DIREITO AO SILÊNCIO NÃO PODE SER UMA MERA OBRA DE FICÇÃO
Em tempos de incompreensão sobre o direito ao silêncio e à não autoincriminação de investigados e acusados convidados a prestar depoimento como testemunhas, convém lembrar que o "aviso de Miranda" não é uma prerrogativa dos personagens de filmes americanos ou das séries de TV.
Tampouco se trata de uma grande novidade, tirada da cartola por sábios advogados para livrar seus clientes nas Comissões Parlamentares de Inquérito instaladas no país.
Nos idos de 1765, Cesare Beccaria já defendia, em "Dos Delitos e das Penas", que seria uma contradição "exigir de um acusado o juramento de dizer a verdade, quando ele tem o maior interesse em calá-la" e sustentava ser incabível esperar que ele contribua "para a sua própria destruição" [1].
No Brasil, o artigo 5º, LXIII, da Constituição Cidadã prevê que "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado", garantia já estendida, há muito, pelo Supremo Tribunal Federal a todos os indivíduos que, se instados a dizer a verdade, podem produzir prova contra si mesmos.
Também o artigo 186 do CPP prevê que "depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas", e, em seu parágrafo único traz que "o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa". Os magistrados que valoram o exercício desse direito negativamente, portanto, o fazem de modo velado e inconfesso.
Se assim o é, resta saber: quando falar? Quando calar? "O silêncio vale mais do que mil palavras"? As respostas não são tão simples.
A verdade é que o interrogatório de um acusado ou investigado pode ser o melhor ou o pior momento da defesa, a depender de uma série de circunstâncias. Não raro, elas nada têm a ver com a sua culpabilidade (ou sua inocência) em relação aos fatos que lhe são imputados.
O sucesso ou o fracasso de um depoimento pode estar relacionado à capacidade do depoente de articular pensamento, fala e controle emocional; à sua memória em relação aos fatos; ao perfil e local da oitiva; aos responsáveis pela colheita da prova oral; à repercussão midiática do ato... São inúmeros os fatores envolvidos, tudo a depender do caso.
Justo por isso, em que pese a importância da autodefesa, é prudente que o cliente ouça o "cale-se" da defesa técnica quando ela entender que esse é o melhor caminho. E é fundamental que tal recomendação seja respeitada pelos julgadores, enquanto estratégia defensiva, inerente e compatível com um Estado democrático de Direito que observe o devido processo legal.
Mas "quem cala consente" ou "quem não deve não teme", dirão alguns. Para evitar que esse pensamento do imaginário popular possa ser utilizado em desfavor do acusado, no Tribunal do Júri há uma série de regras específicas, criadas para dar efetividade e proteção ao direito ao silêncio. Exemplo disso é o artigo 478, II, do Código de Processo Penal, segundo o qual "durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências: II - ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo".
Quando é o caso de invocá-lo, de modo geral, os advogados informam ao juiz antecipadamente que o acusado não será interrogado, e com isso evitam até mesmo que ele se sente diante do juiz na posição de réu e que o promotor faça, teatralmente, uma série de perguntas que ficarão sem resposta.
Nas Comissões Parlamentares de Inquérito, contudo, quando os parlamentares utilizam os poderes de investigação próprios das autoridades judiciais previstos no artigo 58, parágrafo 3º, da Constituição Federal, não atentam, com o devido rigor, ao cumprimento do direito ao silêncio e à não autoincriminação. Muito embora a ministra Rosa Weber tenha salientado que "não existem 'zonas imunes' às garantias constitucionais e legais do investigado, qualquer que seja o órgão encarregado da investigação", não é o que se vê na prática (HC 169628 / DF).
Prova disso é o fato de a questão ora em debate sempre voltar à pauta, independentemente da composição do colegiado e do espectro ideológico dos investigados, e inobstante haja jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal sobre o direito de um depoente silenciar sobre fatos que possam incriminá-lo. A cada nova CPI, um misto de indignação e desconhecimento toma conta de parlamentares, jornalistas e formadores de opinião.
Os Habeas Corpus concedidos em favor dos depoentes — quaisquer que sejam eles — são noticiados com estardalhaço, como se inéditos fossem. Não são. Em seu precioso livro "O Direito ao Silêncio na jurisprudência do STF", Thiago Bottino traça o histórico desse tipo de requerimento [2].
Há quase um quarto de século, o STF reconheceu, por unanimidade, o direito de Lacyr Vianna, à época presidente da Associação Nacional de Autores, Compositores e Intérpretes da Música, de não se autoincriminar perante a Comissão Parlamentar de Inquérito instalada na Câmara dos Deputados para apurar irregularidades no Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad). Ele havia sido preso em flagrante por falso testemunho. A decisão, contudo, fundamentou a atipicidade da conduta na inexigibilidade de conduta diversa, e não na garantia constitucional de não autoincriminação [3] (HC nº 73.035-3/DF, DJ de 19/12/1996).
Anos depois, narra Thiago Bottino, o precedente foi aplicado ao ex-presidente do Banco Central Francisco Lafaiete de Pádua Lopes, convocado para depor como testemunha na CPI do Sistema Financeiro, mesmo sendo alvo de procedimento investigatório criminal perante o Ministério Público Federal, no qual houve até busca e apreensão em sua residência. Ao conceder o Habeas Corpus impetrado por sua combativa defesa, o ministro Sepúlveda Pertence destacou que "a incidência da garantia contra a autoincriminação nas investigações de CPI, em linha de princípio, é irrecusável" (HC 79.244-8/DF, DJ de 24/03/2000 — leia aqui).
De lá para cá, não faltam exemplos de CPIs instauradas para investigar os mais variados e relevantes temas do cenário nacional: Brumadinho, pedofilia, Petrobras, CBF/Nike, fraudes no INSS, narcotráfico, entre outras. Trata-se, indubitavelmente, de um importante meio de investigação — não de julgamento — realizado no âmbito político.
Justo pela natureza mista da CPI, é preciso um cuidado adicional, pois pode ser — e frequentemente o é — muito tênue a linha que divide uma testemunha de um investigado. A menos que já haja investigação paralela em curso, muitas vezes a dita testemunha só saberá se será ou não investigada ao final dos trabalhos, com a apresentação do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito.
A estratégia, a bem da verdade, não é exclusividade das CPIs. Em muitos procedimentos investigatórios criminais o Ministério Público ou a polícia qualificam a pessoa como testemunha, forçando com isso o depoimento compromissado quando, na realidade, a narrativa dos fatos aponta que ela está sob uma linha de investigação. Ao final das investigações, para a sua surpresa, a apontada testemunha é indiciada e seu depoimento é, ainda que se procure disfarçar, utilizado em seu desfavor.
Em artigo recentemente publicado pela ConJur, Alberto Toron, antes de viver na pele a incompreensão do direito ao silêncio de seu cliente perante a atual CPI da Covid-19, afirmou que "o respeito à legalidade impõe limites à atividade cognitiva estatal". Impõe mesmo.
Não importa o tema, o foco, o âmbito de investigação da Comissão Parlamentar de Inquérito, o direito ao silêncio, à não autoincriminação, à presunção de inocência não pode ser mera obra de ficção.