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IMPRESCRITIBILIDADE DE INJÚRIA RACIAL: A MORAL DEVE CORRIGIR O DIREITO?

Enfrento aqui um assunto que, por ter sua repercussão política, adquire maior delicadeza. Mas nem por isso deixarei de enfrentar a temática.

Na verdade, sempre que há uma decisão polêmica, as opiniões se dão, paradoxalmente, pelo que conduziu a decisão: a apreciação moral das pessoas sobre o fenômeno.

Explico. Por uma questão de poder e (também) de civilização, o século 19 inicia a separação entre Direito e moral, embora Hobbes tenha feito isso bem antes com auctorictas non veritas facit legem ("É a autoridade quem faz a lei, e não a verdade"). Isso tinha uma razão de ser: Hobbes era um homem de seu tempo e era um positivista honesto: assumia ter razões morais para separar Direito e moral. Um positivismo político que se assumia como tal.

O positivismo separa Direito e moral. Porém, contemporaneamente, não se preocupa com a decisão jurídica, o que lhe tira os dividendos da empreitada. Afinal, tem pretensões meramente descritivas.

Autores como Ferrajoli, para alcançarem uma posição forte de garantismo, sustentam a secularização do Direito, isto é, no Direito Penal, desejos morais e quejandos não devem fazer parte do Direito. Dito de outro modo, o Direito Penal não deve punir vícios e comportamentos. A pretensão de correção moral não pode vir do Estado e da criminalização. De outro modo, Hart também disse isso no século 20, sustentando uma posição liberal na Inglaterra.

Daí que se pode até mesmo falar de um "princípio da secularização", que usei, aliás, para sustentar, há duas décadas (junto com Amilton Bueno e Salo de Carvalho), até mesmo que a reincidência era contrária à Constituição. Durante vários anos essa tese foi dominante junto à 5ª Câmara do TJ-RS. Aos críticos de sempre, que veem esquerdismo em tudo, insisto: secularizar o Direito é (também) uma posição liberal. Nada de novo nisso.

Nesse sentido, a garantia da prescritibilidade é uma conquista da secularização do Direito. Doa a quem doer. Veja-se que houve um período em que um dispositivo do CPP que dizia que a ausência do réu suspendia o processo. Já no inicio sustentei, como procurador de Justiça, que essa suspensão não poderia ser para além do prazo de prescrição. Fui o primeiro a sustentar isso.

Mas, por que escrevo sobre isso? Para dizer que não se mostrou correta a decisão do Supremo Tribunal tornando a injúria racial imprescritível. Não fosse por nada, porque isso é tarefa do legislador. Aliás, vou mais longe: essa reserva até mesmo é do constituinte derivado.

Em verdade, não cabe nem ao legislador estender o rol de crimes imprescritíveis. Tampouco ao Judiciário. Trata-se de uma taxação, por mais que essa palavra machuque os defensores do livre convencimento (e coisas do gênero).

A decisão do STF, muito festejada por setores da comunidade jurídica, para além disso viola a mínima secularização exigida no Estado democrático de Direito. O STF fez uma apreciação moral sobre como ele acha que deve ser o Direito. Além de tudo, viola a lei de Hume: de um é, fez um "deve". Há racismo ("é"), logo, devemos... ("deve").

Somos tentados a moralizar o Direito. E, quando fazemos isso, esquecemos que a moral é um dos predadores do Direito. Moral e Direito estão interligados, quando de sua forma(ta)ção. Todavia — e aqui está o busílis —, na sua aplicação, argumentos morais não podem corrigir o Direito. Qual o Direito? O que foi democraticamente aprovado e secularizado em uma república constitucional. O paradoxo e o mistério do Direito é: quem produz o Direito não pode dele se adonar.

Como se pode ver, meu problema com a moralização indevida do Direito por parte do Judiciário é a fragilização desse princípio básico da secularização do Direito. Quem diz qual crime pode virar imprescritível? Quais as condições epistemológicas para dizer isso?

No limite, isso fragiliza o próprio Supremo. Tenho escrito muito sobre a necessidade do Supremo Tribunal para segurar a democracia. Tenho aplaudido a corte quando ela age para preservar a República.

E, despiciendo dizer, não, não acho que exista um direito fundamental à injúria. É até uma platitude dizer isso. Ou patético. O fato é que a Constituição Federal estabeleceu quais são os crimes imprescritíveis e lá elencou o racismo como um deles. Ocorre que racismo é diferente de injúria racial. Não sou eu quem estou dizendo isso. É o próprio legislador que, pouco após a promulgação da Carta Magna, houve por definir o que é o crime de racismo (Lei nº 7.716/1989). Inclusive, a alteração promovida por meio da Lei nº 9.459/1997 — a qual tinha por escopo alterar dispositivos legais resultantes de preconceito de raça ou de cor —, ao mesmo tempo em que alterou o artigo 20, que tipifica o crime de racismo, também incluiu a questão racial como qualificadora de injúria. Ou seja, há uma diferenciação: enquanto o racismo se dá dentro de um contexto mais abrangente, a injúria racial é direcionada ao indivíduo injuriado.

Porém, preocupo-me quando vejo uma decisão judicial, em matéria penal, ultrapassando os limites que a secularização do Direito coloca: limites que também eles são fundamentais para preservar a República. Além dos limites que estão na própria divisão de poderes. Judiciário não legisla. Ninguém discorda da frase inicial do voto do ministro Edson Fachin no HC nº 154.248/DF: "Há racismo no Brasil. É uma chaga infame que marca a interface entre o ontem e o amanhã". Contudo, o Judiciário, repito, não legisla. E, de novo: de um "é" não se tira um "deve".

E, numa palavra: aquilo que moralmente posso considerar relevante, não quer dizer que isso se transforme em um dever-ser.

Se a moral corrige o Direito, quem corrige a moral? Waldron ajuda nisso. Temos desacordos. E o Direito é o critério que filtra tudo isso e torna a democracia possível.

Lembremos Ulisses. O canto da sereia é belíssimo. Pode ser fatal.