LEI DE IMPROBIDADE, DOLO ESPECÍFICO E A (NOVA) CARGA DA PROVA
Conforme amplamente divulgado [1], o presidente Jair Bolsonaro sancionou sem vetos, no último dia 26, a Lei 14.230, fazendo importantes alterações na Lei de Improbidade Administrativa. Neste singelo artigo em específico, destacaremos a exigência expressa de comprovação de dolo específico para condenação de agentes públicos por crimes de improbidade e sua consequência prática.
Dessa forma, entendemos que, em um primeiro momento, a alteração avança no sentido de adequar-se ao que já era consolidado, em certa medida, na doutrina e jurisprudência do STJ. Isso porque, conforme jurisprudência consolidada da Corte Cidadã, "para a correta fundamentação da condenação por improbidade administrativa, é imprescindível, além da subsunção do fato à norma, caracterizar a presença do elemento subjetivo. A razão para tanto é que a Lei de Improbidade Administrativa não visa punir o inábil, mas sim o desonesto, o corrupto, aquele desprovido de lealdade e boa-fé" [2].
Nesse ensejo, conforme Rafael Oliveira e Daniel Neves, "a improbidade administrativa não se confunde com a mera irregularidade ou ilegalidade, destituída de gravidade e do elemento subjetivo do respectivo infrator. A improbidade é uma espécie de ilegalidade qualificada pela intenção (dolo ou, excepcionalmente, culpa grave) de violar a legislação e pela gravidade da lesão à ordem jurídica. Vale dizer: a tipificação da improbidade depende da demonstração da má-fé ou da desonestidade, não se limitando à mera ilegalidade, bem como da grave lesão aos bens tutelados pela Lei de Improbidade Administrativa" [3].
Portanto, já caminhava a legislação neste sentido. A propósito, o artigo 22, caput, e §2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, estabelecem que:
"Artigo 22 — Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.
(...)
§2º. Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente".
Continuando, conforme já muito bem trabalhado pelo professor Luciano Ferraz [4], tem-se que, no que tange à aplicabilidade das normas de natureza material, modificadas pela nova lei, cumpre ressaltar que, por serem mais benéficas ao agente em comparação com a disciplina legal anterior, devem ser aplicadas de maneira retroativa. Isso se justifica pelo fato de que a LIA, enquanto produto do poder punitivo estatal, integra o chamado Direito Administrativo Sancionador, devendo submeter-se ao mesmo núcleo básico de direitos individuais consagrados na Constituição Federal que fundamenta o Direito Penal (artigo 5º, XL, da CF/88), apresentando-se, portanto, como uma barreira de proteção do cidadão em face do ius puniendi estatal.
Assim, não há maiores diferenças substanciais entre as normas penais e normas administrativas sancionadoras, uma vez que ambas constituem expressão do poder punitivo do Estado, tendo, inclusive, a nova legislação inserido entendimento expresso no sentido de que os princípios do Direito Administrativo sancionador devem ser aplicados nos casos de improbidade administrativa (artigo 1º, §4º, da LIA). Ademais, com a novel legislação, para que o agente seja responsabilizado com base nos tipos descritos na legislação, é exigida agora a demonstração de intenção dolosa, não podendo os atos causados por imprudência, negligência ou imperícia serem configurados como ímprobos (artigo 1º, §1º, da LIA).
Ademais, não restam dúvidas que o dolo agora exigido é o específico (artigo 1º, §2º, da LIA), uma vez que, conforme aduz expressamente o novo dispositivo legal, "deve estar devidamente demonstrado a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos artigos 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente".
Nesse ponto, acreditamos que deve haver a superação, pois, de dois pontos antes consolidados na jurisprudência do STJ e já passíveis de críticas [5]. O primeiro deles era a possibilidade de dolo genérico [6], pacificada na jurisprudência do STJ no sentido de que, "para configurar ato de improbidade na Lei 8.429 /1992, inclusive por ofensa a princípio da administração (artigo 11), não se exige dolo específico, bastando o dolo genérico. Este, como sabido, verifica-se quando o agente realiza voluntariamente o núcleo do tipo legal, mesmo que ausente finalidade específica de agir".
Essa primeira superação nos parece autoexplicativo, uma vez que vai de total encontro com o texto legal. A segunda superação, ademais, seria a do já bastante criticado instituto do in dubio pro societa. Sobre esse ponto, acreditamos que deva ser melhor construído.
Conforme já mencionado em outra oportunidade por Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch e Guilherme Pupe da Nóbrega [7], a despeito da ausência de sua previsão legal, instituiu-se no in dubio pro societate um álibi retórico a banalizar a admissibilidade das ações civis públicas e a esvaziar de importância a defesa preliminar. Conforme aduzem os ilustres juristas, sob o signo do brocardo, rigorosamente, subverteu-se a ideia de que a inicial, notadamente mercê da possibilidade de procedimentos inquisitivos prévios, devesse vencer ônus argumentativo mínimo na demonstração da autoria e da materialidade, findando-se por colocar réu em franca desvantagem.
Não obstante, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial, 1040440/RN, manifestou-se no sentido de que "nas ações de improbidade, a petição inicial deve ser precisa acerca da narração dos fatos, para bem delimitar o perímetro da demanda e propiciar o pleno exercício do contraditório e do direito de defesa". Em outras palavras, não deve ser admitida a propositura de ações genéricas, visto que é indispensável a individualização da conduta do agente, devendo a ação ser lastreada com provas que indicam a probabilidade da existência do ato de improbidade, ou seja, deve o autor da ação demonstrar a "justa causa" para o ajuizamento da ação de improbidade administrativa.
Do mesmo modo, já decidiu o STJ ao julgar o AgRg no AREsp 27.704/RO, tendo como relator o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, aduzindo que a ação de improbidade, "por integrar iniciativa de natureza sancionatória, tem o seu procedimento referenciado pelo rol de exigências que são próprias do Processo Penal contemporâneo, aplicável em todas as ações de Direito Sancionador. Assim a ação deve ser rejeitada quando ausente o mínimo indício da prática do ato improbo".
Portanto, entendemos que, agora, inexiste qualquer dúvida sobre a necessidade do membro do Ministério Público (único legitimado ativo, conforme artigo 17, caput) demonstrar, a priori, lastro probatório mínimo do dolo específico (carga formal), sob pena de indeferimento da inicial (§6º-B, artigo 17), devendo este ainda ser devidamente demonstrado no decorrer da instrução processual (carga material), especialmente, à luz do decido pelo STF no Tema 899, no sentido de que as cortes de contas, em momento algum, analisam a existência ou não de ato doloso de improbidade administrativa.
Dessa forma, vejamos o que dispõe agora o §6º, artigo 17, da Lei de Improbidade:
"Artigo 17 — A ação para a aplicação das sanções de que trata esta Lei será proposta pelo Ministério Público e seguirá o procedimento comum previsto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), salvo o disposto nesta Lei. (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021).
§6º A petição inicial observará o seguinte: (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021).
I — deverá individualizar a conduta do réu e apontar os elementos probatórios mínimos que demonstrem a ocorrência das hipóteses dos artigos 9º, 10 e 11 desta Lei e de sua autoria, salvo impossibilidade devidamente fundamentada; (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021).
II — será instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da veracidade dos fatos e do dolo imputado ou com razões fundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas, observada a legislação vigente, inclusive as disposições constantes dos artigos 77 e 80 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil). (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021).
Neste sentido, conforme leciona James Goldschmidt (2018, p.57), 'entende-se por carga formal da prova a necessidade da proposição de provas, importas às partes em um procedimento dominado pelo princípio dispositivo, ou seja, de iniciativa das partes. Entende-se por carga material da prova o interesse que tem, uma ou outra parte, em que um fato determinado seja comprovado, porque a não comprovação do fato levaria ao seu prejuízo. Somente este interesse preenche o vazio da carga formal da prova, determinando o conteúdo e os seus sujeitos'" [8].
Em outras palavras, conforme leciona Gustavo Badaró, o membro do Ministério Público deve apresentar a justa causa como condição de possibilidade da ação, exigindo-se suporte probatório mínimo que se relaciona com os indícios de autoria, materialidade de uma conduta típica e alguma prova de seu dolo específico, devendo a ausência de quaisquer destes indícios estarem devidamente fundamentados. Dessa forma, na inexistência desses elementos sem qualquer justificação, não é possível o recebimento da ação de improbidade administrativa [9].
Portanto, acreditamos que não há como negar a existência de realidades normativas que se apresentam em uma perspectiva unitária, ou seja, normas que veiculam um conteúdo mínimo que deve ser observado em qualquer forma de exercício do poder punitivo estatal, seja na esfera penal, seja na esfera administrativa. A semelhança, no entanto, não exclui o fato de que tanto o Direito Penal como o Direito Administrativo Sancionador submetem-se a regimes jurídicos próprios, regidos por suas normas e princípios específicos.
Não obstante, à luz do que fora demonstrado, parece-nos claro que a Lei de Improbidade Administrativa veio para, de fato, separar o joio do trigo, e que isso deve ser feito desde a propositura da ação, uma vez que as misérias do processo penal em muito se assemelham as misérias do processo no Direito Administrativo Sancionador.