LEGITIMIDADE ATIVA EXCLUSIVA DO MPF PARA PROPOR AÇÕES DE IMPROBIDADE
Em 25 de outubro de 2021 entrou em vigor a Lei 14.230/2021, que promoveu importantes mudanças na Lei de Improbidade Administrativa. De início, é importante destacar, entre as alterações propostas, a inclusão do §4º ao artigo 1º, que determina a aplicação dos princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador à improbidade administrativa.
Esse parágrafo normatizou tese pacífica no STF, exemplificada no julgamento da reclamação 41.557 [1] , que afirma ser "a lei de improbidade administrativa uma importante manifestação do direito administrativo sancionador no Brasil".
Nesse contexto, partindo da premissa de que o poder administrativo sancionador não é privativo da Administração Pública, sendo competência do Judiciário a aplicação de sanções administrativas, doutrina e jurisprudência mansa determinam que a mesma lógica que se aplica ao Direito Penal deve se aplicar ao Direito Administrativo Sancionador, "balizando-se, portanto, por princípios normativos constitucionais que objetivam, em última análise, limitar o arbítrio do Estado, em respeito às liberdades públicas e individuais dos cidadãos" [2].
Portanto, na esteira das evoluções histórico-normativas do Direito Penal, é necessária a imposição de severos e relevantíssimos limites à pretensão punitiva estatal, como, por exemplo, a presunção de inocência e o princípio in dubio pro reu. Isso se transfere ao Direito Administrativo Sancionador, onde as garantias processuais ganham cada vez mais relevo. Nesse sentido, resta pacífico entendimento garantindo a aplicação do princípio penal da retroatividade da norma mais benéfica no âmbito do Direito Administrativo Sancionador [3] .
Assim, por simetria aos princípios constitucionais penais, a Lei 14.230/2021, por tratar-se de norma posterior mais benigna, deve ser aplicada retroativamente às ações em curso, nos termos do artigo 5º, XL, da Constituição Federal [4] .
E é dessa forma que tem decidido o Poder Judiciário. Conforme diversas decisões prolatadas [5] nos últimos meses, as mudanças promovidas pela Lei nº 14.230/2021 estão sendo retroativamente aplicadas às ações em curso.
Traz-se, como exemplo, recente decisão da 3ª Vara Federal de Curitiba, de 13/12/2021, na Ação Civil de Improbidade Administrativa nº 5027001-47.2015.4.04.7000/PR, cujos autores são a Petrobras e a União. Nela, a d. magistrada incluiu o MPF no polo ativo e reclassificou os autores da ação para simples partes interessadas, tecendo importantes ponderações acerca das inovações legais, in verbis:
"Com efeito, subsiste em certa medida o dinamismo da relação processual, em face do qual as inovações legais de ordem processual têm potência à plena incidência nos processos em curso (por óbvio, resguardada a validade dos atos até então praticados segundo o ordenamento anterior).
Ao que indica o novo modelo normativo, busca-se com o estreitamento da legitimidade ativa conferir maior eficiência persecutória ao instrumento, medida imprescindível neste novo cenário sobretudo em razão da prescrição intercorrente (inovação com aplicabilidade a contar da publicação da lei nova) e dos percalços que a litisconsórcio ativo facultativo podem representar à celeridade e ao resultado final do processo sancionatório.
Esta ação é um exemplo clássico do potencial danoso que a multiplicidade de legitimados ativos concorrentes pode representar ao resultado útil do processo, pois do desalinhamento de interesses e posições entre União, Ministério Público Federal e Petrobras, o que se viu foi a abertura de gigantes ramificações recursais e sucessivas reordenações necessárias à harmonização das divergentes posições entre os co-legitimados ativos.
Ao cabo, o tempo de tramitação deste processo supera 7 anos, acumula mais de uma dezena de agravos de instrumento e uma multiplicidade de recursos não ordinários ainda em processamento. Pelo histórico de ocorrências processuais é possível antever que a especialização de um único legitimado ativo representará nítido ganho de coerência e ordenação processual.
Enfim, somente ao Parquet — com prejuízo a qualquer outro - caberá a legitimidade para conduzir a persecução judicial por ato de improbidade administrativa".
Não obstante os benefícios apontados, a Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do DF (ANAPE) e a Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (ANAFE) impetraram, no último dia 6 de dezembro, as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 7042 e 7043, ambas alegando, entre outras questões, que restringir a legitimidade ativa das ações de improbidade ao Ministério Público retira da União, do DF, dos estados e dos municípios seu principal instrumento jurídico para buscar ressarcimento ao erário.
Importante rememorar que as ponderações feitas tanto pelas entidades, quanto pelo Judiciário, foram objeto da exposição de motivos do PL 10887/2018 [6] , que resultou na Lei 14.230/2021. A legitimidade ativa exclusiva foi normatizada justamente para assegurar que o viés político-institucional não afete as ações em curso, garantindo celeridade e imparcialidade – nos termos das decisões judiciais supracitadas. Ademais, destaca-se que a legitimidade exclusiva não retira a titularidade do ente público lesado para propor ações de ressarcimento.
Toda inovação legal envolve uma gama de agentes, muitas vezes com interesses divergentes. Com as alterações propostas na Lei de Improbidade Administrativa pela Lei 14.230/2021 não poderia ser diferente. Cabe agora à Corte Suprema mitigar a iminente insegurança jurídica advinda de ações constitucionais garantidoras de interesses individuais, assegurando que a vontade social, legislativa e judicial seja cumprida na forma da aplicação imediata da Lei de Improbidade Administrativa.
[1] ministro relator Gilmar Mendes, 2ª Turma, j. 15/12/2020.
[2] OSÓRIO, Fábio Medina. Retroatividade da Nova Lei de Improbidade Administrativa. 2021. p. 11.
[3] AgInt no RMS 65.486/RO, 2ª Turma, relator ministro Mauro Campbell Marques, j. 17/08/21. No mesmo sentido: RMS nº 37.031/SP, 1ª Turma do STJ, rel. Min. REGINA HELENA COSTA, j. 08.02.18, DJe 20.02.18; STJ, 1ª Turma, relator ministro Sérgio Kukina, REsp nº 1153083/MT, j. 06.11.14, DJe 19.11.14; e STJ, 1ª Turma, rel. Min. Sérgio Kukina, REsp nº 1402893/MG, j. 11.04.19, DJe 22.04.19.
[4] "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu".
[5] TJSP, Apelação Cível 1001594-31.2019.8.26.0369, relator Oswaldo Luiz Palu, 9ª Câmara de Direito Público, Data de Registro: 10/11/2021; TJSP, Apelação Cível 1009601-46.2019.8.26.0099, relatora Teresa Ramos Marques, 10ª Câmara de Direito Público, Data de Registro: 16/11/2021; JFPR, Ação Civil de Improbidade Administrativa nº 5003077-85.2012.4.04.7008/PR, relatora Silvia Regina Salau Brollo, 11ª Vara Federal de Curitiba, j. em 04/11/2021.