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UM TEMPORAL DE INTERESSES, JURISDIÇÕES E LEIS NO DIREITO DA ARTE

De acordo com a resolução 60/7 da Assembleia Geral das Nações Unidas, aprovada em 1 de novembro de 2005, o 27 de janeiro é o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. Em 1998, Henry Sobel, rabino líder da Congregação Israelita Paulista, fez uma tocante conferência na Cardozo Law School, em Nova York, em que abordou a questão do patrimônio saqueado pelos nazistas durante a II Guerra Mundial. Ele foi enfático:

"Rue Saint-Honoré, dans l'après-midi. Effet de pluie" (1897)
Wikimedia

"Temos dois deveres para com as vítimas dos nazistas. Aos que ainda estão vivos, devemos assegurar que a insuportável tragédia de viver o Holocausto não seja agravada por uma velhice marcada pelo medo e pela tristeza da pobreza. Devemos deixá-los saber que não somos indiferentes à sua situação. Para aqueles que morreram, temos um dever diferente: documentar os fatos, reunir as provas e localizar a verdade. Isso deve ser feito com urgência." (Cardozo Law Review, v. 20, n. 2, p. 512)

Nunca é fácil cumprir aqueles dois deveres, graças à complexidade jurídica dos casos, ao passar inexorável do tempo a esmaecer provas e memórias, às profundas ligações entre arte e emoção.

Há poucos dias, o tema voltou à tona nos noticiários do mundo inteiro, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos começou a ouvir as alegações orais do pedido de restituição de uma pintura do impressionista franco-dinamarquês Camille Pissarro, atualmente exposta num dos museus mais importantes da Espanha.

Pela sua dimensão, o caso Cassirer v. Thyssen-Bornemisza Collection Foundationnº 20-1566, tem tudo para ser uma nova "A Dama Dourada", a controvérsia que virou filme e envolveu o "Retrato de Adele Bloch-Bauer", de Gustav Klimt.

Quando Camille Pissarro, um dos pais fundadores do impressionismo francês, decidiu registrar um início de tarde pacato e chuvoso da mítica Rue Saint-Honoré, em Paris, no final de 1897, certamente não imaginou que, no futuro, sobre sua tela iriam se abater duas grandes tempestades: uma chuva de jurisdições competentes e uma chuva de leis aplicáveis a interferir na propriedade daquele valiosíssimo bem.

Se o quadro já era um "milestone" artístico, a obra está prestes a se tornar agora um "milestone" para o estudo do direito internacional — sobretudo o privado, mas não só — e, claro, para o direito da arte e do patrimônio cultural.

Pintada da janela do hotel de Pissarro, na Place du Théâtre Français, a tela constituía inicialmente o patrimônio de Lilly Caroline Cassirer-Neubeuer, nascida Dispecker, que fora casada em primeiras núpcias com o compositor e maestro alemão Friedrich Leopold Cassirer, falecido em 1926, e estava casada, em segundas núpcias, com o Professor de bioquímica Otto Neubauer, de origem bohemia, quando se viu obrigada a vender a tela pelo equivalente a meros US$ 360 dólares, que nunca chegou a receber, entretanto.

O pano de fundo da venda foi a demissão, em 1933, de Otto Neubauer de suas funções como médico do Hospital Schwabing, em Munique, onde era chefe de serviço desde 1919. A causa da demissão foi sua ascendência judaica. Assim, com apoio da The Society for the Protection of Science and Learning, Neubauer conseguiu uma posição na Universidade de Oxford (onde permaneceu até sua morte, em 1957) e tornou-se imperioso que a família migrasse rapidamente.

A Sra. Lilly Cassirer-Neubeuer, então, se desfez de sua tela em favor de Jakob Scheidwimmer, negociante de arte e membro do partido nazista, por um montante nunca pago, armou-se de documentos migratórios obtidos de maneira irregular, e a família deixou a Alemanha.

Quadro Camille Pissarro no apartamento de Lilly Cassirer, em Berlim
David Cassirer/Artnet

Após diversas tentativas infrutíferas de reaver a tela, a essa altura desaparecida, a sra. Cassirer-Neubeuer obteve uma compensação financeira de treze mil dólares, pagos pelo governo alemão e arbitrados pela U.S. Court of Restitution Appeals, cerca de dez  anos depois do término da Segunda Guerra Mundial.

Em 1976, 14 anos após a morte de Lilly Cassirer-Neubeuer, a tela reapareceu nos Estados Unidos da América, onde foi amealhada pelo colecionador de arte Hans Henrik Ágost Gábor, Barão Thyssen-Bornemisza de Kászon e Impérfalva – um verdadeiro carrefour de normas de conexão de Direito Internacional Privado, graças a seus vínculos de nacionalidade, residência, nobreza ou riqueza com o Reino dos Países Baixos, a Suíça, a Hungria, o Principado de Mônaco, o Reino Unido, a Espanha e a Alemanha. O Barão Thyssen-Bornemisza venderia, mais tarde, em 1993, 775 obras de arte de sua coleção pessoal, por 338 milhões de dólares, para o Estado espanhol.

A Espanha, então, instituiu, bem no centro Madrid, o internacionalmente reputado Museo Nacional Thyssen-Bornemisza em torno da coleção adquirida, um equipamento cultural que, junto com o Prado e o Reina Sofia, compõe a Santíssima Trindade museológica da Espanha. Aberto o acervo do Museo à visitação pública, foi em 2001 que Claude Cassirer, bisneto da antiga proprietária, avistou a tela que pertencera à sua família pela primeira vez.

Àquela altura, a obra estava em exposição há oito anos e segundo o direito espanhol, bastariam seis para que o Estado adquirisse originariamente a propriedade — por usucapião. Isso significa que mesmo que se pudesse imputar um vício ao contrato de compra e venda celebrado entre o Reino d’Espanha e o Barão Thyssen-Bornemisza, anulando-o, a posse mansa e pacífica há mais de seis anos seria suficiente para que o poder público convalidasse o ostensivo domínio exercido.

A ação intentada por Claude Cassirer foi proposta na Califórnia, EUA, que era não apenas o local de seu domicílio, ao tempo da propositura da demanda, mas também o local para onde a obra teria sido exportada de maneira ilegal, em 1951. Coincidentemente, também foi na Califórnia que se iniciou o processo de “A Dama Dourada”, conforme nos relembrou, num encontro em João Pessoa, há alguns anos, Donald S. Burris, um dos advogados do caso.

Segundo o Foreign Sovereign Immunities Act, de 1976 — ano em que a tela reapareceu —, na interpretação que já lhe deram as cortes americanas, a Espanha não faria jus à imunidade de jurisdição, como Estado soberano, por estar presente, no ato expropriatório originário (ou seja, na venda efetivada pela sra. Cassirer-Neubeuer em estado de necessidade), uma violação ao direito internacional.

Claude Cassirer morreu em 2010, aos 89 anos. Seus filhos David e Ana continuaram com o processo. Na disputa em andamento, duas instâncias inferiores já se manifestaram acerca da aplicabilidade do direito espanhol para o deslinde do mérito da disputa. Trata-se da incidência de um adágio tradicional do Direito Internacional Privado segundo a qual é a lex rei sitae aquela que se aplica. Como o bem (res) está situado (sitae) na Espanha, esta seria a lei aplicável.

A disputa, entretanto, chegou à Suprema Corte estadunidense, via “writ of certiorari”, mecanismo através do qual o tribunal decide discricionariamente se conhece ou não de determinada questão. Os debates públicos entre as partes tiveram lugar no dia 18 de janeiro de 2022. As partes não controvertem com relação ao fato de a obra ter sido alienada com vício de consentimento da parte da vendedora. No entanto, há uma sutileza presente no caso e que será essencial para o deslinde da questão.

Se a Suprema Corte entender que a licitude do contrato de aquisição firmado pelo Barão Thyssen-Bornemisza deva ser analisada segundo as leis californianas — algo que é requerido pelos Cassirer —, a boa-fé que eventualmente existisse na celebração desse contrato não poderá prevalecer, pois a ilicitude da aquisição jamais se convalidaria. Sob o sistema da Common Law, o "bona fide purchaser" não goza da mesma proteção a ele dirigida nos sistemas de Civil Law.

 Além disso, ainda que se proceda à incidência da lei espanhola — local da situação do bem —, esta poderá ceder em face da ordem pública (public policy) californiana, que determina a não convalidação do ato viciado, o que parece ter sido percebido pela juíza Sonia Sotomayor — que participou da audiência via teleconferência. Com efeito, a magistrada indagou ao advogado da Fundação Thyssen-Bornemisza, qual seria o medo da Espanha em ver a situação regida pelas leis californianas…

Tudo leva a crer que o cerne da disputa está em compreender se a Espanha, enquanto ente soberano não imune à jurisdição estadunidense, conforme o Foreign Sovereign Immunities Act, deve ter algum privilégio que a vincule tão-somente às leis federais americanas — e à public policy federal — ou se, ao contrário, por não ser considerada um ente imune a esta jurisdição, está afeta ao emaranhado normativo subnacional estadunidense, podendo se submeter à lei — e à public policy — californianas. Daí a provocação exarada pelo Chief Justice John Glover Roberts Jr., que, diante do argumento levantado pelo advogado que representa a Fundação espanhola, no sentido de o Estado espanhol não poder se submeter a leis estaduais, mas tão-só a leis federais, deu ao advogado boas-vindas e afirmou: "that’s how the courts work"!

Aliás, nunca é demais lembrar que a Espanha, no caso Amistad, já se viu às barras da Suprema Corte — num outro caso que virou filme. Naquele julgamento, o grande internacional privatista Joseph Story, fundador do moderno conceito de public policy, tomou assento como juiz. Suas lições, parece, ainda ecoam entre os juízes, naquela sala de julgamento. A ver como se concretizarão no julgamento definitivo do caso Cassirer v. Thyssen-Bornemisza Collection Foundationnº 20-1566.