PRENDER PARA DEPOIS APURAR SE HOUVE CRIME? TAL PROCEDER LEMBRA KAFKA
O Direito Penal e o Processual Penal possuem alguns princípios que devem ser sempre observados. Alguns explícitos e outros implícitos, decorrentes do nosso sistema legal.
No que tange ao Direito Penal, as penas aplicadas devem ser proporcionais ao mal causado ao bem jurídico protegido. Tanto que alguns crimes, de menor gravidade, propiciam acordos (transação penal, suspensão condicional do processo e acordo de não persecução penal) e, normalmente, não são impostas penas privativas de liberdade no caso de condenação, que serão substituídas por restritivas de direitos.
Na seara processual penal só é possível a decretação da prisão preventiva, além de outros requisitos, no caso de existência de indícios suficientes de autoria e da prova da existência do crime (artigo 312 do CPP). Isso quer dizer que se não for sabido o crime praticado e existente a prova de sua ocorrência, não é possível ninguém ser preso. Assim, não se pode prender para depois elucidar o fato. Isso é básico no Direito Processual Penal.
Imaginem alguém ser preso sem acusação ou mesmo sem saber qual o crime perpetrado. Isso lembra Kafka no seu famoso livro "O processo". Nele, Josef K. é acusado e julgado sem ter conhecimento da acusação. No final, desesperado, pede para que duas pessoas o matem. Também ocorria julgamento e prisão sem formal acusação na Santa Inquisição, em que o inquisidor era o investigador, acusador e juiz, não sendo possível ao réu sequer saber do que era acusado e as provas existentes. Muitas vezes a pena era a morte na fogueira.
O sistema processual possui princípios e regras para que situações desse tipo não ocorram.
Tem-se tornado comum, notadamente na Justiça federal, a decretação da prisão preventiva sem o oferecimento da denúncia, constrição da liberdade cautelar que, por vezes, perdura semanas ou até meses sem a deflagração da ação penal.
Sempre defendi que, quando se requer a decretação da prisão preventiva, a denúncia já deve ser oferecida ou que, excepcionalmente, seja apresentada em breve (até cinco dias), se a medida é urgente e ainda faltam alguns elementos materiais indispensáveis, como o laudo de exame de corpo de delito, que muitas vezes demoram para ser elaborados.
E o motivo é bem simples e lógico: os requisitos para a decretação da prisão preventiva e para o oferecimento e recebimento da denúncia são os mesmos: prova da existência do crime (materialidade) e indícios suficientes de autoria.
Ora, se já há esses elementos não é lógico ser decretada a preventiva e a denúncia, que já pode ser oferecida, postergada para momento muito posterior, até meses.
Disso decorre que se não há o oferecimento da denúncia naquele momento é que ainda não se apuraram os elementos necessários para a individualização ou esclarecimento da autoria ou porque a prova da existência do delito ainda não se faz presente.
Anoto que não me refiro à conversão da prisão em flagrante em preventiva, em que há regras próprias e o estado flagrancial já pressupõe a existência de crime e fortes indícios de quem foi o seu autor. E, sim, àquelas situações em que a pessoa está solta ou presa temporariamente com prazo encerrado e as investigações ainda estão pendentes e inconclusivas.
Prisão cautelar, com exceção da temporária, que possui prazo determinado e visa, no mais das vezes, a garantir a eficácia da investigação, não pode ser decretada sem a formal acusação ou, em casos excepcionais, ao menos com o indiciamento, sempre havendo indícios suficientes de autoria e prova da ocorrência de crime (materialidade), cuja condenação seja passível de prisão. Aliás, no que tange à materialidade, também é exigida na prisão temporária, que só pode ser decretada em crimes definidos em sua lei de regência (Lei nº 7.960/1989), em sua maioria graves.
Lembro, ainda, que prisão domiciliar não deixa de ser modalidade de prisão cautelar, só que cumprida em casa, tanto que será descontada de eventual pena prisional aplicada (detração penal).
No Direito existem algumas regras que, se desobedecidas, as consequências podem ser bem ruins, tanto para aquele que as descumpre quanto para a pessoa atingida pelo descumprimento.
O Ministério Público é o titular da ação penal pública (artigo 129, I, da CF). Assim, somente ele, por um de seus membros, pode oferecer a denúncia e dar início à ação penal. Nenhum magistrado pode iniciar ação penal de ofício ou obrigar o Ministério Público a promovê-la.
Nos Ministérios Públicos Estaduais e no da União, quando o promotor de Justiça ou o procurador da República promove o arquivamento do inquérito policial ou de procedimento de investigação criminal, discordando da promoção, por ora, até que eventualmente seja estabelecida a nova sistemática, o magistrado remete os autos para que o órgão revisor do Ministério Público (procurador-geral de Justiça ou Câmara de Revisão) analise o pleito. Concordando com a promoção, o procedimento será arquivado.
Quando se trata de crime de competência originária do Supremo Tribunal Federal (autor com prerrogativa de foro), promovido o arquivamento pelo procurador-geral da República, não há mecanismo para revisão. A única solução jurídica possível é o arquivamento pela corte, já que ninguém pode obrigar o Ministério Público a promover a ação penal quando ele entender que não é caso, pelos mais variados motivos (atipicidade do fato, prescrição, provas insuficientes, legítima defesa etc.).
Destarte, representando a autoridade policial pela decretação de uma prisão cautelar com parecer desfavorável do Ministério Público, notadamente por entender que o fato é atípico (que não constitui crime), não obstante o magistrado possa determinar a prisão, por não ser o parecer ministerial vinculante, a medida é temerária, já que ao final da investigação o destino do procedimento muito provavelmente será o arquivo, uma vez que já houve manifestação do titular da ação penal pública no sentido de que o fato não configura ilícito penal.
Claro que, na maioria das vezes, o membro do Ministério Público aguarda o desfecho da investigação para promover o arquivamento do procedimento, mas já deixou claro que é contra a prisão porque não vislumbra tipicidade penal do fato e que ela pode se transformar em constrangimento ilegal pela ausência de ação penal, isto é, a pessoa permaneceu presa por dias ou meses já se antevendo a imensa probabilidade (ou mesmo a certeza) do arquivamento do procedimento.
Por isso, a regra é o magistrado não decretar a prisão de ninguém por representação da autoridade policial quando o membro do Ministério Público é contra a medida, principalmente por entender que o fato não constitui crime, até porque a restrição cautelar da liberdade é sempre excepcional, lembrando, ainda, que nenhuma medida cautelar, inclusive prisão, pode ser decretada de ofício pelo magistrado (artigo 282, §2º, do CPP).
A liberdade, depois da vida, é o bem jurídico mais importante e sua restrição deve ocorrer naqueles casos expressamente previstos em lei e observados todos os princípios constitucionais e processuais, notadamente da ampla defesa, contraditório e a estrita observância do devido processo legal.