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SOBRE OS LIMITES À AUTONOMIA DOS ENTES FEDERADOS EM MATÉRIA DE CONSUMO

No último dia 13, o presidente do Procon do estado de São Paulo, Fernando Capez, publicou interessante artigo intitulado "O valor das multas dos Procons e sua função social" [1], pelo qual tratou da necessidade de equilíbrio na imposição de multas administrativas pelos Procons do país — tarefa encarregada à Comissão de Segurança Jurídica e Processo Administrativo, recentemente criada pelo Conselho Nacional de Defesa do Consumidor. Apesar de inúmeros méritos, o artigo tem um ponto que nos parece equivocado, tanto em suas premissas — que vão de encontro à dogmática constitucional e administrativa contemporânea — quanto, por via de consequência, nas suas conclusões.

Em primeiro lugar, observamos em sua argumentação afirmações em favor de uma liberdade e autonomia de cada Procon (e são mais de 900) para estipular seu próprio regramento de imposição de multas, o que abarcaria desde as regras do procedimento administrativo até os critérios de cálculo das sanções. Contudo, esse é um tema que merece um pouco mais de cuidado interfederativo.

Muito embora não se questione seja o Procon um órgão dotado de considerável autonomia, o modelo de distribuição de competências entre os entes federativos adotado pela Constituição Federal impõe, tanto em matéria administrativa quanto de consumo, limitações à sua atuação e mesmo uma necessidade de coordenação — sob pena de falta de eficiência administrativa e disfuncionalidade das instituições republicanas.

Nesse diapasão, o presidente do Procon-SP, para corroborar seu argumento em prol da liberdade de fixação de procedimentos administrativos pelos Procons, cita antiga lição de Hely Lopes Meirelles, o qual afirma que "o processo administrativo não pode ser unificado pela legislação federal para todas as entidades estatais, em respeito a autonomia de seus serviços" [2]. Indo além, conclui a partir disso que a disciplina do processo administrativo sancionador em matéria de consumo, regulado pelo Decreto federal nº 10.887/2021, teria aplicabilidade somente à Senacon (órgão federal), em nada alterando a organização e os regramentos administrativos dos Procons dos estados, Distrito Federal e municípios.

É verdade que, nos termos do artigo 24, incisos V e VIII, a Constituição Federal tenha atribuído aos entes federativos competência concorrente para legislar sobre matéria de consumo, mas processo administrativo sancionador não é matéria de consumo e, sim, administrativa [3]. Mas ainda que de Direito do Consumidor se tratasse, o artigo constitucional citado trata de um caso de competência concorrente.

Conforme jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal [4], a competência concorrente reflete um modelo vertical de repartição de competências, por meio da qual à União federal cabe a edição de normas gerais e aos demais entes federativos a sua complementação. A ideia de normas gerais traduz a necessidade de harmonização normativa em termos federativos, fazendo com que determinadas normas promulgadas pelas autoridades federais se tornem nacionais, em favor da estabilidade jurídica de setores socialmente sensíveis. Os seus efeitos são positivos (disciplinam a normatividade) e negativos (impedem que normas contrárias à legislação nacional gerem efeitos válidos).

Isso vale também para o processo administrativo. Do fato de que haja uma inviabilidade unificação do processo administrativo nacionalmente — até por peculiaridades regionais — não deriva uma total autonomia dos entes federativos em produzir seus próprios regramentos sem observar as normas de âmbito federal — situação essa que, segundo o próprio professor Capez reconhece, produziria insegurança jurídica. Há a necessidade de atendimento dos princípios gerais, previstos para federação; basta a leitura da Lei 14.133/2021 para se constatar que ela positivou normas gerais, com incidência nacional, de processo e sanção administrativa, as quais não poderão ser descuradas pelos demais entes federativos.

Essa é a dogmática derivada da interpretação do texto constitucional citado e também a que melhor se coaduna com a teoria do Direito Público moderno, voltado a uma maior eficiência da Administração Pública e que pondera, pragmaticamente, os efeitos das decisões jurídicas. Ora, naturalmente que uma federação deve funcionar como um sistema cooperativo baseado num acordo implícito entre unidades federativas, cuja organização fundamental e estabelecimento das regras gerais do jogo cabem à União federal. A falta de coordenação entre as esferas federal (atualmente bastante avançada em termos de políticas públicas baseadas em evidências e alinhamento com práticas da OCDE), estadual e municipal, no âmbito dos Procons, vem produzindo sérios problemas práticos, como situações de bis in idem em autuações e multas [5]. Esse cenário evidencia a existência de limitações às autonomias dos Procons, de modo a privilegiar uma coordenação sensata entre as esferas, respeitando-se o modelo adotado pela Constituição Federal quanto à reserva legislativa federal para a edição de normas gerais.

Nessa dinâmica não há de se falar, portanto, em autonomia plena dos estados e municípios — inclusive em matéria administrativa e de consumo —, como se soberanos e autônomos fossem, especialmente ante a prévia existência de legislação federal sobre o tema — como se observa em matéria de sanções administrativas de consumo, regulada por meio dos Decretos nº 2.181/97 e nº 10.887/21.

Como resultado disso, mesmo a Portaria Normativa Procon-SP nº 57/2020 — citada no artigo como fonte de critérios para multas administrativas no estado de São Paulo — será inconstitucional e ilegal quando exceder ou conflitar com a legislação federal. Isso porque os estados, Distrito Federal e municípios encontram limitação nas normas gerais estabelecidas por tais leis e seus regulamentos federal, em respeito ao desenho constitucional de repartição de competências.

Note-se bem que não se está aqui a defender a inaplicabilidade de multas ou a ineficiência de processos administrativos. Ao contrário: o que se pretende é a eficiência decorrente da cooperação federativa, partindo do pressuposto de que as unidades federativas precisam uniformizar as melhores soluções — e, repetimos, quem pode fazer isso é a União. Caso se pretenda defender a desnecessidade de harmonização federativa em termos de regulamentação do direito do consumidor (e sua aplicação pelos Procons), instala-se o risco de todos — consumidores, sociedades empresariais e Estado — saírem perdendo, pois se esvaziará a ordem econômica constitucional.

 

[2] Meirelles, Hely Lopes. "Direito Administrativo Brasileiro" São Paulo: Malheiros, 23ª edição, 1998 (anterior à Lei federal de processo administrativo, a 9.784/1999, e ao CPC/2015, portanto).

[3] Para um conceito de processo administrativo sancionador e sua natureza, ver: BINENBOJM, Gustavo. "Poder de polícia, ordenação, regulação". Belo Horizonte: Editora Forum, 3a. ed, p. 111

[4] RE 394.343, relator ministro Eros Grau, j. em 17/11/2009; RE 730.721, relator ministro Edson Fachin, j. em 02/10/2015; ADI 4952, relator ministro Luiz Fux, j. em 08/05/2014; ADI 2053 MC, relator ministro Celso de Mello, j. em 01/08/2001.

[5] STJ — REsp: 1087892 SP 2008/0206368-0, relator: ministro BENEDITO GONÇALVES, Data de Julgamento: 22/06/2010, T1 — PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/08/2010; TJ-SP — AC: 00137055220138260053 SP 0013705-52.2013.8.26.0053, Relator: Souza Meirelles, Data de Julgamento: 08/03/2017, 13ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 21/03/2017