DECISÃO COORDENADA: A BOA NOVIDADE
Em um ano repleto de novidades não necessariamente alvissareiras, a recente inovação denominada "decisão coordenada" talvez tenha sido recebida com desdém, ou mesmo desconfiança. O instituto foi criado por intermédio da Lei Federal nº 14.210, de 30/09/21, que alterou a Lei Federal de Processo Administrativo (Lei nº 8.784/99) por meio do acréscimo de alguns dispositivos. Na justificativa para a alteração legislativa escreveu o senador Antônio Anastasia, responsável pela iniciativa: "A administração pública moderna deve ser baseada nos tradicionais princípios da legalidade e da eficiência, mas lidos, agora, a partir de novos pressupostos, como a transparência e a celeridade na tomada de decisões e a participação democrática como elementos fundantes de qualquer ordem jurídica justa".
A busca por uma Administração Pública que tenha no concerto ou consenso suas principais formas de agir tem sido objeto de atenção da doutrina há algum tempo. Em razão das origens do nosso Direito Administrativo e de alguns dos pilares sobre os quais foi construído — legalidade, unilateralidade e hierarquia —, a busca por aprofundamento nos instrumentos de legitimação do exercício do poder é sempre necessária. Transparência, participação e controle social, por exemplo, são tópicos que compõem esse cenário e que exigem adequado tratamento no nosso Estado social e democrático de Direito. Ensina Eurico Bitencourt Neto:
"A Administração concertada é entendida como aquela que, sob o pálio de um Estado de Direito democrático e social, abre-se à participação e busca o consenso como condições prévias à sua manifestação — seja de modo unilateral, bilateral ou multilateral. Para além das situações em que a Administração já fazia uso de contratos — sejam contratos administrativos, sejam contratos de direito privado — a atuação administrativa concertada utiliza a participação e o consenso em instrumentos procedimentais diversos, como meios do exercício dos poderes públicos. Tal modelo se funda na busca de adesão dos interessados e, também, dos próprios agentes do Estado responsáveis pela atuação administrativa, o que fundamente instrumentos de concertação interna ou interorgânica" [1].
Uma das inspirações invocadas no projeto de lei foi o instituto italiano da conferenza di servizi, delineado com o intuito de simplificar e decidir, de forma coordenada, situações que envolvam a avaliação de diversas dimensões do interesse público [2]. Em outros ordenamentos, existem vários exemplos de instrumentos de concertação, com diferentes amplitudes [3]. Passo à análise das principais características do novo instituto de acordo com seu desenho jurídico-legislativo na Lei nº 9.784/99, após as alterações realizadas pela Lei nº 14.210/21.
Inicialmente, os requisitos para o cabimento das decisões coordenadas são cumulativamente estabelecidos no artigo 49-A: a) podem ser adotadas para decisões administrativas que exijam a participação de três ou mais setores, órgãos ou entidades; b) quando for justificável pela relevância da matéria; e c) quando houver discordância que prejudique a celeridade do processo administrativo decisório. A referência a "setores, órgãos ou entidades" delimita o cabimento subjetivo do novo instituto. Enquanto órgão público (unidade de atuação despersonalizada, integrada em uma pessoa jurídica, sendo centro de imputação parcial de competências atribuídas pelo ordenamento jurídico) e entidade (unidade de atuação com personalidade jurídica e competências próprias) sejam categorias mais referenciadas na doutrina e na legislação, a referência a setores é menos comum. Atribuo à expressão setor o significado de subdivisão de órgão ou entidade que demande alguma especialidade de conhecimento com relação à um amplo espectro de competências públicas.
A referência a setor traz consigo a necessária correlação com intersetorialidade, presente na definição da decisão coordenada. Intersetorialidade, como se intui, envolve relação entre diferentes setores de uma mesma Administração Pública. Ao colocar em destaque que a intersetorialidade não mira somente a melhoria do desempenho como também a abordagem integrada na solução de problemas públicos complexos, anota Núria Cunill-Grau:
"[...] A intersetorialidade implica não somente que os diversos setores do governo entreguem a um mesmo público específico os serviços que são próprios de cada um, mas também, de maneira articulada, atendam às necessidades sociais, ou previnam problemas que tenham na sua origem causas complexas, diversas e relacionadas entre si. A suposição é, portanto, que se almejamos conseguir, por exemplo, o desenvolvimento integral da primeira infância, não basta que cada setor (saúde, educação, agricultura etc.) faça o que lhe corresponde, de acordo com suas respectivas atribuições (prover cuidados às crianças para prevenir doenças, fornecer tratamentos eficazes, oferecer educação etc.); também não significa evitar que haja sobreposição entre eles. Implica que os setores 'entrem em um acordo' para trabalhar conjuntamente visando a alcançar uma mudança social em relação à situação inicial. A partir dessa perspectiva, a noção de intersetorialidade refere-se à integração de diversos setores, principalmente — embora não unicamente — governamentais, visando à resolução de problemas sociais complexos cuja característica fundamental é a multicausalidade. Essa noção de intersetorialidade também implica relações de colaboração, claramente não hierárquicas e, inclusive, não contratuais" [4].
A definição de decisão coordenada se encontra no artigo 49-A, §1º: é "a instância de natureza interinstitucional ou intersetorial que atua de forma compartilhada com a finalidade de simplificar o processo administrativo mediante participação concomitante de todas as autoridades e agentes decisórios e dos responsáveis pela instrução técnico-jurídica, observada a natureza do objeto e a compatibilidade do procedimento e de sua formalização com a legislação pertinente".
A lei traz um incentivo para a adoção de decisões coordenadas em prol da racionalidade, eficiência, transparência e também da segurança jurídica. O princípio da coordenação no exercício das atividades da Administração Pública está previsto no Decreto-Lei 200/67 desde sua redação original (artigo 6º, II, artigos 8º e 9º, em especial). Entretanto, há pouca elaboração jurídico-normativa de instrumentos de coordenação. A propósito, cooperação, colaboração e coordenação (os "três Cs") costumam ser tratados como sinônimos, mas é possível identificar e estabelecer diversos níveis de aproximação e integração que podem ser tratados de diversas formas pelo direito positivo. Em artigo interessantíssimo sobre combinações de estratégias de integração, Keast, Brown e Mandell reconhecem que "todos os '3Cs' têm mérito e utilidade. Tomando como referência cada estrutura, a chave para implantação de mecanismos de integração bem sucedidos é decidir antecipadamente quais resultados devem ser alcançados" [5]. Na decisão coordenada, um desses mecanismos, a finalidade é conferir racionalidade e buscar o consenso na busca de solução de questões complexas, que envolvam diversas áreas e estruturas subjetivas com competência. Há uma busca pelo consenso por meio da discussão e deliberação colegiadas, inclusive por meio da oitiva dos interessados na discussão (artigo 49-B).
Algumas considerações preliminares sobre o regime jurídico da decisão coordenada: a) os órgãos ou entidades participantes conduzem a análise técnica inicial dos temas de sua competência (artigo 49-E) e preservam as respectivas competências individuais específicas; b) há um exercício compartilhado da competência administrativa que resultará na prática de uma decisão (ato) complexa, sendo a decisão colegiada consolidada em ata (que deverá conter as informações constantes do artigo 49-G); c) o ato complexo é imputado a todos os participantes e, obviamente, vincula os órgãos e entidades participantes com relação às questões interinstitucionais ou intersetoriais tratadas [6].
Como já tive a oportunidade de escrever neste espaço, "o período de pandemia tornou clara a importância de diálogo e cooperação entre os entes da Federação para a busca de eficiência e eficácia das políticas públicas, notadamente para aquelas que — como saúde e educação — constituem competências administrativas comuns, de acordo com a Constituição Federal. Diálogo interinstitucional, coordenação, cooperação, articulação e sinergia são algumas das expressões utilizadas muitas vezes como sinônimos para significar a necessidade de aproximação e soma de esforços para a realização de competências administrativas que, ainda que possuam certo grau de diferenciação, se identificam na noção maior de interesse público" [7]. A decisão coordenada é um instrumento interessante e importante para a busca de uma administração pública transparente, dialógica e eficiente, que busque segurança jurídica e incorpore legitimidade em todas as suas atuações.
"LEI Nº 14.210, DE 30 DE SETEMBRO DE 2021
Mensagem de veto
Acrescenta o Capítulo XI-A à Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, para dispor sobre a decisão coordenada no âmbito da administração pública federal.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º A Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, passa a vigorar acrescida do seguinte Capítulo XI-A:
CAPÍTULO XI-A
DA DECISÃO COORDENADA
Art. 49-A. No âmbito da Administração Pública federal, as decisões administrativas que exijam a participação de 3 (três) ou mais setores, órgãos ou entidades poderão ser tomadas mediante decisão coordenada, sempre que:
I - for justificável pela relevância da matéria; e
II - houver discordância que prejudique a celeridade do processo administrativo decisório.
§ 2º (VETADO).
§ 3º (VETADO).
§ 4º A decisão coordenada não exclui a responsabilidade originária de cada órgão ou autoridade envolvida.
§ 5º A decisão coordenada obedecerá aos princípios da legalidade, da eficiência e da transparência, com utilização, sempre que necessário, da simplificação do procedimento e da concentração das instâncias decisórias.
§ 6º Não se aplica a decisão coordenada aos processos administrativos:
I - de licitação;
II - relacionados ao poder sancionador; ou
III - em que estejam envolvidas autoridades de Poderes distintos.
Art. 49-B. Poderão habilitar-se a participar da decisão coordenada, na qualidade de ouvintes, os interessados de que trata o art. 9º desta Lei.
Parágrafo único. A participação na reunião, que poderá incluir direito a voz, será deferida por decisão irrecorrível da autoridade responsável pela convocação da decisão coordenada.
Art. 49-C. (VETADO).
Art. 49-D. Os participantes da decisão coordenada deverão ser intimados na forma do art. 26 desta Lei.
Art. 49-E. Cada órgão ou entidade participante é responsável pela elaboração de documento específico sobre o tema atinente à respectiva competência, a fim de subsidiar os trabalhos e integrar o processo da decisão coordenada.
Parágrafo único. O documento previsto no caput deste artigo abordará a questão objeto da decisão coordenada e eventuais precedentes.
Art. 49-F. Eventual dissenso na solução do objeto da decisão coordenada deverá ser manifestado durante as reuniões, de forma fundamentada, acompanhado das propostas de solução e de alteração necessárias para a resolução da questão.
Parágrafo único. Não poderá ser arguida matéria estranha ao objeto da convocação.
Artigo 49-G. A conclusão dos trabalhos da decisão coordenada será consolidada em ata, que conterá as seguintes informações:
I - relato sobre os itens da pauta;
II - síntese dos fundamentos aduzidos;
III - síntese das teses pertinentes ao objeto da convocação;
IV - registro das orientações, das diretrizes, das soluções ou das propostas de atos governamentais relativos ao objeto da convocação;
V - posicionamento dos participantes para subsidiar futura atuação governamental em matéria idêntica ou similar; e
VI - decisão de cada órgão ou entidade relativa à matéria sujeita à sua competência.
§ 1º Até a assinatura da ata, poderá ser complementada a fundamentação da decisão da autoridade ou do agente a respeito de matéria de competência do órgão ou da entidade representada.
§ 2º (VETADO).
§ 3º A ata será publicada por extrato no Diário Oficial da União, do qual deverão constar, além do registro referido no inciso IV do caput deste artigo, os dados identificadores da decisão coordenada e o órgão e o local em que se encontra a ata em seu inteiro teor, para conhecimento dos interessados.
Artigo 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação".
[1] NETO, Eurico Bitencourt. Concertação administrativa interorgânica: direito administrativo e organização no século XXI. Lisboa: Almedina 2017, p.249.
[2] Sobre a conferenza di servizi: “Il contenuto dell’atto conclusivo del procedimento è il frutto dell’attività di acquisizione dei fatti rilevanti e degli interessi coinvolti. Le norme di settore disciplinano normalmente i procedimenti regolando questa attività in sequenze, cioè stabilendo um certo ordine per i vari adempimenti. Tuttavia, le diversi fasi possono essere concentrate in um’única fase nella quale i diversi interessi pubblici siano oggeto di valutazione contestuale, da parte dei rappresentanti delle relative amministrazioni, appositamente riuniti. È la conferenza di servizi, che semplifica il procedimento acelerandolo e favorendo il coordinamento tra le amministrazioni e il confronto tra gli interessi coinvolti” (CASSESE, Sabino (Org.). Istituzioni di Diritto Amministrativo. 5.ed. Milão, Itália: Giuffrè Editore, 2015, p.342).
[3] Exemplos de instrumentos de concertação interorgânica em sistemas estrangeiros: NETO, Eurico Bitencourt. Concertação administrativa interorgânica: direito administrativo e organização no século XXI. Lisboa: Almedina 2017, p.317 e seg.
[4] CUNILL-GRAU, Núria. A intersetorialidade nas novas políticas sociais: uma abordagem analítico-conceitual. In: Cadernos de Estudos Desenvolvimento Social em Debate. n. 26 (2016). Brasília, DF : Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação, 2005, P.35-66
[5] KEAST, Robin; BROWN, Kerry; MANDELL, Myrna. Encontrando a combinação certa: decifrando significados e estratégias de integração. Revista do Serviço Público, v. 63, n. 3, p. p. 313-341, 29 jan. 2014.
[6] Sobre autovinculação, confiram: MODESTO, Paulo. Autovinculação convencional da administração pública: o contrato de gestão no interior da administração pública brasileira. Revista internacional de Contratos Públicos, n.1, p.1-41, fev./2013. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/codrevista.asp?cod=563.