O EFEITO REVERSO DO DECRETO Nº 10.187/2021 E SUAS CONSEQUÊNCIAS
No último dia 13 foi publicada a Lei nº 14.182, que trata sobre a desestatização da Centrais Hidrelétricas Brasileiras. S.A. (Eletrobras). Tal lei impõe como um dos requisitos para a desestatização da Eletrobras, a "prorrogação" dos contratos do Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa) por 20 anos a partir dos atuais contratos.
Importante destacar que o legislador classificou esse requisito como uma verdadeira condição para a desestatização. Além desta, são condições para a desestatização: 1) a modalidade da desestatização, através de aumento de capital; 2) a outorga de novas concessões por 30 anos; 3) a contratação de termoelétricas a gás natural em determinadas regiões e condições, com vistas a segurança energética; 4) reorganização societária com garantia de direito de veto, golden share, para o governo, além de vários outros pré-requisitos.
Cada uma dessas condições foi imposta pelo legislador com um fim específico, quais sejam, manter o controle do governo, determinar a forma da desestatização e manter a segurança energética. A condição que envolve a prorrogação dos contratos Proinfa visa à modicidade tarifária.
Ocorre que quando o Proinfa foi instituído pela Lei nº 10.432/2002, o índice indicado para o reajuste do preço do leilão ao longo do contrato foi o Índice Geral de Preços-Mercado, o IGP-M. Como é notório, desde a metade de 2020, por motivos diversos, o IGP-M disparou, destoou não apenas dos demais índices, mas da realidade de inflação do país. Entretanto, por ser um contrato regulado, o índice não pode ser alterado, salvo diante da anuência das partes, nesse caso os agentes Proinfa e a Eletrobras, administradora do programa.
Foi por isso que o legislador, visando à modicidade tarifária, impôs, na Lei nº 14.182/2021, a condição de somente desestatizar a Eletrobras depois de prorrogados os contratos Proinfa nos termos da lei.
Tomando o cuidado para garantir aos agentes do Proinfa os direitos e obrigações dos contratos atuais, a lógica prevista em lei sobre as condições da prorrogação desses contratos é simples. Em resumo, os agentes renunciam ao IGP-M como índice de correção do contrato no período 2020/2021, o que terá impacto financeiros para estes até o final dos contratos vigentes. Em contrapartida, como forma de compensação, assinam um novo contrato por mais 20 anos contados do final do atual contrato com preço já definido, sendo que as outorgas devem ser estendidas com o fim de acompanhar esses novos contratos. O objetivo é claro: reduzir o preço no curto prazo e equilibrar a equação econômico-financeira com um novo.
No último dia 17, o governo publicou no DOU o Decreto nº 10.798/2021, regulamentando o dispositivo legal que trata das condições para prorrogação desses contratos, uma vez que muitas dúvidas interpretativas pairavam, tanto pela Aneel, responsável por fiscalizar o programa, quanto pela Eletrobras, gestora dos contratos, quanto pelos agentes integrantes do Proinfa. Porém, o que se percebeu foi a construção de um cenário inusitado distante dos objetivos da lei, preservando lacunas que levam a insegurança jurídica para tomada de decisão dos agentes quanto a prorrogação dos contratos.
A começar, a Lei nº 14.182/2021 foi clara ao dispor em seu parágrafo 1º do artigo 1º que o preço de contratação deveria ser o preço máximo equivalente ao teto estabelecido para geração de pequena central hidrelétrica (PCH) do Leilão A-6 de 2019 para empreendimentos sem outorga (R$ 285). Porém, ao arrepio da lei, o decreto determina que o preço de contratação será o preço máximo equivalente ao teto estabelecido para geração de pequena central hidrelétrica (PCH) do Leilão A-6 de 2019 para empreendimentos com contrato (R$ 225).
Além disso, apesar de a Lei nº 9.427/1996 instituir o desconto no fio para os agentes de geração autorizados, incluindo os do Proinfa, e esse desconto estar diretamente atrelado a outorga vigente destes, devendo, portanto, tal desconto acompanhar a outorga, a redação trazida pelo decreto deixa margem para o entendimento de que a perda de desconto do fio será imediata, em sentido contrário ao que preconiza a Lei nº 9.427/1996.
Não bastasse, o decreto instituiu poderes ao regulador até então não previstos nem na Lei 9.427/1996, nem na Lei 14.182/2021, como a possibilidade de não prorrogação de contratos se entender não haver benefícios tarifários, enquanto a ele cabia, por lei, tão somente a apuração de tais benefícios, nada além. Portanto, tal dispositivo acaba por alterar a restrição de atuação do regulador prevista em lei, o que não é passível via decreto, sendo, portanto, ilegal.
Adicionalmente, o Decreto nº 10.798/2021 se omitiu de questões importantes para que os agentes do Proinfa possam avaliar a adesão ou não aos novos contratos.
Veja-se que a Lei nº 14.182/2021 prevê que "os contratos poderão ser prorrogados por período de 20 anos após a data de vencimento atual". A "prorrogação" de que trata essa lei corresponde à espécie prorrogação-ampliação, do gênero prorrogação, como nos ensina o professor Marçal Justen Filho [1], haja vista tratar-se verdadeiramente de uma compensação, pois, para obter a prorrogação dos contratos do Proinfa, o gerador terá de: 1) aceitar a substituição do seu credor atual (a Eletrobras) pela ENBPar; 2) perder parte dos benefícios dos descontos tarifários do uso dos sistemas (Tusd e Tust); 3) perder valor monetário em relação ao preço-teto do leilão A-6 de 2019, da publicação da lei até a assinatura dos aditivos; e 4) renunciar à correção monetária, de 2020 para 2021, pelo IGP-M. Manifestou-se, então, a necessidade de uma compensação ao gerador, de tal modo que o caso é de "prorrogação-ampliação" ou extensão.
Significa dizer que tal prorrogação tem natureza similar à prorrogação quando há recomposição de prazo por excludente de responsabilidade nos termos da Lei nº 13.360/16, e àquela envolvida na compensação aos geradores do MRE, nos termos da Lei nº 14.052/2020.A natureza dessas prorrogações é distinta da prorrogação prevista na Lei 12.783/2015, que é uma prorrogação-renovação, em que se inicia um novo ciclo autorizativo, com novas regras e novo formato. Portanto, não devem se confundir.
Desse modo, o decreto acaba por ser omisso quando, a despeito de determinar que as outorgas serão prorrogadas para acompanhar os contratos: 1) não especifica que a prorrogação da lei é do tipo prorrogação-ampliação, do gênero prorrogação; 2) não dispõe que essa prorrogação não impede a prorrogação prevista na Lei 12.783/2015, renovações onerosas por 30 anos; 3) não especifica que as extensões de outorga reguladas pela Lei 13.203/2015, para compensar perdas pelo GSF, devem ser somadas à prorrogação da Lei 14.182/2021; e 4) não dispõe que direitos advindos das repactuações de risco hidrológico devem ser estendidos até o fim dos contratos Proinfa.
O decreto, ao silenciar sobre questões relevantes como as supracitadas, ao instituir poderes não previstos em lei ao agente regulador, ao determinar a utilização de preço diferente do previsto em lei e ao determinar a perda de direitos ao arrepio da lei, no lugar de trazer segurança jurídica para a tomada de decisão do gerador traz profunda insegurança, o que inviabiliza até mesmo os estudos mais conservadores sobre a viabilidade econômico-financeira de aderir ao novo contrato Proinfa.
Mas, se a renovação dos contratos do Proinfa é uma das condições para a desestatização da Eletrobras, tanto quanto a criação de uma nova empresa, a modalidade de aumento de capital, a golden share e a contratação de termoelétricas a gás natural supramencionadas, como seria possível, então, avançar com a desestatização se essa condição, com o uso do termo da lei, não foi cumprida?
Num momento de crise energética, em que a população inteira do país sofre com o aumento exponencial do custo de energia, o governo, de fato, inviabiliza uma proposta do Poder Legislativo para promover modicidade tarifária no curto prazo.
Ora, a conclusão a que se chega é que, da mesma forma que os agentes do Proinfa não possuem segurança jurídica a partir da leitura do Decreto 10.187/2021 para sequer avaliar a viabilidade de adesão, tampouco haverá segurança jurídica para eventuais interessados na desestatização da Eletrobras, uma vez que uma das condições para tal procedimento não teria sido atendida.
Dessa forma, é urgente que o Decreto 10.187/2021 seja revisto e reeditado nos pontos que conflitam flagrantemente com a lei e nos pontos em que inova ao arrepio da lei. Além disso, é imperioso que o decreto verse sobre questões interpretativas cruciais, a fim de trazer segurança jurídica e estabilidade ao mercado, bem como viabilidade legal ao processo de desestatização da Eletrobras.