O BRASIL VAI SER DECLARADO INCONSTITUCIONAL?
Poucos temas têm dividido a opinião de processualistas e constitucionalistas como a adoção do estado de coisas inconstitucional (ECI) no Brasil. Desde sua primeira menção pelo Supremo Tribunal Federal, em 2015, com o julgamento da medida cautelar da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347 — que trata do estado de calamidade do sistema carcerário brasileiro —, críticas como "o estado de coisas inconstitucional é meramente simbólico" e "o estado de coisas inconstitucional de nada serviu" se tornaram comuns [1]. A mais ferrenha objeção apontava até a possibilidade de, um dia, o Brasil ser declarado inconstitucional. "Se a Constituição não é uma carta de intenções (e todos pensamos que não o é), o Brasil real, comparado com a Constituição, pode ou é um país inconstitucional, na tese de quem defende a possibilidade de se adotar o ECI" [2].
Para aqueles que acompanharam o voto do ministro Marco Aurélio na ADPF nº 822, ajuizada por 18 entidades coletivas, questionando as políticas de saúde do governo federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19, pode parecer que esse dia chegou. Enquanto relator da ação, o ministro, no último dia 25, acolheu o pedido para declarar o estado de coisas inconstitucional na condução de políticas públicas destinadas à realização dos direitos à vida e à saúde [3]. Dessa forma, determinou que os entes federados, sob a coordenação da União, adotassem medidas como a realização de campanhas educativas sobre as formas de prevenção da doença e distribuição de máscaras em áreas de concentração populacional de baixo percentual de adesão às medidas preventivas. Após o voto do relator, o ministro Gilmar Mendes pediu vista do processo, suspendendo o julgamento.
É possível vislumbrar, diante do posicionamento do ministro relator, que a declaração do ECI tinha um propósito claramente estrutural. Afinal, pretendia-se a transformação de uma realidade "A", que viola direitos fundamentais, em uma realidade "B", na qual esses direitos são assegurados [4]. Além disso, as medidas decretadas pelo ministro Marco Aurélio demandam uma reorganização do agir estatal, configurando um claro exemplo de interferência judicial na forma de funcionamento de instituições públicas.
Neste ponto do texto, alguns leitores podem estar confusos: estado de coisas inconstitucional e processos estruturais são sinônimos? A resposta é objetiva: não, não são. Processos estruturais são um gênero do qual o estado de coisas inconstitucional é uma espécie [5].
Processos estruturais podem se desenvolver por meio da declaração de um ECI, mas a realidade é que eles logram mais êxito quando judicializados nas instâncias inferiores (sobretudo por meio de ações civis públicas ou ACP), como demonstram as experiências da ACP do Carvão, da Fundação da Criança e do Adolescente (Fundac), no Rio Grande do Norte, e das creches no município de São Paulo [6]. Isso pode ser explicado por diversos fatores, mas talvez o mais importante aos argumentos desenvolvidos aqui seja o de que o STF não desempenha somente a função de corte constitucional. Temos um tribunal que exerce de modo cumulativo as funções de: a) tribunal constitucional; b) órgão de cúpula do Poder Judiciário; e c) foro especializado, e cujo papel foi reforçado pelas Emendas de nº 3/93 e nº 45/05, tornando-se, portanto, uma instituição singular e com uma agenda política própria [7]. O excesso de funções atribuídas ao STF, bem como o seu engajamento com a esfera política em âmbito federal, compromete, em maior ou menor grau, a possibilidade de que processos estruturais se desenvolvam adequadamente em sede de controle concentrado de constitucionalidade.
Mas e agora? Devemos considerar a experiência do STF com o estado de coisas inconstitucional um argumento fatal contra o desenvolvimento de processos estruturais de modo geral? O voto do ministro Marco Aurélio agiganta a função jurisdicional do Estado? Decisões estruturais podem produzir transformações concretas?
Vamos enfrentar os questionamentos por partes.
O voto do ministro Marco Aurélio, se analisado de forma isolada, merece críticas. As ações apontadas pelo relator, ainda que sejam fundamentais para o combate à pandemia, não farão muita diferença prática neste momento. Isso porque o governo federal, ainda que com atraso, juntamente com a maioria dos governos estaduais, já tem implementado boa parte das medidas apontadas. A ADPF apresentava pedidos que poderiam gerar efeitos práticos importantes, como a decretação de um lockdonw nacional. Contudo, por causa do lapso de tempo entre o ajuizamento da ação, em abril, e o voto do relator, o pedido não foi atendido.
Além das medidas elencadas na decisão pouco influenciarem o estado de coisas atual no combate à pandemia, elas também podem trazer efeitos negativos para os processos estruturais. Apesar de ser um tema novo no Brasil, as demandas estruturais já possuem vários críticos, os quais, muitas vezes, não têm um estudo aprofundado sobre o tema. Tudo o que desejam são decisões como a de Marco Aurélio, que permitam o recurso à falácia do espantalho. "Os processos estruturais são um novo instrumento para o ativismo judicial ilegítimo e antidemocrático. Vejam essa nova decisão! Reconhece a pandemia como inconstitucional!". Enquanto a teoria dos processos estruturais está sendo desenvolvida no país, é importante saber quais brigas comprar e quais decisões estruturais tomar.
Superado esse ponto, entendemos que, apesar das críticas, a decisão não abre as portas para um agigantamento judicial [8]. Analisando os pedidos deferidos, constata-se que Marco Aurélio foi cauteloso. O pleito mais polêmico — a decretação de um lockdown nacional — foi afastado pelo relator. Dos pedidos procedentes, vários já estão sendo implementados pela União ou pelos estados. O respeito às competências do Executivo e do Legislativo fica evidente quando o relator afirma que "A este tribunal cumpre atuar incentivando a formulação e a implementação de políticas públicas. Permanece reservado ao Legislativo e ao Executivo o campo democrático e técnico das escolhas, inclusive orçamentárias, sobre a forma mais adequada à superação da crise, colocando a máquina estatal em movimento e cuidando da harmonia dessas ações" [9].
De todo modo, em que pese as limitações do ECI para produzir efeitos materiais imediatos no presente caso, não se pode menosprezar aquilo que Rodríguez-Garavito intitulou de "efeitos simbólicos" [10]. Eles dizem respeito à mudança de opinião pública acerca de um determinado problema que vinha sendo invisibilizado, transformando-o em um problema de direitos humanos, que merece atenção da mídia, da população, das instâncias políticas, dos juristas e do sistema de Justiça como um todo.
Apesar de serem, muitas vezes, diminuídos, efeitos simbólicos são de suma importância em casos que envolvem falhas sistêmicas, pois muitas vezes a percepção da sociedade acerca destas não só auxilia como é fundamental para que sejam efetivamente superadas. Mudanças estruturais não acontecem "da noite para o dia" e decisões tomadas em tribunais cujos pronunciamentos provocam grande repercussão, como aqueles que exercem a função de corte constitucional, são importantes não somente pelas mudanças imediatas que provocam, mas, também, pelos efeitos que produzem de forma gradual e que só podem ser sentidos em longo prazo [11].
É importante ressaltar ainda que nem só de más decisões estruturais vive o STF durante a pandemia, e que essas decisões, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, não precisam se desenvolver, necessariamente, por meio da declaração do estado de coisas inconstitucional. A ADPF nº 709 e a ADPF nº 742 [12] [13], que tratam, respectivamente, da proteção de grupos indígenas e de grupos quilombolas durante a pandemia, são exemplos claros disso. Como defendemos em outro trabalho, os processos estruturais podem, sim, ser um importante instrumento de proteção ao direito à saúde neste momento de pandemia [14]. Basta que sejam conduzidos de forma organizada e utilizados em casos realmente necessários, nos quais possam fazer uma diferença prática importante para algum grupo vulnerável.
Em síntese, o dia da inconstitucionalidade do Brasil não chegou, nem chegará pelos processos estruturais ou pelo estado de coisas inconstitucional. Mas, para que demandas envolvendo o ECI tenham máxima utilidade em nosso país, é preciso que o STF ultrapasse a fase de decisões assistemáticas sobre o tema e esclareça como o instituto colombiano será aplicado pelo tribunal e quais serão os requisitos para a sua utilização. Banalizar o ECI e os processos estruturais, além de dificultar a realização de mudanças concretas, fortalece os críticos e dificulta a plena realização dos objetivos dessas demandas: proteger direitos fundamentais de grupos vulneráveis e assegurar a força normativa da Constituição [15].