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PESSOAS COM DISTÚRBIOS PSIQUIÁTRICOS NO PROCESSO CRIMINAL E NO SISTEMA PRISIONAL

A análise da situação dos acusados e presos com distúrbios psiquiátricos no Brasil tem como parâmetro os escassos dados obtidos na literatura especializada sobre a matéria, bem com aqueles fornecidos pelo banco de dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

1) Acusados com distúrbios psiquiátricos durante a fase de investigação e durante a fase de julgamento: o justo processo
O justo processo, ou giusto processo, nada mais é do que a lei para todos, ou la legge per tutti, significando que a "Constituição impõe ao legislador processual penal que garanta a celebração do justo processo, em que sejam respeitadas as garantias de defesa do acusado e em que a decisão seja baseada em um juízo absolutamente neutro em relação às partes", nos termos do artigo 111 da Constituição Italiana.

Aceito pela doutrina e jurisprudência brasileiras, o justo processo, no entanto, está longe de corresponder a uma realidade efetiva no sistema processual penal pátrio, conforme ver-se-á notadamente quanto ao tratamento de acusados com problemas psiquiátricos.

Os artigos 149 a 154 do Código de Processo Penal disciplinam o incidente de insanidade mental do acusado, que pode, segundo o §1º do artigo 149, ocorrer desde a fase de investigação (inquérito policial), a pedido da autoridade policial ao juiz competente, sem a suspensão das investigações. Na fase judicial, o incidente suspende o andamento da ação penal (§2º do artigo 149). Se a doença mental sobrevier à infração, o processo continuará suspenso até que o acusado se restabeleça, salvo as diligências urgentes (artigo 15, caput). Nesse caso, o acusado poderá ser internado em manicômio judiciário ou em outro estabelecimento adequado, conforme dispõe o §1º do artigo 152 do Código de Processo Penal (CPP).

O conjunto de Estabelecimentos de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (ECTPs) no Brasil é formado por 23 hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico (HCTPs) e três alas de tratamento psiquiátrico (ATPs), localizadas em complexos penitenciários [1].

Em 2011, havia 3.989 pessoas internadas ou em tratamento nos ECTPs, sendo que 1.033 em situação temporária, 34% (353) estavam internados para realizar exame de sanidade mental e 35% (362) tinham o laudo de sanidade mental e aguardavam decisão judicial para andamento processual [2]. Das 353 pessoas à espera do laudo de sanidade mental, 27% (97) aguardavam dentro do prazo legal previsto no artigo 150, §1º, do CPP, de 45 dias, e 69% (244) aguardavam por um período superior a esse prazo [3]. Apurou-se que a média de espera para a população em internação temporária para a elaboração do laudo de sanidade mental era de dez meses [4].

2) Presos com distúrbios psiquiátricos durante a prisão provisória: necessidades, problemas, soluções possíveis
Dos 3.989 internados ou em tratamento em ECTPs, 1.033 se encontravam em situação temporária, isto é, submetidos à prisão provisória (prisão preventiva, em flagrante ou em decorrência de sentença penal recorrível) ou aguardando o laudo, sendo que 35 % (362) tinham o laudo de sanidade mental e aguardavam decisão judicial para andamento processual [5].

Dois casos paradigmáticos que tramitaram na Justiça Federal Criminal de São Paulo, especificamente na 9ª Vara, podem ser mencionados como exemplo de como os presos provisórios são tratados na Justiça brasileira. Em ambos os casos, de A.F.S. e W.R.C., não havia vaga para pronto atendimento dos mesmos e ficaram aguardando, por um período, presos, a vaga respectiva, até que obtiveram a concessão da liberdade provisória, face à impossibilidade de esperar indefinidamente a obtenção de vaga de internação ou de tratamento ambulatorial.

No primeiro caso, de A.F.S., ele havia sido preso em flagrante por tentar subtrair um aparelho de televisão de propriedade da Caixa Econômica Federal, forçando as portas de vidro de uma agência e arrancando o televisor que estava fixado na parede. No segundo caso, de W.R.C., ele foi preso em flagrante por tentar subtrair um cabo de cobre do estacionamento de um estabelecimento da Caixa Econômica Federal.

No processo de A.F.S. foi expedido ofício à Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, realizando-se, inclusive, uma reunião entre os envolvidos, de modo a propiciar que o acusado obtivesse o tratamento adequado, por ser morador de rua e refratário a um contato constante com atendimento social. No começo, o atendimento até funcionou, sendo que o acusado comparecia à vara para comunicar suas atividades, já que no gozo de medidas cautelares alternativas à prisão, no entanto, com o passar do tempo parou de ir, confirmando-se, depois, que a rede de proteção fornecida pela prefeitura não funcionara adequadamente. O acusado, tendo em vista o reconhecimento pericial de seu desenvolvimento mental incompleto e sua incapacidade de entender o caráter ilícito do fato, foi absolvido sumariamente, aplicando-se tratamento ambulatorial, apesar da disposição do artigo 97 do CP. Isso porque a Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, em seu artigo 4º dispõe que a "internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes".

Conforme Fernando Balvedi Damas, a internação deveria ser a ultima ratio, ou seja, quando os demais recursos extra hospitalares se mostrarem insuficientes [6].

Já no processo de W.R.C., apesar de não ter ainda ocorrido o julgamento do caso, a conclusão pericial é no sentido de que o acusado era inimputável na data dos fatos, face à dependência química. Verificou-se inclusive falha por parte da polícia federal quanto à comunicação da prisão em flagrante aos familiares, conforme previsto no artigo 5º, incisos LXII e LXIII, da Constituição Federal. 

Ambos os casos retratam o cumprimento meramente formal das garantias constitucionais aos presos provisórios com distúrbios mentais.

3) Prisioneiros com distúrbios psiquiátricos na prisão: necessidades, problemas, soluções possíveis
As prisões brasileiras são verdadeiros infernos humanos, com poucas exceções que confirmam a regra. Tanto assim que o Supremo Tribunal Federal decidiu que o sistema penitenciário brasileiro vive um estado de permanente inconstitucionalidade, conforme ação direta de descumprimento de preceito fundamental (ADPF-347).

A veemência dessa condenação por parte da mais alta corte de Justiça do país fala por si quanto à situação das prisões no Brasil, e abre um leque de problemas, muitos dos quais fogem ao âmbito deste estudo. Contudo, pode-se pontuar que: a) a problemática dessa situação repercute diretamente no aumento de presos com problemas psiquiátricos no sistema prisional brasileiro; e b) exige do Judiciário uma postura mais rigorosa no que diz respeito aos requisitos das prisões cautelares no direito processual penal brasileiro.

A Defensoria Pública da União apontou em estudo sobre a saúde mental em presos federais [7] que as regras de isolamento constantes nos presídios federais e a impossibilidade de cumprimento de pena perto de familiares têm causado um aumento significativo de casos de tentativas de suicídios e de problemas psiquiátricos entre tais presos: 12% já recorreram ao suicídio e 60% sofrem de algum dano psiquiátrico.

Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revelam que centenas de presos com problemas mentais estão presos quando deveriam estar em tratamento psiquiátrico, em regime de internação ou tratamento ambulatorial [8]. O CNJ aponta ainda para o descumprimento da Resolução nº 35 do órgão, que dispõe sobre regras a serem observadas pelo Judiciário do país quanto ao tratamento de pacientes judiciários e execução de medida de segurança. Referida resolução atualizou as diretrizes do órgão após a Lei nº 10.216/2001, instituidora de uma política antimanicominal no país.

Interessante, nesse aspecto, a posição de Taborda & Bins no sentido de que há uma esvaziamento da política pública de tratamento à saúde mental da população brasileira, sendo o tratamento dos encarcerados com problemas mentais apenas um reflexo disso [9].

Por fim, frise-se que os prisioneiros brasileiros encontram-se à margem do Sistema Único de Saúde (SUS), pois os hospitais e serviços de saúde penitenciários não têm suas despesas ressarcidas pelo SUS, financiando-se pelas escassas verbas do sistema penitenciário [10]. Muito comum ainda a presença de doentes mentais em unidades não adequadas, gerando perturbações e revolta entre presos e funcionários [11].

Na prática, observa-se constante violação de direitos e inobservância das garantias legais previstas na execução das penas, muito embora os inúmeros atos administrativos tendentes a regular a situação do preso, com problema psiquiátrico ou não, como a Portaria nº 628, 2 de abril de 2002, e a nº 1777, de 9 de setembro de 2003, que instituíram o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, além das Resoluções CNPCP nº 05, de 4/5/2004, e nº 04, de 2010, Resolução nº 113, de 20/4/2010, e Recomendação CNJ nº 35, de 12/7/2011 [12].

4) Tratamento de prisioneiros com distúrbios psiquiátricos: uma questão de saúde ou responsabilidade da Justiça?
 O Brasil segue o critério biopsicológico quanto à inimputabilidade penal, nos termos dos artigos 26 e 27 do Código Penal Brasileiro

Outra característica de nosso sistema, após a alteração do Código Penal, de 1984, é o do ser vicariante, em substituição ao sistema do duplo binário, conforme se verifica do artigo 98 do Código Penal. Assim, não cabe a cumulação de pena e medida de segurança ou tratamento ambulatorial, mas ou uma ou outra.

O paradigma para a manutenção em tratamento do acusado ou internado com problemas psiquiátricos é a análise de sua periculosidade. Enquanto não cessada a periculosidade, não se pode falar em desinternação ou conclusão do tratamento ambulatorial, nos termos do artigo 97 do Código Penal.

O prazo mínimo é de um a três meses (artigo 97, §1º, do CP), mas não foi previsto tempo máximo de duração da medida de segurança, tendo ocorrido casos, no passado, de pessoas presar por toda a vida. No entanto, atualmente, como a Constituição Federal veda as penas de caráter perpétuo (artigo 5º XLVII, "b", da CF) e não existe pena privativa de liberdade que possa ser cumprida por mais de 30 anos (artigo 75 do CP), a jurisprudência fixou como parâmetro este prazo de 30 anos. Há também o parâmetro da prescrição.

Assim, se o internado praticou um crime cuja pena cominada seja inferior a esse parâmetro poderia, em tese, ainda ficar internado por 30 anos, no entanto, o Supremo Tribunal Brasileiro já firmou entendimento no sentido de que os internados precisam ser tratados, e em caso de crimes cujas penas não atinjam o patamar mencionado, devem receber o tratamento da alta progressiva, aplicando-se o disposto no artigo 5º da Lei nº 10.216/2001 (HC 102.489 Rio Grande do Sul, DJe 1/2/2012, relatoria ministro Luiz Fux).

Tanto a desinternação como a libertação serão sempre condicionais, seguindo-se o disposto no artigo 178 da Lei de Execução Penal, ficando o agente durante um ano sob prova, podendo voltar caso haja ato indicativo de periculosidade [13].

Fica também o agente sujeito às condições do livramento condicional. Outro ponto importante é o fato de a lei penal tratar da conversão do tratamento ambulatorial em internação, caso necessário para fins de tratamento, no entanto, nada fala em sentido contrário. Mas, segundo se tem entendido na doutrina e jurisprudência é perfeitamente possível que se aplique o tratamento ambulatorial, mesmo para hipóteses em que seria o caso de internação, caso não se verifique a periculosidade necessária [14].

5) Reintegração na comunidade de prisioneiros com distúrbios psiquiátricos: necessidades, problemas, soluções
O excesso ou a injustiça no tratamento oferecido ao preso ou internado pode resultar em um sentimento de justificativa da conduta delituosa ou desejo de vingança, como já fazia notar Foucault, indicando a manutenção de um mecanismo de perpetuação de uma relação de poder [15].

Muitas vezes se observa um padrão de repetição em que o egresso acaba por replicar, uma vez livre, o tratamento ou costumes vividos durante a prisão ou internação, em que comportamentos aprendidos ou reforçados durante o cárcere tendem a se repetir [16].

O processo de reintegração é complexo, na medida em que envolve diferentes especialidades e habilidades, visando ao afastamento do perigo do fenômeno da "porta-giratória", isto é, de repetidas entradas e saídas do sistema hospitalar/internação [17].

Referido processo é, sem dúvida, muito difícil, e só obtém algum tipo de sucesso se puder contar com a participação da sociedade em geral como facilitadora da ressocialização do egresso.

Um dos grandes problemas relaciona-se ao fato de que, por força das carências materiais e de uma ausência do Estado e de políticas públicas, muitos dos egressos em nenhum momento de suas vidas tiveram qualquer socialização. Então não há como possibilitar a ressocialização se não houver socialização. Na maioria das vezes, no entanto, é possível estabelecer um fio condutor, como aquele fio de Ariadne, a fim de buscar um caminho para a ressocialização. Faltam, contudo, política governamental e adesão da sociedade com um todo.     

6) Conclusões
Ainda que o sistema processual brasileiro tenha evoluído no que tange ao tratamento de presos com problemas psiquiátricos, consoante a Lei de Execução Penal, o próprio Código Penal, e a Lei nº10.216/2001, verdade é que se trata de uma mera evolução formal da legislação, sem a consequente materialização dos direitos e garantias individuais inerentes à condição de presos com problemas psiquiátricos.

Há falhas tanto no Executivo, quanto no próprio Judiciário, na salvaguarda dos referidos direitos e garantias.

Não há um adequado tratamento na fase da prisão provisória, mesmo na fase de internação, quanto mais no período subsequente ao tratamento, ou seja, na fase de reintegração social do egresso. Os esforços eventualmente existentes são insuficientes para garantir essa readaptação, muitas vezes, essencial para a própria recuperação plena da saúde mental.