no contrato de arrendamento, entre outros [7].
Caso a modelagem inicialmente pensada para o caso da Codesa se confirme e dissemine, os atuais titulares de contratos de arrendamento com a União poderão enfrentar sérios problemas. Imagine-se o cenário em que um contrato de arrendamento recém-celebrado, que garanta ao arrendatário o direito de realizar os investimentos (para modernização das operações e atendimento de determinada cadeia logística) e de amortizá-los ao longo da vigência contratual, mediante exploração do ativo por 25 anos, seja submetido a uma negociação privada com a administração portuária. Se ao final dessa negociação o arrendatário discordar dos termos apresentados pela administração portuária, mesmo após a mediação da agência reguladora, o que lhe restará será "requerer a resilição contratual, arcando com os ônus e encargos decorrentes da rescisão" [8].
Em resposta às fortes críticas recebidas na fase de consulta pública dos arrendatários [9], o secretário Nacional de Portos e Transportes Aquaviários do Ministério da Infraestrutura indicou que as previsões estabelecidas nas minutas submetidas à audiência pública seriam ajustadas para deixar claro que os contratos de arrendamento vigentes serão respeitados. A agência reguladora também se manifestou formalmente informando que seria dada nova redação aos dispositivos que tratam do tema.
Importa registrar a disciplina normativa da questão. O decreto regulamentador da Lei dos Portos prevê que os contratos de arrendamento vigentes "poderão (não há a obrigatoriedade) ter sua titularidade transferida à concessionária" na hipótese de concessão do porto organizado e que "a concessionária deverá respeitar os termos contratuais originalmente pactuados" [10].
Assim, as atenções se voltam, agora, para os ajustes prometidos pelo governo federal. A questão que se coloca é: será que eles estarão à altura dos desafios criados?
Considerando o pioneirismo da Codesa, é preciso que a resposta institucional seja exemplar, apta a gerar a tão necessária segurança jurídica para a realização dos investimentos privados em infraestrutura. Postura diversa dificultará não apenas projetos setoriais já em curso, mas também futuros, ante o anunciado desejo estatal de privatizar outras autoridades portuárias nacionais.