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A USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE ENERGIA E ÁGUAS

Embora a Constituição Federal do Brasil preveja expressamente que compete privativamente à União legislar sobre energia e águas, ao longo dos últimos anos, em claro desconhecimento dos atributos e das vantagens ambientais inerentes à geração de energia proveniente da fonte hídrica, alguns estados e municípios do Brasil têm proposto legislações locais, algumas infelizmente aprovadas, ora com a finalidade clara (muitas vezes expressa) de proibir a instalação de usinas provenientes da fonte hídrica em seus territórios, ora se escorando em supostos interesses ambientais para atingir o mesmo fim, em evidente desvio de finalidade.

Essa postura dos estados e munícipios de criar óbices à instalação de empreendimentos provenientes da fonte hídrica, sob o pretexto de preservação ambiental, na realidade obsta a geração de energia proveniente de fonte limpa, renovável, não intermitente, com baixa emissão de CO2, entre outros atributos, dando ensejo à necessidade de maximização do despacho térmico, este, sim, mais poluente e causador de significativamente maiores emissões de CO2. Tais normas, além de serem um inegável retrocesso legislativo com impacto direto no desenvolvimento sustentável, representam verdadeira ofensa ao preceito fundamental do pacto federativo ao violar a competência legislativa da União para legislar sobre águas e energia.

Não fosse apenas isso, o que já representa grave violação a preceitos constitucionais, a edição de leis que proíbem a instalação de hidrelétricas, por representar impedimento à geração de energia demandada pela população brasileira, vai na contramão das medidas adotadas pelas autoridades envolvidas para garantir a continuidade e a segurança do suprimento eletroenergético no país, sobretudo neste atual momento de crise energética. Cabe mencionar, em especial, a Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (Creg), constituída por meio da Medida Provisória 1.055/2021 para tal fim. A exemplo das medidas adotadas, cita-se a Portaria Normativa nº 17/GM/MME, de 22 de julho deste ano, que estabeleceu as diretrizes para a oferta adicional de geração de energia elétrica proveniente de usina termelétrica para atendimento ao Sistema Interligado Nacional (SIN).

Portanto, a manutenção das iniciativas legislativas estaduais e municipais que objetivam inviabilizar a construção de hidrelétricas caminha de forma frontalmente contrária às políticas públicas que vêm sendo implementadas para o atendimento energético do Sistema Interligado Nacional.

Ocorre que, ao contrário do que se poderia supor, nos últimos anos temos visto um grande aumento de proposições legislativas, de âmbito municipal e estadual, que obstam a implantação de barragens para fins hidrelétricos e a construção de usinas hidrelétricas.

No contexto de severa crise energética pela qual o Brasil tem passado, a edição de leis desse tipo caminha em sentido oposto às medidas de suprimento energético que vêm sendo implementadas pelo governo federal.

Podemos mencionar, como exemplos de leis e projetos de leis desse tipo: Lei Municipal de Macaé (RJ) nº 4.708/2020; Emenda Orgânica nº 04/2020 à Lei Orgânica do Município de Cotiporã (RS); PL 46/2021 da Câmara Municipal de Bom Jesus do Itabapoana (RJ); Projeto de Lei 684/2019 do estado do Rio de Janeiro; Projeto de Lei 970/2021 do estado do Mato Grosso. Como se nota, todos os exemplos mencionados são leis ou projetos de leis extremamente recentes, tendo sido promulgados ou propostos nos últimos dois anos.

Antes disso, mas também recentemente, o município de Ponte Nova (MG) editou a Lei nº 3.224/2008 e a Lei nº 3.225/2008, ambas normas que, sob o pretexto de assegurarem a preservação ambiental no referido município, inviabilizam explicitamente a construção de qualquer obra de infraestrutura para geração de energia a partir de recursos hídricos.

Essas leis de Ponte Nova são objeto da Arguição de Descumprimento a Preceito Fundamental (ADPF) 218, em trâmite no Supremo Tribunal Federal. Tal ação, movida pela Presidência da República, representada pelo advogado-geral da União, visa a declarar a inconstitucionalidade do artigo 1º, inciso II, caput e parágrafo único, da Lei nº 3.224/2008 e da íntegra da Lei nº 3.225/2008.

O julgamento da mencionada ADPF poderá criar paradigmas para o limite da atuação municipal e estadual nas questões que envolvem a competência legislativa sobre águas e energia. Além disso, poderá viabilizar a harmonia com as políticas públicas adotadas pelas autoridades nacionais para garantir a continuidade e a segurança do suprimento eletroenergético no país, evitando, além de tudo, a desorganização legislativa exemplificada pelas leis e pelos projetos de leis mencionados acima.

Diante de todo o contexto apresentado, verifica-se que a situação legislativa brasileira a respeito da questão hidrelétrica não ajuda (ao contrário, joga contra) a implementação de uma matriz energética verdadeiramente despachável, não intermitente, limpa e renovável. Cabe, então, não só ao Poder Legislativo dos estados e municípios, mas também ao Poder Judiciário e ao próprio governo federal, enfrentar as iniciativas legislativas que prejudiquem a produção de energia limpa, evitando estragos ainda maiores relacionados à crise energética que assola o país.

Charles Lenzi
é presidente executivo da Associação Brasileira de Geração de Energia Limpa (Abragel)
Caetano Kraemer
é conselheiro da Abragel
Isabela Ramagem
é assessora de assuntos jurídicos e regulatórios da Abragel
João Paulo Pessoa
é sócio do escritório Toledo Marchetti Advogados
Ana Claudia La Plata de Mello Franco
é sócia do escritório Toledo Marchetti Advogados
João Marcos Neto de Carvalho
é sócio do escritório Toledo Marchetti Advogados