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DÚVIDAS E CRÍTICAS SOBRE OS (AB)USOS DA AÇÃO DE PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS

Ao dispor sobre a ação de produção antecipada de provas, sem impor como fundamento [1] necessário o risco de ineficácia da dilação probatória, nos artigos 381 a 383 do Código de Processo Civil, veio o legislador a atender imperativo anseio social que estava, até então, carente de amparo legal.

A previsão legal expressa da possibilidade de ação de produção antecipada da prova de modo autônomo, ou seja, independentemente de perigo na demora, atendeu a corretíssimas manifestações doutrinárias [2] e a claras necessidades e conveniências práticas.

Todavia, dedicou o codificador apenas três artigos de lei ao novel instituto, deixando o restante do labor à doutrina e à jurisprudência. Ao assim agir, o legislador deixou um trabalho a ser completado, mas, no que tange ao seu complemento pelo labor jurisdicional, existe o problema de cumprir-se o mister em face de problemas práticos já surgidos, ou seja, de que se tenha que atribuir contornos ao instituto após sua utilização, o que obviamente gera enorme insegurança jurídica.

A doutrina, por sua vez, além de fazer críticas de lege ferenda, desempenha o papel de apresentar possibilidades de interpretação da lei, esclarecendo o sentido legal e sistematizando as hipóteses de aplicação, mas quando tem à sua disposição apenas três artigos que especificamente tratam sobre o tema, é natural o surgimento de diversas divergências sobre o instituto e de considerável insegurança a respeito da compreensão do tema.

Aqui, neste breve ensaio, cumpre apontar algumas das dificuldades geradas pela disciplina legal tímida dispensada à ação autônoma de produção antecipada de provas.

Nenhum dos dispositivos legais menciona o problema da inversão do ônus da prova em sede de ação de produção antecipada. Ainda que pareça incabível tal expediente, é certo que a expressa proibição evitaria consideráveis problemas práticos.

Na mesma linha, não há dispositivo legal a tratar do risco de fishing expedition, do uso da ação de forma abusiva ou até mesmo com intuito emulativo ou acerca da existência de consagração de uma discovery à brasileira. Assim, gerou-se um risco considerável de perigosos usos da ação de produção antecipada de provas, sem que haja qualquer previsão expressa de sua coibição e mesmo para aqueles que defendem uma utilização mais arrojada do instituto, é certo que tal intento restou sem previsão legal nesse sentido [3]. É evidente o risco da ação de produção antecipada de provas ser utilizada para uma verdadeira devassa da vida de uma pessoa.

Igualmente, não tratou o codificador do (des)cabimento da ação de produção antecipada de provas para a exibição de documento ou coisa, sendo notória a controvérsia jurisprudencial gerada pelo advento do CPC/2015, ainda não completamente superada e que enseja hoje a necessidade de admitir-se o uso de diversas via para tal intento, dada a polêmica sobre qual seria a via efetivamente adequada. A insegurança a respeito de qual procedimento a seguir torna complicada uma medida probatória que era para ser relativamente simples, de modo que o processo, ao invés de instrumento de acesso à justiça, passa a ser razão para uma controvérsia que prejudica a apreciação da pretensão deduzida pela parte.

Admitindo-se o uso da ação de produção antecipada de provas, a inocorrência de apresentação do documento ensejaria a aplicação de multa coercitiva, de presunção de veracidade do fato a ser provado, a busca e apreensão do mesmo? Nenhuma, alguma (s) ou todas as consequências apontadas?

Todos os meios de prova são cabíveis em uma ação de produção antecipada de provas? Até o depoimento pessoal e a inspeção judicial?

Se forem admitidos o depoimento e o demandado não comparecer, isso ensejaria o reconhecimento de confissão ficta? Caso negativo, poderia ser utilizado o comportamento como prova atípica? Usar o comportamento não-colaborativo não seria, de certo modo, aproximá-lo de uma confissão ficta? O réu, ao ser instado a prestar seu depoimento pessoal, não teria violado seu direito de ser ouvido somente depois do autor, como prevê o artigo 361, II, do CPC, ou, por sua vez, o artigo 139, VI, do CPC, permitiria a inversão da ordem? Não haveria o risco de uma manipulação processual pelo autor que constrangeria o réu a ser ouvido para, depois, apresentar sua versão dos fatos, indo de encontro ao artigo 385, §2º, do CPC [4]?

Quem foi ouvido antecipadamente pode vir a sê-lo novamente na outra demanda? Aquele que não compareceu para ser ouvido em ação de produção antecipada de provas pode ou deve ser ouvido na ação principal para contrapor-se ao dito pela outra parte [5], para retratar-se ou esclarecer algum ponto? Note-se, aqui, que não se está diante da realidade do CPC/1973 onde o depoimento pessoal antecipado era admitido apenas para evitar-se o perecimento da prova, ou seja, era uma exigência do perigo na demora a realização da prova oral ad perpetuam rei memoriam.

A inspeção judicial pode ser utilizada como um meio de prova prioritário ou ainda se mostra uma providência de caráter subsidiário? Existe, na inspeção, algo mais do que a produção da prova, acrescentando-se também uma preliminar valoração da prova? Por que seria necessária e útil a inspeção judicial, ao invés da utilização de outros meios de prova, especialmente quando o magistrado que realizará a inspeção não será o mesmo que julgará a causa?

Até que ponto a produção antecipada de provas que exigem a colaboração do réu e do órgão judiciário, sem riscos de sucumbência ao requerente, não estabelecem incentivos econômicos perversos para esse modo de dilação probatória? Até que ponto pode ser exigida a sujeição/colaboração de terceiros a uma iniciativa probatória cujo interesse é do autor, mormente quando inexiste o risco da oneração com a sucumbência? Ainda que o CPC atual autorize a alteração da ordem de produção das provas, o interesse de uma das partes em fazê-lo, ausente perigo na demora, seria suficiente para tal medida?

Outro ponto importantíssimo e que desestimula o uso do instituto é a incerteza quanto aos efeitos do seu manejo no que tange à prescrição.

A ação de produção antecipada de provas gera a interrupção da prescrição? Em todas as hipóteses ou apenas naqueles onde existe periculum in mora? Quem utilizará a ação de produção antecipada de provas sem a garantia de interrupção da prescrição ou sem que já se saiba de antemão que tal efeito inocorrerá?

Ainda sobre os riscos da litigância, a necessidade de ter-se as informações básicas para adotar um comportamento racional e minimamente esclarecido e alocar-se corretamente os incentivos econômico-processuais, cumpre o exame dos honorários sucumbenciais.

Não se impõe a condenação em honorários advocatícios? Se sim, quando? Esse é um fator importantíssimo para a análise dos custos da litigância e a resposta a essa questão precisa ser conhecida previamente pelos envolvidos — e não ex post, em decisão judicial.

Pactuada a arbitragem como meio de resolução de eventual conflito, uma possível ação de produção antecipada de provas deveria tramitar perante o juízo arbitral ou seria viável o acionamento do Poder Judiciário? A resposta dependeria da ação probatória ter caráter acautelatório?

Enfim, são algumas das diversas dúvidas que surgiram nos pouco menos do que seis anos de vigência da atual codificação.

Para além da ausência de disciplina normativa, questiona-se, ainda, se não existe a premente necessidade de alteração do artigo 382, §4º, do CPC que, de modo inconstitucional, prevê que em tal procedimento não se admite defesa ou recurso.

Pela letra do CPC/2015, uma pessoa precisa se sujeitar, por exemplo, a ver seus sigilos bancário, fiscal e telefônico levantados, sem poder, de qualquer forma, defender-se, alegando que tais medidas seriam ilícitas no caso.

O argumento de que, depois, na ação principal, a pessoa poderia insurgir-se contra a prova revela-se inadmissível, pois todos têm direito a evitar a produção de prova ilícita contra si — e não sua mera utilização — dados os direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e aos ditames do Estado de Direito.

Pode ser cogitado, ainda, do gravíssimo argumento de que seria um procedimento de jurisdição voluntária, até mesmo para negar-se, ao afetado, inclusive a ciência de que teve parte sensível de sua vida averiguada. Nem mesmo é impossível que uma intercepção telefônica venha a ser autorizada e, sob o fundamento do caráter voluntário da jurisdição prestada na ação de produção antecipada de provas, sequer se venha a informar aquele que teve sua privacidade restringida.

Ainda que os exemplos soem exagerados, o artigo 382, §4º, do CPC, rende ensanchas para que se cogite muitas circunstâncias práticas de manifesta desconformidade constitucional, dado o descompasso do tratamento legal dispensado ao instituto em face de um processo civil orientado pelos direitos fundamentais.

A impressão que ficou da disciplina legal do instituto é o de que uma ideia excelente foi legislativamente tratada como se a realidade fosse constituída apenas de casos muito simples onde alguém deseja ver periciado um imóvel para que se conheça a exata dimensão do mesmo antes de ajuizar-se uma ação pedido sua complementação ou indenização do faltante ou, ainda, de mera oitiva de uma testemunha para fins de viabilizar futura demanda ou evitá-la. Na prática, os riscos de produção de prova ilícita, de cerceamento de defesa ou de uma devassa da vida do réu são consideráveis — e o afastamento desse tipo de perigo não pode ficar dependendo da interpretação criativa da doutrina e da jurisprudência em face do laconismo legal. Ao que parece, a ação de produção antecipada de provas funciona bem quando a produção probatória depende da iniciativa do seu postulante, complicando-se muito quando envolve a necessidade de cooperação de outrem, seja ex adverso, seja órgão judiciário.

Ainda que haja um intenso esforço da doutrina e da jurisprudência para a aplicação prática coerente e consistente do instituto, somente o legislador pode proporcionar a segurança jurídica necessária para o manuseio seguro da ação de produção antecipada da prova. No mínimo, espera-se que o legislador, após a formação de um entendimento doutrinário e/ou jurisprudencial claramente majoritário a respeito de cada polêmica, manifeste-se, transformando em obrigação legal dado posicionamento.

 

[1] No caso de periculum in mora, tal exigência não se constitui em requisito, mas em fundamento da intervenção jurisdicional de emergência, ou seja, não se revela uma condição, mas o motivo pelo qual se justifica a tutela acautelatória. Nesse sentido, no processo criminal: LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p 787 e 788.

[2] Destaco aqui a iniciativa pioneira de Flávio Luiz Yarshell (Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova) que foi seguida por Daniel Amorim Assumpção Neves (Ações probatórias autônomas).

[3] Talvez, o artigo 397 do CPC, na redação recentemente atribuída pela Lei Federal 14.195/2021, seja o dispositivo que possa fundamentar uma diligência probatória mais ampla no Brasil, enquanto algo mais próximo da discovery. Todavia, é duvidosa a constitucionalidade do diploma derrogador, vez que originado de Medida Provisória — o que é problemático no caso ante o artigo 62, §, I, b, da CF/88.

[4] Note-se que no momento da ação antecipada de provas sequer se sabe qual a posição processual a ser assumida em futura e eventual demanda principal, pois o autor da antecipatória pode vir a ser o réu no outro feito.

[5] Mesmo para quem, diversamente deste articulista, rejeita o depoimento pessoal a requerimento da própria parte, pelo menos como prova atípica, ainda haveria de indagar-se se não se imporia o interrogatório ex officio na demanda principal.