Ver mais notícias

COMO A JURISPRUDÊNCIA PRÊT-À-PORTER SE ALIMENTA DO LIVRE CONVENCIMENTO

1) O uso do livre convencimento como álibi retórico para negar garantias
Volto a um tema que me é caro e objeto de minhas pesquisas: a gestão da prova, na especificidade "livre convencimento". De pronto, permito-me remeter o leitor para os verbetes livre convencimento e livre apreciação no meu "Dicionário de Hermenêutica". Ali explico como isso funciona em outros países, nada parecido com o que se fez e faz por aqui, mormente contextualizando a história do Direito no Brasil.

Sigo. Comento aqui um julgamento recente do Tribunal de Justiça do MS (HC 1414872-30). De novo aparece o problema do livre convencimento. E por isso entra no horizonte de minha crítica doutrinária.

Há poucos dias critiquei um acórdão do STF que lançou mão do LCM para não analisar decisão de primeiro grau que não autorizou diligência requerida pela defesa (ler aqui). Na verdade, o STF usou o LC contra garantia do réu. E firmou jurisprudência contra admissibilidade de recurso especial no STJ.

Uma parte do acórdão do Mato Grosso do Sul chama especial atenção e é bom para usar em sala de aula. Tratava-se de Habeas Corpus para trancamento de ação penal em que a defesa dizia que não havia prova pericial demonstrando a materialidade do crime. Eis:

"(...) Nesta fase inicial, sem o perigo do despotismo judicial, se afigura o sistema da livre convicção ou do livre convencimento. Não existe uma hierarquia de provas, pois todas, como cediço, são relativas. Deve o juiz, evidentemente, limitar-se às provas contidas no caderno processual, não fica sujeito a nenhum critério apriorístico no apurar. Formará livremente a sua convicção, sem condicionar-se a qualquer critério apriorístico a elucidar, por meio das provas constantes dos autos, a verdade real".

Aqui caberia montar o jogo dos sete erros. Peço vênia para exercitar meu rigor epistemológico. Se o livre convencimento é usado do modo como se vê no acórdão, há, sim, despotismo judicial. Isso porque, ao dizer que não há hierarquia de provas, o voto já está sendo despótico. Pergunto: por que todas as provas são relativas? Há alguma teoria doutrinária que sustenta essa assertiva?

Se for verdadeira a assertiva do voto, isso quer dizer, por exemplo, que a ilicitude de uma prova pode ser relativizada? É disso que se trata?

Na mesma linha, indaga-se se é possível relativizar a garantia do direito ao silêncio? Por exemplo, se há uma ata registrando que houve a quebra de uma garantia, essa prova pode relativizada? A prova de que o réu foi torturado para confessar pode ser relativizada? O artigo 212 pode ser relativizado?

Portanto, por qual razão o juiz não fica adstrito a qualquer critério apriorístico? As garantias taxadas e taxativas da CF não são critérios apriorísticos? Um juiz começa o julgamento já tangido por critérios limitadores. O Estado tem de ser limitado. Assim funciona o Direito.

Formará o juiz sua livre convicção sem critérios apriorísticos? Como se dá isso? A lei não é um critério que, desde sempre e desde já limita os poderes, sendo, portanto, um critério?

2) Uma garantia processual pode ser "superada" por livre convencimento?
Precisamos falar urgentemente sobre essa ficção chamada livre convencimento motivado (LCM) ou livre apreciação da prova (LAP). Com o argumento da LAP ou do LCM, diz-se qualquer coisa. Nesse ponto a Suprema Corte não fornece bom exemplo. É a porta de entrada do autoritarismo judicial. Por exemplo, se a lei estabelece que um crime (que deixa vestígio) somente estará provado com laudo pericial, o ônus argumentativo do MP e do PJ aumenta consideravelmente — para dizer o mínimo. Não é a livre apreciação que resolverá esse gap probatório.

Além disso, o inciso VI do artigo 315 do CPP diz que a decisão será nula se deixar de seguir sumula, precedente (e, por óbvio, a lei processual) invocado pela parte sem demonstrar distinguishing — e é nessa palavra que reside o ponto central.

Aqui, os acórdãos do TJ-MS e do STF são pano de fundo. Porque o que me interessa discutir, mais uma vez, é a ficção do livre convencimento. Qualquer livro que se abra sobre Direito Processual (com raras exceções) e ali estará: o sistema de provas do livre convencimento veio para superar a prova tarifada. Um livro repete o outro. E todos concordam, então, que o LCM foi uma conquista. Tenho travado embates sobre isso, a ponto de influenciar na retirada da palavra "livre" do CPC (artigo 371).

Todavia, indago: 1) se foi uma conquista, portanto, um avanço, por qual razão garantias processuais penais-constitucionais são "superadas" pelo LCM ou pela LAP?; 2) por qual motivo se usa o LCM sempre para não cumprir garantias explícitas (taxadas)?

Ora, se o LCM é um avanço, deveria ser usado para afirmar garantias, e jamais as infirmar.

Correndo o risco da platitude, quando surgiu essa tese — é bem velhinha, vem lá dos dias da Revolução Francesa, sendo que no Brasil ninguém até agora explicou como se deu esse "avanço" — não havia um rol de garantias previstos nas leis e tampouco se podia imaginar a existência de constituições dirigentes, garantísticas e compromissórias (como a brasileira, por exemplo).

Daí indago outra vez: com o imenso rol de taxações e taxatividades previstas na CF (são dezenas), por qual razão o LCM ou a LAP continua(ria) sendo um avanço?

Parece evidente que o paradigma do constitucionalismo contemporâneo rompe com posturas instrumentalistas e com o protagonismo judicial. Ora, o protagonismo surgiu, há mais de dois séculos, para superar um modelo. Depois disso, houve mudanças. Isto é, no século 20 passamos a acreditar mais nas leis e nas Constituições (veja-se o controle de constitucionalidade) do que no intuicionismo judicial. Sendo mais simples: no século 20 passamos a acreditar mais na estrutura do que no sujeito individual.

Isto é, a "superação" da prova tarifada se deu, sim, porém em outro paradigma jurídico e em outro contexto jusfilosófico. Quem não levar isso em conta ficará repetindo o jargão tradicional. Fora do tempo.

Portanto, se, como se diz por aí, o LCM veio para superar a prova tarifada, falta mostrar: 1) em que circunstância o LC continua sendo um avanço hoje; e 2) por qual razão o imenso rol de garantias vale menos do que o livre convencimento?

Portanto, está na hora de a dogmática jurídica mudar de rumo. Precisamos falar sobre isso.

Não dá mais para ficar dizendo que um instituto que veio para "superar a prova tarifada" há mais de dois séculos pode continuar a servir de álibi retórico para dar poderes ao incontroláveis ao Poder Judiciário.

Numa palavra final, o LCM é algo semelhante à teses como "o juiz dos princípios veio para matar o juiz boca da lei". Ou "o LC veio para superar o juiz boa da lei", etc etc. Indago: onde morava esse juiz boca da lei? Tenho feito pesquisas em acórdãos do século 20 e os resultados são surpreendentes. Em breve divulgarei. Trata-se de uma arrematada ficção. Para não dizer que é uma fraude epistemológica.

3) Direito é, ainda, 'uma questão de caso concreto'?
No caso do HC julgado pelo TJ-MS acima comentado, o STF decidiu (HC 209472) exatamente do modo como aqui se critica. Explico. O STF disse que tem posição consolidada no sentido de que a falta de laudo pericial não conduz necessariamente, à inexistência da prova da materialidade do crime que deixa vestígios, a qual poderá ser demonstrada em casos excepcionais, por outros elementos probatórios constante nos autos (artigo 167 CPP). Já de pronto, parece que o precedente deveria dizer respeito ao artigo 158, e não ao 167. Além disso, a parte da ementa citada diz respeito a um caso de tráfico de drogas, que não tem relação analógica com o caso objeto do Habeas Corpus.

Esse problema leva a outro: para fundamentar, o acórdão do STF colaciona uma série de precedentes sobre tráfico, homicídio triplamente qualificado, falsidade ideológica, peculato e fraude à licitação. Embora uma das ementas diga respeito à fraude em licitação, não fica clara a presença de precedente que cubra, tematicamente, o caso concreto sob exame. A ementa repete a argumentação de que a ausência de laudo pode ser suprida ou que a comprovação da materialidade pode ser feita de outros modos. Todas as ementas dizem isso. Porém, a questão que não está dita é: em que medida os precedentes se relacionam com o caso? É até possível que haja. Mas esse ônus é do Judiciário, como diz o artigo 315 do CPP.

Insisto: a questão está na (falta de) distinguishing. Não há o cotejamento próprio da figura do distinguishing. Disso exsurge que a fundamentação devia partir da discussão se, na hipótese, há a necessidade de laudo pericial, inclusive porque o HC foi conhecido, o que lhe impõe o ônus da fundamentação estrita dos argumentos.

O precedente invocado reproduz o que consta na legislação processual penal. Porém, direito é uma questão de caso concreto. O Brasil patina no quesito "precedentes". Trago dois exemplos: alterar produto alimentício tornando-o menos nutritivo ou nocivo à saúde (artigo 272, CP) requer necessariamente perícia porque é impossível que um leigo consiga dizer que a substância está menos nutritiva ou nociva à saúde. De outro lado, em uma acusação de apropriação indébita de valores constantes de caixa de determinada PJ, extratos bancários da conta desta juntadas pela acusação — sem qualquer indício de falsidade ou manifestação da defesa nesse sentido — não demandam perícia técnica. O ponto? É que em ambos se utiliza a mesma ementa jurisprudencial. E aí, sem distinguishing, abre-se um enorme problema.

É isso que venho querendo discutir de há muito. Só por isso insisto em escrever sobre precedentes e seu uso (des)contextualizado (nesse sentido, o verbete "Precedentes" do meu "Dicionário de Hermenêutica e o livro Precedentes Judiciais e Hermenêutica" — Editora Jus Podium).

Isto é: a ementa citada pelo STF não é, em si, incorreta. Afinal, reproduz o que diz o CPP. Em muitos casos é aplicável, como no HC 130.265-DF (referido no acórdão). Porém, e esse é o ponto fulcral, pode não ser aplicável nos exatos termos ao caso levado pela parte. E direito é uma questão de caso concreto.

A pergunta hermenêutica-chave é: o caso cabe no "precedente"? Exemplificando, é correto dizer que legitima defesa não se mede milimetricamente. Mas não basta fazer isso. Porque não adianta citar dezenas de ementas. O que se quer saber é: naquele caso o precedente cabe? Tem contexto? Se era um revólver contra um pedaço de pau, cabe a ementa? E um fuzil contra uma faca? E se um deles estava desarmado? O que é "milimetricamente"?

Percebem? É disso que trato há tantos anos em meus textos — e peço atenção da comunidade jurídica para esse fenômeno. Doutrina tem essa função epistemológica.

Por isso, também precisamos falar sobre "o que é isto — o caso concreto"?