Ver mais notícias

UM OUTRO OLHAR SOBRE CAUTELARES DOS TCS NO CONTROLE DE CONTRATOS ADMINISTRATIVOS

Os Tribunais de Contas demoraram a entrar efetivamente na agenda da doutrina brasileira, mas, principalmente por mérito de membros da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP) e do Observatório do TCU, essa relativa omissão vem sendo suprida nos mais diversos meios — de artigos em portais especializados a densas brochuras. Antes tarde do que nunca.

Um dos reflexos desse destaque pode ser notado em recentes e instigantes artigos publicados nesta ConJur e no Jota versando sobre o poder de cautela das cortes de contas, da lavra de expoentes do Direito Administrativo contemporâneo, a saber, Eduardo Jordão e André Rosilho, Flavio Garcia Cabral e Luciano Ferraz [1]. A intenção do texto ora apresentado é nada mais do que participar desse diálogo, oferecendo uma perspectiva parcialmente divergente no que tange ao controle externo dos contratos administrativos.

A primeira discordância digna de registro diz respeito às seguintes assertivas dos professores Jordão e Rosilho:

"O Direito aqui também é claro: meros fornecedores jamais poderiam ter seus bens declarados indisponíveis por tribunal de contas, pois sua jurisdição, embora ampla, é circunscrita a responsáveis pela gestão de dinheiros públicos (CF, artigo 70, parágrafo único). Leis orgânicas de tribunais de contas traduzem essa regra (e.g., artigo 44, § 2º, da Lei do TCU e artigo 120 c/c artigo 121, V, da Lei do TCE do RN).
Ou seja, especificamente em relação a meros fornecedores de bens e serviços para a administração, não é apenas que os tribunais de contas não possuem poder geral de cautela — é que rigorosamente não possuem poder algum" [2].

Com as devidas vênias, essa parece ser uma leitura "em tiras" da Constituição Federal, para usar consagrada expressão do ministro Eros Grau. A interpretação dos autores parece ignorar que o artigo 71, II, in fine, CF/88, possibilita o julgamento de contas de quem não teria, originalmente, o dever de prestá-las. Trata-se de julgamento que se processa por meio de tomada de contas especial, instaurada em função de "irregularidade de que resulte prejuízo ao erário". Assim, se à pessoa jurídica se imputa a responsabilidade pelo dano, ela se torna, ao menos potencialmente, parte na relação jurídico-processual, passando a incidir sobre ela também o §2º do artigo 44 da LOTCU [3].

Embora sejam de fato limitadas as competências das cortes de contas sobre empresas contratadas, elas não são pura e simplesmente inexistentes, como pretendem os professores da FGV. Nesse sentido, não há como se excluir de maneira apriorística e incondicional a possibilidade jurídica de a contratada sujeitar-se à responsabilização ressarcitória, caso pratique conduta geradora de prejuízo ao Tesouro [4].

Superada essa primeira questão, que não lida especificamente com as medidas cautelares incidentes sobre os contratos administrativos, passemos a estas, que constituem o principal objeto de nossa análise.

Em artigo que aborda a cautelaridade nos processos de controle externo, o professor Flavio Garcia Cabral reconhece às cortes de contas um poder geral de cautela sob o entendimento de que "a cautelaridade administrativa é própria do exercício da função administrativa, o que alberga, por conseguinte, a atuação dos Tribunais de Contas" [5]. Conquanto divirjamos no que toca ao enquadramento destes órgãos como exercentes de função administrativa [6] — e, consequentemente, à aplicabilidade direta da Lei Federal nº 9.784/1999 aos processos de controle externo —, não nos deteremos nesse aspecto.

Como alerta o professor Cabral, ainda que se reconheça um poder geral de cautela ao Tribunal de Contas, essa generalidade certamente não abarca de forma integral o controle de contratos, porque, para este, a CF/88 definiu um regramento próprio para uma espécie determinada de cautelar — a sustação do contrato. Afastando-se da disciplina do artigo 71, X, que confere ao órgão de controle a competência para sustar a execução de atos impugnados, assim dispõem os §§ 1º e 2º do mesmo artigo:

"Artigo 71  Omissis.
§1º. No caso de contrato, o ato de sustação será adotado diretamente pelo Congresso Nacional, que solicitará, de imediato, ao Poder Executivo as medidas cabíveis.
§2º. Se o Congresso Nacional ou o Poder Executivo, no prazo de noventa dias, não efetivar as medidas previstas no parágrafo anterior, o Tribunal decidirá a respeito" [7].

Desses enunciados se extrai que o constituinte optou por dar, no que concerne a contratos administrativos, primazia ou preferência ao controle político sobre o controle técnico do Tribunal de Contas. Trata-se de alternativa absolutamente legítima, não apenas por sua origem, mas também porque o controle externo da Administração Pública é compartilhado pelo Poder Legislativo e pelo Tribunal de Contas, os quais têm atribuições privativas e complementares no cumprimento dessa missão [8].

Porém, tal opção revela, repise-se, uma preferência, a qual, como sói acontecer no Direito, desaparece se não exercida no prazo conferido. Assim é que, com o máximo respeito, não se pode concordar com o entendimento, qualificado como "lúcido" pelo professor Cabral em seu artigo, de que mesmo transcorrido in albis o prazo conferido ao Poder Legislativo, não tem o Tribunal de Contas competência para determinar a sustação de contratos.

A celeuma sempre envolveu o que significaria a oração "o Tribunal decidirá a respeito", constante da parte final do §2º do artigo 71. Para alguns, "a respeito" deveria ser lido como "sobre a legalidade ou não do contrato e da respectiva despesa", já então no exercício da competência de julgar as contas do responsável (artigo 71, II) [9]. Por conseguinte, o artigo 45, §3º, da LOTCU teria ido além da Constituição ao tentar esclarecer seu conteúdo com a expressão "a respeito da sustação do contrato" [10].

Como postulamos anteriormente sobre o tema [11], tal posição não se coaduna nem com a literalidade da Lei Maior, nem com o sistema de controle externo estatuído. Observe-se que qualquer deliberação — ou mesmo a omissão — do Parlamento acerca da sustação do contrato obedece a critérios políticos, e não a critérios jurídico-formais [12], em nada interferindo no poder autônomo do Tribunal de Contas de julgar as contas do responsável. Nada impede que o Legislativo decida não sustar o contrato, caso em que a ilegalidade é momentaneamente superada por um juízo político acerca do que o interesse público reclama [13], e, ainda assim, a corte julgue irregulares as contas com base na ilegalidade das despesas decorrentes da avença.

Desse modo, o regramento estipulado pela Constituição prescreve que a sustação do contrato somente caberá à corte de contas se o Poder Legislativo quedar inerte; decidindo este expressamente pela não sustação, independentemente dos motivos que o levarem a tal, à corte só restará a possibilidade de julgar irregulares as contas do responsável no momento oportuno, seguindo o devido processo de controle externo.

Em complemento, há de se ter claro que a CF/88 previu tal regime exclusivamente para a sustação de contratos no âmbito do controle externo exercido pelo Poder Legislativo e pelo Tribunal de Contas. Se, por um lado, importa reconhecer que esse procedimento deve ser adotado no caso de cautelares que impliquem indiretamente a suspensão da avença, como uma determinação para total suspensão ou retenção de pagamentos, por outro, não se pode estendê-lo para toda e qualquer medida cautelar que envolva o controle de contratos administrativos.

De todo modo, nada obsta que a corte de contas, simultaneamente à provocação ao Parlamento para que adote a sustação contratual, dê ciência das irregularidades encontradas ao Ministério Público — para que, entendendo devido, leve a questão ao Poder Judiciário —, ou alerte as autoridades do Poder Executivo que as desconformidades serão levadas em conta na análise das contas dos gestores.

Por derradeiro, mister se faz examinar o posicionamento expendido pelo professor Luciano Ferraz, no sentido de que poderia o Poder Legislativo promover "contracautela" para determinar a continuidade do contrato, caso o Tribunal de Contas não seguisse o procedimento prescrito pela Constituição [14].

Ora, a leitura da Constituição e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal permite ver com clareza que não se dá ao Poder Legislativo qualquer competência para reverter opiniões ou decisões do Tribunal de Contas — nem mesmo no caso do parecer prévio das contas de governo (artigo 71, I, CF/88), em que a atuação da corte é estritamente auxiliar ao processo decisório do Parlamento. Se o Tribunal de Contas malfere a Constituição ou a legislação infraconstitucional, excedendo-se em suas competências ou violando direitos, o locus externo para correção é o Poder Judiciário, não o Poder Legislativo.

Por conseguinte, a se reconhecer a possibilidade de reversão da decisão do Tribunal de Contas pelo Parlamento, estar-se-ia não apenas violando a autonomia de que dispõe o primeiro, mas também usurpando competência do Poder Judiciário.

O contraponto está posto. Continuemos o debate!