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SOBRE REGRAS, PRINCÍPIOS E O 'CALVINBOL'

Quem conhece as tirinhas de Calvin e Haroldo, criadas por Bill Waterson, sabe que Calvin é uma criança de seis anos que está sempre acompanhada de seu tigre de pelúcia, Haroldo, o qual é bastante real para o garoto. Entre muitas características, Calvin não gosta de esportes porque se enfada com as regras que precisa seguir e que limitam sua vontade. Então, criou com Hobbes o "calvinbol", jogo em que as regras são inventadas pelos participantes a cada momento e a única regra geral é que uma mesma regra (comando de ação concreta) não pode ser usada mais de uma vez. Já deve estar claro que o jogo é fruto da imaginação de uma criança de seis anos que não gosta nem de perder, nem de limites. Pois bem, ao que parece, o "calvinbol" tem sido o jogo do Judiciário brasileiro, mas ele é "jogado" usando a ideia de "princípios".

Não é mais objeto de controvérsia na prática jurídica a relação entre regras e princípios e o uso destes para garantir decisões adequadas na ausência de regras, quando estas geram dúvidas ou quando levam a resultados indesejados no próprio ordenamento (no âmbito teórico, as discussões não são uniformes, nem a ideia de princípios é aceita por todos). Aceitos na prática, os princípios deveriam dar o eixo axiológico a ser seguido pelo Estado, o que inclui o Judiciário, sendo obrigatórios. Contudo, o que ainda não ficou claro no cotidiano jurídico é o que são os princípios e como eles devem ser aplicados (ao contrário das teorias, que, quando aceitam os princípios, têm clareza, ao menos, do que não são e como não devem ser aplicados).

A prática jurídica repete que princípios são os valores éticos do Direito para a realização da justiça, concepção vazia de qualquer conteúdo que permita controle do processo decisório. Hans Kelsen já tinha alertado que o recurso a princípios nessa lógica só tinha a função de aumentar o poder dos juízes decidirem como bem quisessem, fingindo realizar valores superiores. Sabe-se, contudo, que a teoria kelseniana sobre a interpretação não permite o controle racional do processo de decisão, pois entende que a escolha dos sentidos possíveis não pode ser controlada.

Quando surge com a ideia de princípios, o chamado "pós-positivismo" pretende mostrar que a interpretação de normas é processo racional, não escolha de preferências subjetivas. Os princípios (independentemente de como sejam concebidos pelos diversos modelos teóricos) são, sim, valores, mas no sentido de serem conteúdos externos aos agentes políticos (o que inclui o Judiciário) e internos à ordem jurídica, por isso obrigatórios. Em suma: os princípios são normas indisponíveis ao intérprete, que têm a obrigação de demonstrar que os estão realizando. Portanto, são conteúdos que delimitam a capacidade de decidir. Para deixar ainda mais claro o que se quer dizer: as teorias que admitem os princípios o fazem para limitar a capacidade de decisão dos juízes, não para ampliá-la.

Curiosamente, o Judiciário admitiu a ideia de princípios no ordenamento, mas, em vez de encará-los como normas que o limitam, transformaram-nos em valores superiores que apenas ele é capaz de alcançar na realização da justiça. Assim, ao contrário de se ver obrigado a demonstrar as razões de suas decisões, se colocou na posição privilegiada de realizar algo superior, que os demais não são capazes ou não têm interesse real. Num passe de mágica, a função limitadora que os princípios exerceriam sobre a racionalidade jurídica se transformou em monopólio do bom e do justo pelos juízes (às vezes, inclusive, da própria verdade dos fatos). Como o resultado importa mais do que o caminho, o processo de fundamentação virou apenas meio formal para atingir os resultados já previamente desejados pelos magistrados.

Há duas coisas, entre outras possíveis, que precisam ser feitas com urgência para mudar essa tendência de apropriação de poder pelo Judiciário. Primeiro, é preciso ter a consciência clara de que os princípios não são valores morais superiores e universais. Os princípios podem ser conteúdos indisponíveis que protegem o sujeito sob pena de contradição do discurso ético ou de admissão unilateral de violência (é preciso que quem defende valores esteja disposto a sofrer consequências equivalentes à do seu ponto de vista — o cristianismo não pode ser o valor de uma comunidade a ponto de diminuir ou excluir mulçumanos, porque quem afirma isso teria de admitir a possibilidade de os mulçumanos defenderem o mesmo com relação aos cristãos). Esse é, simplificadamente, o modelo proposto por Dworkin e leva a uma teoria moral liberal. Ou os princípios podem ser os valores advindos de decisões e formas de vida concretas que se tornam exigíveis juridicamente e, como podem conflitar, só perdem o caráter arbitrário se vierem de processos de decisão democráticos. Resumidamente, esse é o entendimento de Alexy. Em ambos os casos são conteúdos externos que limitam e condicionam os processos de interpretação e impedem que a decisão seja a realização da vontade subjetiva do juiz.

A segunda coisa necessária para evitar a usurpação de poder pelo Judiciário é levar a sério as exigências do ordenamento jurídico aos magistrados, sem qualquer desculpa ou "ponderação" para afastá-las. O dever geral de fundamentação do inciso IX do artigo 93 da Constituição é comando que obriga o juiz a demonstrar tanto a sua conclusão quanto o desacerto das outras pleiteadas. Assim, não basta mostrar que a decisão tem suporte jurídico, mas é obrigado a justificar por quais motivos afastou as demais alegações. O preceito constitucional ganha ainda mais concretude com os comandos específicos do Código de Processo Civil, principalmente os do §1º do artigo 489, que consideram não fundamentadas as decisões que: 1) meramente reproduzam, parafraseiem ou indiquem atos normativos; 2) usem conceitos indeterminados sem explicar a aplicação ao caso concreto; 3) invoquem motivos aplicáveis a quaisquer outras decisões; 4) não enfrentem todos os argumentos que possam infirmar a conclusão judicial que se pretende tomar; 5) invoque súmula ou precedente genericamente, sem demonstrar a aplicação ao caso; 6) deixe de seguir precedente ou súmula invocados sem demonstrar o porquê de não regularem o caso.

Os preceitos acima enunciados são elementares e, se não forem devidamente respeitados, exigidos e objeto de briga e reivindicação por toda a comunidade jurídica, o Judiciário usurpará cada vez mais poder de decisão, sem que se possa controlá-lo, já que é o órgão regulador de si mesmo. O mesmo vale para a concepção adequada de princípios: se é para utilizá-los, devem ser vistos como limitadores da capacidade de decidir, não autorizações para juízes corrigirem decisões.

Os pós-positivistas identificaram bem que, da mesma forma que nenhum sistema jurídico pode conter apenas regras, sob pena de se tornar rígido e cheio de lacunas e contradições, não pode se transformar em sistema apenas de princípios, senão será aberto ao ponto de toda decisão depender apenas da subjetividade do Judiciário. A atual prática judiciária a respeito dos princípios e da autoridade autoconcedida tem transformado o direito num verdadeiro "calvinbol": todas as vezes que regras atrapalham os resultados desejados pelos magistrados, eles clamam um princípio. Quando é o próprio princípio que atrapalha, eles dizem que é outro que se aplica. Quando querem um conteúdo que não conseguiram encontrar no ordenamento, "encontram" um princípio implícito. Assim, o Judiciário joga um jogo em que ele é o único que não está sujeito às suas regras.