AUXÍLIO-MORADIA PARA MÉDICOS: UM DIREITO ARDENTE, MAS SILENCIADO
Os deveres deontológicos e jurídicos atribuídos aos médicos são extensos e inesgotáveis. Para se ter uma dimensão, o Código de Ética Médica prevê um rol de 117 deveres, mas apenas 11 direitos (normas diceológicas). A judicialização da atividade também é alarmante. Hoje, segundo estatística produzida pelo Conselho Nacional de Justiça, há 107.612 demandas que versam sobre o alegado "erro médico" em trâmite no Brasil.
Essas constatações e estatísticas têm muito a nos revelar, e demonstram que a profissão ainda está envolta de tabus e magias. É como se o médico, por já ter status e boa remuneração, não pudesse se dar ao desfrute de usufruir de outros direitos que a lei lhes garante. É como se não pudesse ter direito a ter direitos.
A propósito, há muitos direitos silenciados. E o pudor de falar sobre eles começa na faculdade, perpassa pela residência e atinge todo o tempo de vida laboral do facultativo.
Neste breve artigo, vamos desnudar um tabu que ronda os programas de residência médica no país: o direito ao auxílio moradia. Ninguém noticia o assunto, e ninguém também pergunta. Afinal das contas, o residente é um privilegiado, porquanto já recebe uma bolsa de estudo para se especializar.
Enfim, independentemente dos motivos, fato é que a verdade não chega ao seu destinatário. Há também muitas dúvidas jurídicas a respeito, cujo propósito é supri-las nas linhas seguintes.
Com efeito, as instituições de saúde (universitárias ou não) que fornecem os programas de residência médica [1], entre outros deveres que a lei lhes prescreve, são as entidades obrigadas à concessão de moradia aos residentes. É o que prevê o artigo 4º, §5º, inciso III, da Lei nº 6.932/81, cuja redação foi instituída pela Lei nº 12.514, de 28/10/2011 [2].
Todavia, como já adiantei, as instituições pagam a bolsa que a lei determina, mas raramente asseguram moradia ao médico residente, seja disponibilizando uma habitação (in natura) ou mesmo pagando o correspondente em dinheiro (in pecúnia).
O descumprimento desse dever jurídico pela instituição, faculta ao médico-residente à judicialização da questão, cabendo-lhe acionar o Judiciário tanto durante o trâmite do treinamento quanto após a sua finalização, sendo que o segundo caminho é mais benéfico do ponto de vista jurídico, e até menos exaustivo emocionalmente para o profissional.
Mas é a casuística que, acima de tudo, determinará qual o rumo melhor a se seguir, por isso, imperioso que o residente consulte um advogado especialista em Direito Médico, inclusive, para proceder à análise das documentações pertinentes, com o intuito de verificar se realmente o médico faz jus às prestações supostamente não adimplidas.
Embora haja previsão legal, há por parte dos residentes (e dos já que concluíram o programa) importante insegurança quanto ao seu direito, e também dúvidas atinentes ao quantum devido.
Entretanto, não há o que temer, haja vista que o Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que a instituição, na hipótese de não oferecer a tutela específica (moradia in natura), deverá cumprir a prestação em pecúnia, a teor do previsto no artigo 247 e seguintes do Código Civil, tendo reafirmado o posicionamento de que "existindo dispositivo legal peremptório acerca da obrigatoriedade no fornecimento de alojamento e alimentação, não pode tal vantagem submeter-se exclusivamente à discricionariedade administrativa, permitindo a intervenção do Poder Judiciário a partir do momento em que a Administração opta pela inércia não autorizada legalmente" [3].
Em relação à fixação do valor devido, o STJ tem deixado tal decisão às instâncias ordinárias, por não ter poderes para analisar questões fático-probatórias, sob pena de violação à Súmula nº 7 da corte [4].
Nessa quadra, o Poder Judiciário tem determinado, em média, que as instituições paguem ao residente, o percentual de 30% sobre o valor bruto mensal da bolsa que percebeu durante a residência, desde o seu início. Com base neste parâmetro, o juízo da 13ª Vara Federal de Juizado Especial Cível da Seção Judiciária de Goiás, em decisão recente, condenou a Universidade Federal de Goiás [5]. Mas cumpre ressalvar que algumas decisões judiciais têm estipulado alíquota menor.
A exemplificar, a bolsa estabelecida atualmente (na data da publicação deste artigo) é de R$ 3.330,43. Em um programa com duração de três anos, o valor indenizatório será de aproximadamente R$ 36.075,56 fora os juros e correção monetária devidos.
Trata-se de valor indenizatório, que deverá ser fixado por arbitramento, sendo desnecessário que o residente comprove e colacione em juízo as despesas com sua moradia. Em outras palavras, não cabe à instituição alegar que o residente não precisa do auxílio, pois está-se a falar de obrigação a ser concretizada independentemente do nível econômico do postulante [6].
Por último, destaca-se que as prestações do auxílio-moradia são obrigações de trato sucessivo, ou seja, renovam-se periodicamente. Aludida informação é importante para fins prescricionais, de maneira que a prescrição da pretensão abrange apenas as parcelas anteriores ao quinquênio que antecede o ajuizamento da demanda. A modo de exemplo, se o residente, em setembro de 2021, pleiteia em juízo a indenização correspondente aos anos de 2015, 2016 e 2017, apenas estaria fulminado pela prescrição o auxílio de 2015, não sendo viável à instituição alegar a prescrição de todos os exercícios, justamente porque a natureza jurídica dessas obrigações é de trato sucessivo.
Em resumo, inferimos que o médico é, sim, pródigo de direitos. Ocorre que são inequivocamente negligenciados, até pela cultura prevalente da judicialização da Medicina, em que os deveres desses profissionais ficam em constante exposição (e cobrança), ao passo que os direitos ficam adormecidos, anestesiados.
Mas esse panorama deve urgentemente ser alterado, pois a higidez da saúde coletiva e individual passa necessariamente pelo bem-estar e pelo exercício da cidadania de nossos médicos, em todos os sentidos.