NA BOA COMPANHIA DE PERFECTO ANDRÉS IBÁÑEZ
Há coisa de duas semanas, recebi livros muito esperados e que, finalmente em minhas mãos, produziram-me felicidade instantânea. É bem verdade que a espera de livros costuma provocar ansiedade, o que nesse caso explica-se por fatores complementares: em primeiro lugar, os livros em questão eram presente de alguém que admiro muito, o professor Perfecto Andrés Ibáñez. Em segundo lugar, Perfecto os havia enviado ainda em 2019 — em um mundo pré-pandêmico —, mas o correio brasileiro os devolveu ao Velho Continente sem me dar qualquer chance de lhes oferecer nova casa. Então, com a ajuda de alguns bons amigos, era chegada a hora de ter os livros presentes de Perfecto. O pacote, dessa vez, era maior, pois junto com "Valoração da Prova e Sentença Penal" (coletânea de artigos em português de Perfecto, traduzidos pelo saudoso Lédio Rosa de Andrade) e o "En buena compañía: prosas sin prisa", também encontrei um exemplar do seu último livro, "Tercero en discordia: jurisdicción y juez del Estado Constitucional", todos com afetuosas dedicatórias que bem expressam a generosidade do autor.
O compêndio de artigos em português eu já conhecia, embora não tivesse em minha estante (os artigos são de leitura obrigatória a todo aquele que se interesse pelo enfoque epistemológico da prova penal). Assim, entre "Tercero en discordia" e "En buena companía", resolvi começar pelo segundo; talvez em razão desta época do ano, quando páginas de conteúdo mais ameno, literário, caem muito bem para oxigenar as ideias já gastas pelo acúmulo de atividades de todo o semestre...
Fui rapidamente fisgada. O livro faz jus ao título, porque, de fato, me senti em boa companhia. É que se trata de obra que o autor dedica a contar um pouco de seus amigos, de autores que são importantes para ele, e, como não poderia deixar de ser, de amigos que coincidem ser também autores importantes — para ele e para todos nós. Pela proximidade com o aniversário de seu falecimento, comecei por Julio Maier, depois passei para o capítulo sobre Luigi Ferrajoli e Salvatore Senese, do qual segui para as páginas que contam como os títulos de Ferrajoli foram parar na Editorial Trotta, que, por sua vez, levaram-me às que confidenciam a aficção de Perfecto pelas edições de "Do delito e da pena", de Beccaria, e por assim em diante. De ensaio em ensaio, fui contemplando as páginas tão facilmente quanto o seu autor me antecipou que as havia escrito. Através da gentileza literária de Perfecto, senti-me mais perto de autores que significam muito para a nossa cultura jurídica; pude conhecê-los para além do muito que eles nos ensinaram sobre o direito.
Ao terminar a leitura, ocorreu-me que a gentileza de Perfecto merecia ser retribuída, de modo que dedicarei as próximas linhas a dizer algo sobre Perfecto Andrés Ibáñez, a exemplo do que ele fez em homenagem aos amigos, e que serviu de presente para todos nós, leitores.
Como costuma acontecer com nossas referências teóricas, conheci Perfecto Andrés Ibáñez muito antes que nos conhecêssemos. Em 2007, como aluna de Direito da PUC-Rio, fui selecionada para passar um semestre na Universidad Autónoma de Madrid. Não foi difícil escolher cursar as disciplinas oferecidas por Liborio Hierro, Francisco Laporta e Juan Carlos Bayón. Entre tão ricos debates, um mundo novo se abriu para mim. Aqui, cabe destacar os ensinamentos do professor Bayón no curso de argumentação jurídica: à diferença do que à época era lecionado no Brasil ao se cuidar de argumentação jurídica, com Bayón tivemos a oportunidade de ler sobre argumentação em matéria de fatos. Nossas aulas não se limitavam à discussão referente aos esforços argumentativos necessários à construção da premissa maior do raciocínio judicial, senão que também se dedicavam à premissa menor, à relação prova e verdade dos fatos apresentada como condição necessária à justificação das decisões.
Esse foi o contexto em que, portanto, Perfecto nos foi apresentado. Fui profundamente feliz ao ler pela primeira vez "Sobre el valor de la inmediación", "Acerca de la motivación de los hechos en la sentencia penal" e "Carpintería de la sentencia penal (en materia de hechos)". Não há como ignorar o papel fundamental de haver sido apresentada naquele curso, sob a cuidadosa tutela do professor Bayón, aos textos de Perfecto Andrés Ibáñez, Michele Taruffo, Marina Gascón e Jordi Ferrer. Foi ali que a aluna que rumava à dogmática processual civil resolveu ajustar a trajetória a caminho da epistemologia jurídica.
Durante os anos de mestrado e doutorado, evidentemente Perfecto continuou presente em minhas leituras. E, embora fosse de se esperar que nos conheceríamos em Girona, isso nunca aconteceu. Por essas contingências da vida, durante os meus estudos doutorais, quando Perfecto foi a Girona, eu devia estar em outra parte (ou no Brasil ou em alguma das estâncias de doutorado que fiz, no Chile e nos Estados Unidos). Nem mesmo em 2015, quando Perfecto presidiu mesa no Congresso Taruffo (homenagem que o grupo de Filosofía del Dret da UdG e a Cátedra de Cultura Jurídica organizaram tempestivamente enquanto Taruffo ainda estava entre nós), nos conhecemos. Novamente por coisas da vida, não tive oportunidade de me apresentar a ele.
Até que enfim, já em 2018, coincidimos no 24o Seminário Internacional do IBCCRIM, realizado no Hotel Tivoli Mofarrej, em São Paulo. Aliás, foi lá que também conheci outra grande e querida amiga e parceira de projetos acadêmicos, Marcella Mascarenhas Nardelli. Marcella e eu falamos na mesa sobre standards probatórios no primeiro dia. Naturalmente, estávamos ansiosas diante daquela espécie de estreia para grandes públicos, então fomos almoçar juntas antes e aproveitamos para combinar o que cada uma falaria. No dia seguinte, passado o desafio, pudemos assistir aos demais, aprender e desfrutar. O gran finale seria a palestra de encerramento, de Perfecto Andrés Ibáñez. Como de hábito, Perfecto foi impecável, com sua precisão analítica aliada ao seu inabalável compromisso com a epistemologia e com o garantismo ferrajoliano. Ao final, Marcella e eu fomos nos apresentar.
A simpatia com a qual nos acolheu desdobrou-se durante o almoço. A espera para uma mesa que comportasse mais de dez pessoas era proporcionalmente longa. Foi então que Perfecto me contou o feliz encontro de vontades que deu origem ao "La prueba de los hechos" (tradução espanhola feita por Jordi Ferrer do livro "La prova dei fatti giuridici", de Michele Taruffo). Já sentados à mesa, foi a vez de Perfecto escutar as angústias da então candidata a doutora; eu lhe falei do meu tema (o conceito jurídico de presunção) e ele me incentivou a enviar um artigo à conceituada revista Jueces para la Democracia, da qual, como sabemos, Perfecto é fundador e já havia sido diretor. Foi a primeira vez que segui um conselho seu, enviei o artigo e ele foi efetivamente publicado. De lá pra cá, pude contar com a interlocução e o apoio de Perfecto em diversos momentos. Uma das cartas de recomendação que apresentei ao concurso de 2020 da Universidade Alberto Hurtado, no qual fui aprovada, é dele. A sua generosidade, contudo, é maior do que isso. Nossas trocas de email trazem e levam notícias boas e, por vezes, não tão boas. Para além de ser uma referência teórica sempre presente em meus escritos, Perfecto, sem dúvidas, serve de norte quanto à forma que, em minha opinião, devemos buscar viver: tendo acumulado tanta experiência (inclusive como magistrado do Tribunal Supremo espanhol), Perfecto mantém-se acessível. Ele caminha junto, sem pompas. Mesmo tão sábio, Perfecto preserva intacta a sua curiosidade e seu amor pelo conhecimento. É preciso reconhecer — e, através destas linhas, também procurei dar a conhecer aos demais — a simplicidade e o exemplo de Perfecto.
Vou terminar o ensaio parafraseando o próprio homenageado: "Para Perfecto, por el privilegio de tenerte como amigo y — eventualmente — como lector".