O MERCADO DE CONSUMO E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DE CONSUMIDORES IDOSOS E CRIANÇAS
A partir do final do século 20, popularizou-se a expressão "sociedade de risco", comumente associada ao Direito Ambiental, mas, também, muito apropriada para a área do Direito do Consumidor (podendo estar relacionada, entre outras, a concepções como a de riscos inerentes, adquiridos e exagerados, bem como aos riscos de desenvolvimento e excludentes de responsabilização).
Ulrich Beck defendia que as fontes de riqueza são contaminadas por ameaças colaterais e que estas ganham impulso com o superdesenvolvimento das forças produtivas — a distribuição de riqueza, portanto, resta associada à distribuição de riscos [1]. Vale referir que, já em 1979, Hans Jonas demonstrava preocupação com o desenvolvimento tecnológico e os problemas éticos e sociais criados pelo mundo moderno. O filósofo, incorporando um tom relativamente pessimista, afirmava que a civilização técnica é "toda poderosa" em seu potencial de destruição [2]. Não se deve, entretanto, aderir incondicionalmente ao pressuposto de que os riscos são escolhidos [3], o que poderia conduzir a um determinismo capaz de naturalizar a existência dos problemas (como um preço a ser pago pelo progresso) e imputar aos consumidores certa participação na responsabilidade. Em verdade, nas relações de consumo, a realidade da sociedade de risco justifica impor maior priorização das devidas proteções (físico-psíquicas, patrimoniais etc.) aos consumidores standards e equiparados, inclusive com a aplicação dos princípios da prevenção e da precaução.
Prevenir significa, com antecipação, tomar providências necessárias para evitar danos, incluindo os caracterizados pela exposição a riscos indesejáveis e, principalmente, pelos potencialmente previsíveis [4]. Já a precaução (ou cautela), quer classificada como princípio, quer como critério jurídico, difere da prevenção em vista de riscos e perigos conhecidos segundo a ciência e se refere à proteção contra riscos ou impactos ainda não completamente conhecidos cientificamente, ou seja, lastreia-se na incerteza do perigo capaz de comprometer o valor maior da segurança [5]. Enfatize-se que tanto a prevenção quanto a precaução estão relacionadas à prudência no agir.
Nesse contexto, útil mencionar a noção de Estado preventivo, em que o avanço da tecnologia e consequente surgimento de novos riscos justificam a aplicação do princípio da precaução (vorsorgeprinzip), reconhecido pela Alemanha Ocidental desde os anos 70 [6]. Sabiamente, Nelson Rosenvald incluiu em seu livro "As funções da responsabilidade civil", um tópico tratando da prevenção e da precaução, a sinalizar o valor de induzir medidas de proteção contra riscos, o que se aplica igualmente aos processos que vão desde a produção até o consumo (lembrando que o simples risco já pode significar um dano) [7].
No ambiente da sociedade pós-moderna, como mencionam renomados doutrinadores como Cláudia Lima Marques [8], é pressuposto indispensável que o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor (artigo 4º, inciso I, CDC) deve estimular a adoção de providências concretas também na esfera da prevenção e da precaução/cautela, dando eficácia ao mandamento constitucional previsto no artigo 5º, XXXII. A própria recepção da teoria da qualidade pelo CDC sinaliza nesse sentido, bem como, a transparência e a informação adequada revelam-se substanciais para todo consumidor [9], revestindo-se de importância ainda maior quando se tratar de hipervulneráveis.
Assim, alcança-se o ponto principal desse texto, no sentido de defender que as medidas prévias devem ser ainda mais detidas e meticulosas quando envolvem pessoas que se caracterizam pela vulnerabilidade agravada, enfocando em específico a condição de idosos e crianças diante da publicidade, principalmente no meio virtual.
Com relação aos idosos, a divulgação publicitária por meios virtuais (ou mesmo por telefone) habitualmente não tem se caracterizado como informação e educação para o consumo, mas, sim, como formas explícitas ou dissimuladas de, aproveitando-se da falta de familiaridade desse grupo com referidos meios, impelir contratações sem a devida reflexão; além da exposição do consumidor a elevado risco de fraudes. Situação muito problemática, principalmente em se tratando, por exemplo, do consumo de crédito.
Nesse sentido, cabe citar a decisão exarada na ADI nº 6727, do STF, que julgou válida a Lei estadual nº 20.276/2020 do estado do Paraná, que proíbe instituições financeiras, correspondentes bancários e sociedades de arrendamento mercantil de "realizarem qualquer atividade de telemarketing ativo, oferta comercial, proposta, publicidade ou qualquer tipo de atividade tendente a convencer aposentados e pensionistas a celebrarem contratos de empréstimo de qualquer natureza" (artigo 1º). Assim, somente após solicitação expressa desses consumidores é que a contratação do empréstimo poderá ser realizada (artigo 2º) [10].
Em um país gravemente afetado pelo superendividamento dos consumidores [11], necessário destacar o fundamento apresentado pela ministra Carmen Lúcia, de que a maior parte dos aposentados e pensionistas são pessoas idosas e, nos termos do artigo 230 da Constituição Federal e do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03), precisam ser protegidas/amparadas. Acrescentou ainda que referida lei, ao coibir o assédio publicitário, traduz verdadeira política pública para a prevenção de uma das causas de (super)endividamento de idosos, principalmente em casos de onerosidade excessiva; razão pela qual deve haver esse escopo de concretizar a proteção desses consumidores. Enfatize-se: tudo sem que a imposição de limitações a esse tipo de publicidade gere cerceamento ao princípio da livre iniciativa que também é um dos fundamentos da ordem econômica brasileira.
Por sua vez, quanto às crianças, tem-se que é imprescindível a existência de restrições à publicidade (e ao marketing em geral) que possua direcionamento específico ao público infantil.
O Instituto Alana, ao tratar da publicidade infantil, acentua a técnica reprovável de buscar falar diretamente com as crianças, em especial através de elementos do universo infantil (como músicas, efeitos especiais, cores, personagens infantis, animações, bonecos etc.), do oferecimento de brinquedos colecionáveis associados à compra de produtos e de promoções com competições ou jogos infantis, buscando divulgar e estimular o consumo.
Atualmente, as crianças estão submetidas a ações de marketing praticamente em todos os ambientes, sendo que em tempos de pandemia, com restrições ao convívio social, cabe especial atenção para a exposição do público infantil no meio digital. Assim, prevenir e precaver se torna ainda mais necessário, inclusive para respeito aos direitos da personalidade e seu livre desenvolvimento.
Relatório da Unicef de 2017, intitulado "Crianças no mundo digital", apontou que um a cada três usuários da internet era criança e que os smartphones criaram o que se denomina "cultura do quarto", em que as crianças ficam isoladas e online, de forma personalizada, mais privada e com menos supervisão, com risco de indevido uso e exploração da privacidade infantil [12]. Reconheça-se que, para incrementar seus negócios, os agentes de mercado não incrementam precauções e atuam no sentido de criar uma geração de consumidores — se possível compulsivos.
Não se deve alimentar a ilusão de que as redes sociais, ditas para interação social, são gratuitas e inofensivas, pois por detrás delas há um negócio em que o consumidor, no caso, a criança, tem em seus dados o "produto" monetizado pelos fornecedores. O STJ já se posicionou no sentido de que a exploração comercial da internet se sujeita às relações de consumo, vez que o CDC traz em seu artigo 3º, §2º, a expressão "mediante remuneração", não a descaracterizando a simples alegação de que prestam serviço gratuito, pois os provedores de internet, incluindo os de pesquisa, possuem lucros indiretos [13]. O mesmo se aplica a sites, aplicativos, serviços de streaming e plataformas de compartilhamento de vídeos, que também se aproveitam dessa forma de remuneração [14].
Em 2020, o Procon-SP divulgou pesquisa intitulada "Crianças e adolescentes na Internet — Segurança", em que apontou dados preocupantes, a começar pelo fato de que 32,06% das crianças costumam ficar conectadas diariamente de duas até quatro horas; 27,53%, de quatro até seis horas; 20,03%, por mais de seis horas; e 17,07%, no máximo duas horas (3,31% não souberam responder por quanto tempo os filhos permanecem conectados), sendo que 43,21% dos pais reconheceram que as crianças acessam a internet sozinhas. Quanto às crianças que os pais disseram ter acompanhamento, não ficou declarado o grau de controle e seletividade do conteúdo acessado, forma de efetivar proteção contra a publicidade indevida que circula no meio eletrônico. Quase dois terços dos genitores (65,85%) disseram que há frequência entre seus filhos de pedirem para comprar o que viram na internet, o que demonstra a influência exercida por esse meio [15].
Ressalte-se que a criança, em sua ingenuidade e inexperiência, não possui aptidão para identificar todas as publicidades insertas nos conteúdos, especialmente as sutilezas do merchandising, assim como, possíveis abusividades ou enganosidades. Outro detalhe: em inúmeros sites e aplicativos, os termos de uso condicionam sua utilização à aceitação de condições, como acesso à câmera, ao GPS, ao microfone etc., formas de captar dados e invadir a intimidade das crianças, a fim de perscrutar suas preferências e atingi-las com publicidade mais direcionada [16], o que infringe em específico o artigo 14 da Lei nº 13.709/2018, que impõe não apenas consentimento para coleta de dados, mas principalmente que tal aconteça em benefício do melhor interesse da criança, com observância aos direitos fundamentais à liberdade e à privacidade e assegurando o livre desenvolvimento de sua personalidade.
Revela-se sempre oportuno destacar a importância da Resolução nº 163/2014 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que, em conformidade com a Política Nacional de Atendimento da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990, artigos 86 e 87, inc. I, III e V), veio considerar abusiva toda publicidade e comunicação mercadológica direcionada a esse público.
Assim, concluindo, na sociedade de risco, reveste-se de maior importância a aplicação dos princípios da prevenção e da precaução/cautela, como forma de evitar danos, que nem sempre se consegue mensurar, e implementar e concretizar a escala de valores estabelecida na Constituição Federal para respeito aos direitos humanos, fundamentais e da personalidade, atendendo, também, ao disposto no artigo 170 da Carta Magna, que estabelece uma ordem econômica constitucional fundada na harmonização entre o Direito do Consumidor e a atividade econômica.