A PRESERVAÇÃO DA HIGIDEZ FÍSICA E PSÍQUICA NO AMBIENTE DO TRABALHO
O respeito pela dignidade humana é considerado hoje um princípio geral de direito comum a todos os povos civilizados, afirma Chaïm Perelman, que associa os direitos humanos à dignidade da pessoa humana e diz que "a noção de direitos humanos implica que se trata de direitos atribuíveis a cada ser humano enquanto tal, que esses direitos são vinculados à qualidade do ser humano, não fazendo distinção entre eles e não se estendendo a mais além" [1].
Tal como acontece no ordenamento constitucional da maioria dos países, a Constituição brasileira estabelece a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República, citando-a já no seu artigo 1º como o mais importante direito fundamental e "o último arcabouço da guarida dos direitos individuais" [2].
Apresentando-se a dignidade da pessoa humana como o mais importante princípio constitucional e sendo a vida o mais relevante direito fundamental, a correlação de ambos leva à inarredável conclusão de que o principal direito de todo cidadão é o direito a uma vida digna, que não se exclui pela circunstância de o trabalhador colocar-se sob as ordens do empregador por meio de um contrato de trabalho, posto que a dignidade é qualidade e valor que o empregado conserva mesmo transpassando os portões da empresa, onde igualmente — talvez até com maior razão, dada a relação de poder e sujeição que se forma entre as partes — continua a merecer o devido respeito à sua pessoa. O local de trabalho é um centro de poder social atribuído ao empregador conhecido como poder diretivo, mas que não é absoluto nem ilimitado. Ao contrário: encontra barreira no respeito aos direitos fundamentais do trabalhador e à sua dignidade pessoal.
Konrad Hesse "advoga uma maior relevância da eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas quanto maior for a necessidade de proteção da liberdade individual contra o exercício de poder social ou econômico", havendo a necessidade de "uma atuação protetiva do legislador e, na ausência ou insuficiência dessa, uma interpretação das normas jurídico-privadas incidentes à luz dos direitos fundamentais (eficácia mediata), admitindo, quando também isso não se afigurar suficiente, uma realização direta pelos órgãos judiciais com base no dever de proteção diretamente deduzido dos direitos fundamentais" [3].
José Luis González de Rivera, traçando uma conexão entre a dignidade da pessoa humana e o Direito do Trabalho sob a ótica da sanidade psíquica do ambiente de trabalho, brada que "ninguém pode violar impunemente a dignidade da pessoa e portanto ninguém pode ser humilhado, menos ainda no lugar de trabalho do qual a pessoa, por necessidade econômica de subsistência, não se possa afastar livremente", salientando que "a vulneração de direitos ou as agressões físicas e psíquicas infligidas por uma pessoa com a qual se tem uma dependência hierárquica têm uma maior agravante" [4].
Não apenas a pessoa do empregado merece tratamento digno, como ser humano que é, como também sua atividade merece igual tratamento como um dos fatores de dignificação do indivíduo e em razão do papel que desempenha na sociedade moderna. Por força dessa proeminência do ser humano e da centralidade do trabalho é que a ordem jurídica deve garantir decisivamente o respeito aos direitos fundamentais do trabalhador e a sua dignidade nas duas vertentes, a pessoal e a profissional. Daí a necessidade de dar-se especial atenção ao meio ambiente de trabalho, este como o "habitat laboral, isto é, tudo que envolve e condiciona, direta e indiretamente, o local onde o homem obtém os meios para prover o quanto necessário para a sua sobrevivência e desenvolvimento, em equilíbrio com o ecossistema" [5], constituindo "o pano de fundo das complexas relações biológicas, psicológicas e sociais a que o trabalhador está submetido" [6]. Para Soraya Canasiro, "o meio ambiente de trabalho sadio encontra-se inserido entre os valores mais preciosos para o ser humano, a ser preservado pelas diversas instituições sociais" [7].
Diz Amauri Mascaro Nascimento que "dentre os direitos fundamentais do trabalhador está a proteção à vida e integridade física, que começa pela preservação do meio ambiente do trabalho", acrescentando que "a primeira condição que o empregador está obrigado a cumprir é assegurar aos trabalhadores o desenvolvimento das suas atividades em ambiente moral e rodeado de segurança e higiene" [8]. Também Sandro Nahmias Melo afirma que "é inafastável a conclusão no sentido de que o direito ao meio ambiente equilibrado é, sim, direito fundamental, materialmente considerado, uma vez que está inexoravelmente ligado ao direito à vida" e "vida com qualidade" [9].
Esse ambiente onde o trabalhador passa cerca de um terço de sua vida produtiva deve, então, ser saudável sob todos os aspectos, a fim de que nele não se produzam agressões à sua saúde física e psíquica. Mas nem sempre é isso o que ocorre, posto que são muito frequentes, lamentavelmente, as ocasiões em que o ambiente de trabalho, ao contrário de promover a dignificação da pessoa pelo exercício de uma atividade e de ser um local de bem-estar e de crescimento, se transforma em espaço favorável à aquisição de enfermidades de toda ordem, inclusive as mentais. A subordinação do empregado ao empregador não pode, por certo, levar à situação em que os poderes que este exerce sobre aquele culminem por afetar a higidez (física e psíquica) do trabalhador.
Além das condições laborais deverem respeitar a dignidade do trabalhador como ser humano que é (cabendo ao empregador, como autoridade na organização, observar e fazer observar essa garantia), é também obrigação do empregador "prover aos seus empregados um ambiente de trabalho sadio, com condições físicas e psicológicas ideais para o desenvolvimento das atividades laborais" [10].
"O local de trabalho é um ambiente volúvel, habitado por criaturas emocionais que muitas vezes irritam umas às outras", afirmam Catherine Crowley e Kathi Elster [11]. Por isso, quando se trata da saúde do trabalhador, é imperiosa uma abordagem psicossomática, pois, como lembram Ana Cristina Limongi França e Avelino Luiz Rodrigues, "o ser humano reage sempre como um todo complexo, interligado em profundas e complexas relações que, embora pouco compreendidas, são permanentes e fundamentais em nossa vida. O corpo humano não deve ser dividido" [12]. O local de trabalho é um ambiente carregado de riscos psicossociais, entendidos como tais "aqueles aspectos da concepção, organização e gestão do trabalho assim como de seu contexto social e ambiental que têm o potencial de causar danos físicos, sociais ou psicológicos nos trabalhadores" [13].
Segundo Christophe Dejours, no ambiente de trabalho o indivíduo padece de certos sofrimentos e, para ele, o sofrimento mental resulta da organização do trabalho, entendida esta como "a divisão do trabalho, o conteúdo da tarefa (...), o sistema hierárquico, as modalidades de comando, as relações de poder, as questões de responsabilidade etc" [14]. Ressalta ainda que a organização do trabalho exerce uma ação sobre o homem, cujo impacto é o aparelho psíquico, emergindo, em certas condições, um sofrimento que pode ser "atribuído ao choque entre uma história individual, portadora de projetos, de esperanças e de desejos, e uma organização do trabalho que os ignora" [15].
Na lei brasileira, porém, as normas sobre o ambiente laboral (artigos 154 e seguintes da Consolidação das Leis do Trabalho, ou CLT) são voltadas para as agressões à saúde do trabalhador decorrentes de agentes físicos, químicos e biológicos, não havendo referência às investidas psicológicas, o que poderia dificultar o enquadramento das ofensas psíquicas naquele capítulo da lei trabalhista, sendo útil a invocação da legislação previdenciária segundo a qual "a empresa é responsável pela adoção e uso de medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da saúde do trabalhador" [16], entendendo-se por saúde tanto a higidez física quanto a psíquica. O ingresso do indivíduo na atividade laboral é um fator de sua dignificação, de realização pessoal, de crescimento e de desenvolvimento, e não de deterioração. Ao fim da relação de trabalho o empregado deve deixar o emprego pelo menos tão saudável quanto no momento do ingresso.
Fernando Noronha alude aos deveres inerentes a uma relação jurídica, citando entre eles os deveres de cuidado (também chamados de proteção ou segurança, significando que cada parte da relação obrigacional deve "cuidar para que a outra não sofra lesões, nem em sua pessoa nem no seu patrimônio") e os de assistência (que obrigam as partes a, ao longo do tempo, prestar auxílio à contraparte) [17]. Fácil transpor tais deveres à relação de emprego, destacando-se os deveres do empregador de dar proteção e segurança ao empregado, a fim de que este, na execução do contrato, não sofra ataques à sua integridade física e psíquica, além de prestar-lhe a devida assistência caso se verifique alguma agressão. É dever do empregador prevenir situações que caracterizem um risco
do trabalho, tendo ele a obrigação de proporcionar segurança e higiene no ambiente laboral, ensejando a "responsabilidade empresarial quando, pela deficiente atuação preventiva na unidade produtiva, ocorra um dano à segurança ou saúde do trabalhador, pois em tal caso aquela terá descumprido seu dever de proteção" [18]. Daí decorre também a obrigação patronal de ressarcir os danos (patrimoniais ou não) resultantes da sua incúria.
Há de se ressaltar ainda a função social das obrigações. O contrato de trabalho é um negócio jurídico de caráter social por sua própria natureza e finalidade e os direitos do credor da prestação de serviços (vale dizer, o empregador) devem ser exercidos conforme essa finalidade social.
No marco das relações de trabalho, pois, incidem amplamente direitos fundamentais próprios e específicos dessa área (como o direito de greve e a liberdade sindical), ao lado de outros gerais e inespecíficos, entre os quais o da igualdade e o da não discriminação, os direitos de personalidade, as liberdades de crença e de expressão, a inviolabilidade da vida privada, o sigilo das comunicações, a proteção à saúde e à integridade física e psicológica e outros. Estudos relativamente recentes na área da Psicopatologia do Trabalho mostram a estreita ligação entre a atividade profissional e a saúde mental, particularmente em razão da influência que os aspectos organizacionais e as relações interpessoais exercem sobre o corpo e a mente do trabalhador. Não raras vezes,
os riscos psicossociais presentes no ambiente laboral podem causar até o
suicídio do empregado, nesse caso caracterizado como evento trabalhista [19].
Por isso, ao empregado deve ser assegurado um ambiente de trabalho sadio, preservando-se a sua saúde psicofísica e, em última análise, sua própria vida, impondo-se ao empregador o dever de proteção da vida e da higidez física e psicológica daquele que, dispondo-se a lhe prestar serviços, coloca-se sob suas ordens, seu comando e seu controle.