Ver mais notícias

DISPENSAS DE LICITAÇÃO EM RAZÃO DO VALOR NO REGIME DA NOVA LEI DE LICITAÇÕES

Foi com a expectativa de uma significativa mudança paradigmática que se esperou pelo novo marco legal das licitações e contratações públicas. Esperava-se que o novo diploma viesse a alterar de forma significativa o cenário da (ainda vigente) Lei 8.666/1993, texto mais preocupado com a forma do que com uma dinâmica criativa, que desse conta de absorver as soluções de mercado em prol da modernização da atividade administrativa.

Não se espere que essa ordem de coisas se altere substancialmente em razão da Lei 14.133/21, que num certo aspecto mantém estruturas já conhecidas e que desmotivam a construção de um ambiente mais criativo, que incorpore mais naturalmente as inovações no plano das contratações. Mas há inegáveis avanços: a incorporação de boas práticas em matéria de licitação, advindas das experiências práticas da gestão pública e da jurisprudência dos tribunais de contas, com destaque para o Tribunal de Contas da União.

Outro ponto positivo foi a solução trazida no artigo 191, que permite a coexistência do novo ordenamento jurídico com o anterior durante um período de dois anos, tempo que o administrador poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com o novo diploma ou com as leis do regime antecedente [1], de modo a possibilitar uma boa transição de um sistema legal para o outro, em oposição ao tradicional período de  vacatio legis, ao fim do qual a legislação antiga estaria totalmente revogada e a nova totalmente aplicável.

As unidades administrativas poderão aplicar a nova sistemática aos poucos para que, ao cabo do período assinalado, os processos de trabalho estejam satisfatoriamente implantados. Não é por outra razão que há recomendações de que primeiro sejam adotadas as dispensas de licitação calcadas no valor da contratação e depois, procedimentos mais complexos. E estando a decisão no plano de discricionariedade do gestor, é mesmo uma boa ideia. Mas por que não começar pelos instrumentos de planejamento para a diminuição de riscos contingenciais?

Neste texto pretendo demonstrar que a incorporação da nova Lei de Licitações não significa a mera transposição das práticas do conjunto normativo estruturado pela 8.666/93. Em muitos casos, como na adoção das dispensas por valor, sedutora por seus limites maiores [2], serão necessárias abordagens diferentes, ligadas a algo muito falado, mas pouco praticado nas Administrações Públicas Brasil afora: o planejar.  

A Lei 14.133/21, ao estatuir em seu artigo 5º os princípios aplicáveis às licitações, alça o planejamento a essa categoria, de modo que sua inobservância pode acarretar na nulidade de todo o procedimento e a responsabilização do agente administrativo pelos eventuais prejuízos ao interesse público, dada sua condição normativa. A densificação desse comando reside em instrumentos que o evidenciem: o estudo técnico preliminar e o plano de contratações anual, sendo o primeiro constitutivo da primeira estapa de planejamento, conciliando o interesse público com a melhor solução a ser concebida no projeto básico ou termo de referência (artigo 6º, XX). O segundo se constrói a partir dos documentos de formalização de demanda, que pretendem racionalizar as contratações; garantir o planejamento estratégico e subsidiar a elaboração do orçamento público (artigo 12, VII, §1º).

O planejamento se torna condição sine qua nom para a deflagração de qualquer procedimento licitatório, na esteira do artigo 18, I, §1º, do novo estatuto licitatório, de modo a possibilitar uma avaliação correta da compatibilização das soluções adotadas em função do interesse público a ser atendido e dos recursos disponíveis [3]. Obviamente, o planejamento não será estático, incapaz de se adaptar a circunstâncias supervenientes, já que sempre será possível ao administrador, em razão da concretude dos casos, incorporar novas soluções e a reprogramação. O que a lei demanda é a existência de um ecossistema em que o planejamento esteja presente em todos os passos decisórios para a realização da aquisição de bens e serviços.

Se as etapas de planejamento são obrigatórias, as dispensas de licitação não poderão ser realizadas sem esse passo anterior, pois é ele que irá antecipar aquilo que poderá ser contratado diretamente nos termos dos incisos I e II do artigo 75 e, assim, evitar o fracionamento ilícito do objeto. Para os acostumados com a dinâmica da Lei 8.666/93, quando as aquisições de determinado bem ou serviço chegavam perto dos limites das dispensas por valor (artigo 24, I e II) realizava-se um certame licitatório e a questão estava resolvida sem maiores dificuldades. Isso mudou.

A dispensa por valor do novo estatuto licitatório não permite a simples transposição da solução costumeira. O §1º do artigo 75 da Lei 14.133/21 estabelece que para fins de aferição dos valores da dispensa deverão ser observados: 1) o somatório do que for despendido no exercício financeiro pela respectiva unidade gestora e; 2) o somatório da despesa realizada com objetos de mesma natureza, entendidos como tais aqueles relativos a contratações do mesmo ramo de atividade.

Assim, para a aferição dos limites de valor, deverá a unidade gestora considerar o que foi (e será) despendido com o bem ou serviço, não deixando margem para a interpretação que se fazia da combinação do artigo 8º e do artigo 23 da Lei 8666/93. O dispositivo legal impede que se considere o valor isolado de determinado bem ou serviço, devendo o gestor avaliar de antemão o valor global das diversas contratações para aplicar os limites tratados nos incisos I e II do artigo 75 da Lei 14.133/21.

A unidade gestora deverá de certa forma antever as contratações por dispensa em razão do valor, ou deixá-la para aqueles casos em que realmente não é possível a previsão no plano anual de contratações. Diferentemente da experiência da Lei 8666/93, se as contratações diretas estiverem perto do limite estabelecido, a realização do certame licitatório para a contratação do mesmo objeto não impedirá o fracionamento ilícito, já que os valores globais anuais já teriam sido ultrapassados: o que se considera é o somatório do que foi despendido no exercício.

Obviamente haverá casos em que, mesmo se adotando um rigoroso planejamento estará o gestor diante de um possível fracionamento, mas isso seria tratado de modo excepcional; seria uma ocorrência superveniente, imprevisível ou de consequências incalculáveis, escapando, portanto, daquela situação ideal do dever de planejar. Afastados estariam o dolo ou a culpa nos termos do artigo 22 da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, que assegura que na interpretação das normas sobre gestão pública serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as circunstâncias práticas que tenham condicionado sua ação. Mas essa solução não abarca aquelas situações em que o planejamento não se deu ou tenha se dado sem a gravidade pretendida pela nova lei. Nessas hipóteses evidencia-se o erro grosseiro.

Por essas razões, a sedução da adoção da nova dispensa (e de seus valores maiores comparados aos da Lei 8.666/93), mesmo sendo uma boa estratégia, não pode se dar sem as cautelas necessárias. Se ainda estamos no tempo dado pelo legislador para o aprendizado, sugiro que comecemos a dar mais atenção aos instrumentos de planejamento.

 

[1] O poder discricionário conferido ao administrador não compreende a aplicação combinada dos regimes para um mesmo procedimento.

[2] Até R$ 108.040,82 para obras e serviços de engenharia ou serviços de manutenção de veículos automotores; até R$ 54.020,41 para contratações que envolvam outros serviços e compras. (Valores válidos a partir de 01/01/2022 em razão do Decreto federal 10.922/2021).

[3] Mesmo a adoção dos critérios de julgamento depende da avaliação extraída do estudo técnico preliminar, como se extrai do artigo 36, §1º da nova lei de licitações.