OS DESAFIOS NO FUTURO DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS
Introdução
Os Juizados Especiais surgiram na atual Constituição Federal, mas sua origem remonta às Pequenas Causas da década de 1980 (Lei 7.244/1984), como uma alternativa para tornar mais acessível o sistema de Justiça. Desde então, principalmente após o advento da Lei 9.099, os Juizados experimentaram um rápido crescimento na teoria e na prática.
Hoje representam aproximadamente 56% da demanda total da Justiça estadual brasileira, segundo dados do "Diagnóstico dos Juizados Especiais" do CNJ. Muito desse crescimento veio da expansão do acesso à Justiça para uma gama cada vez maior de novas práticas e pela transformação da 9.099 em lei instrumental do Código de Defesa do Consumidor.
Os Juizados Especiais, ao longo desse período, enfrentaram problemas relacionados à sua implantação e funcionamento em vários tribunais e isso apenas não se transformou em divergência de objetivos e metas graças à atuação do Fórum Nacional de Juizados Especiais (Fonaje), que, com seus enunciados, tem padronizado o sistema e mantido a sua unidade nacional.
Neste artigo, apresentamos o que vemos como os maiores desafios que o futuro reserva aos Juizados Especiais e buscamos responder aos seguintes questionamentos: a institucionalização e a vinculação de suas práticas afeta os princípios inerentes ao sistema? O uso crescente da tecnologia garante acesso a todas as pessoas que são e deveriam ser atendidas nos Juizados Especiais? Como preservar e estimular as práticas de soluções autocompositivas?
O futuro é certo
Ao longo de sua história, os Juizados Especiais têm recebido avaliações diferenciadas, com críticas e elogios. Mas uma coisa é certa, milhões de decisões já foram dadas nesse sistema e centenas de livros escritos. Então, que os Juizados Especiais têm um futuro é bastante certo, após quase 30 anos de sua criação e institucionalização em todos os estados da federação.
Todavia, embora concebido como prescrição radical para os males do sistema tradicional de Justiça, hoje os Juizados Especiais funcionam mais como uma alternativa ao desempenho da Justiça comum.
As visões e promessas anteriores de um processo simples, rápido e pautado pela oralidade deram lugar a um sistema que tende à formalização e ao abandono gradativo dos critérios da Lei 9.099. Se não fosse a atuação constante do Fonaje na preservação dos princípios estruturais desse sistema especial, os Juizados seriam mais formais e descaracterizados pela influência do processo comum.
Daqui a 20 anos, a ideia de um processo simples, pautado na solução consensual dos problemas e na crença que algo de bom pode potencialmente sair de uma reunião entre as partes em litígio, ainda parecerá interessante para muitas pessoas. No entanto, ao mesmo tempo, não está nada claro como será a aparência dos Juizados Especiais daqui a 20 ou mesmo dez anos.
De fato, é impossível saber quais tendências mais amplas surgirão na Justiça brasileira. Porém, o crescimento e desenvolvimento passado dos Juizados Especiais, bem como suas práticas atuais, sugerem trajetórias no futuro que, provavelmente, o levarão a um conflito crescente com muitos de seus problemas conceituais, teóricos e práticos, a solução desses conflitos definirá os Juizados Especiais em um futuro previsível.
A perspectiva de futuro
Os debates sobre como devem funcionar os Juizados Especiais não são novos, muitas dessas discussões se concentraram nas posições "puristas" vs. "realistas", uma em oposição a outra.
Onde os puristas argumentam que devem ser preservadas as características básicas de um processo oral (onde o contato direto do juiz com as partes é essencial para a solução da demanda), enquanto os realistas argumentam que, ante o volume de processos, os Juizados Especiais devem flexibilizar os princípios da Lei 9.099 em nome da celeridade, o que, na prática, prestigia um processo cada vez mais formal e menos oral.
Esse debate tem mais de 20 anos. É nele que queremos nos concentrar.
Desde a criação dos Juizados Especiais, a opção pela oralidade e pelo imediato contato do juiz com as partes e às provas claramente correspondeu à posição purista. Contudo, essa não conseguiu dar respostas satisfativas para o volume crescente de demandas e para pautas cada vez mais extensas. A compatibilidade entre a oralidade e a solução em prazo razoável da demanda é um desafio que permeia todo o sistema dos Juizados Especiais, até os dias atuais.
Por outro lado, da visão realista do sistema também não emergiu uma resposta sistemática mais "desenvolvida" para esse dilema, pois as propostas de negação a técnicas autocompositivas e o uso indiscriminado de ferramentas processuais, especialmente pelos grandes litigantes, ordinariza demasiadamente o sistema e fere de morte os princípios dos Juizados Especiais.
Tampouco a adoção de novas tecnologias tem aportado grandes soluções a esse problema, já que cada vez mais se distanciam da oralidade e simplicidade, inicialmente concebidas para os Juizados Especiais. O que se percebe é que os objetivos da Lei 9.099 estão sendo alterados para se adaptarem a uma prática cada vez mais focada no cumprimento de metas e em outros indicadores de "sucesso", embutidas apenas em estratégias de redução de volume de processos.
Com efeito, as diferenças entre as duas visões do sistema não são novas, sendo que muitos desses debates se remontam ao início dos Juizados Especiais e cada vez se distanciam mais. Focar em uma ou em outra leitura do sistema não parece ser a melhor resposta.
O ponto principal não é se estes ou outros programas ou práticas dos Juizados Especiais são mais úteis ou eficazes para seus objetivos. Em vez disso, nossa pergunta é a seguinte: qual é o fio condutor que os une? Quais são os objetivos, metas, processos e resultados compartilhados identificáveis?
Em nossa visão, o que deve ser comum, em ambas as formas de se aplicar a Lei 9.099, é o foco na autocomposição. Essa parece ser a opção mais acertada e, seguramente, é aquela que terá mais amplo uso no porvir.
A forma de se ampliar a autotocomposição na comunidade, seja por via presencial ou eletrônica, parece ser a melhor visão de futuro para os Juizados Especiais. A tecnologia terá lugar de destaque nessa forma de composição e solução de demandas, mas a presença formal do Judiciário em comunidades isoladas e invizibilizadas, também se revela essencial.
A esse respeito, a pergunta óbvia é: o que torna um programa voltado para a autocomposição nos Juizados Especiais?
Embora haja grande plasticidade no próprio conceito de autocomposição, seu futuro depende, significativamente, em saber se o foco nas interações entre as partes que causaram danos e aqueles que foram prejudicadas permanece central para tal definição, ou se as soluções compositivas nos Juizados Especiais continuam a se expandir para programas fragmentados, em que a diferença entre aqueles que são próprios dos Juizados e outros tipos de Justiça se torna cada vez mais tênue.
Se voltarmos ao início da ideia dos Juizados, prevista na Lei 7.244, veremos que a institucionalização das soluções compositivas teve origem em resposta às críticas aos sistemas tradicionais de Justiça e se concentrava em soluções locais, construídas pelas próprias partes em suas comunidades. Por isso, os Juizados foram vistos por muitas pessoas como um meio promissor de acesso à Justiça, e não apenas para solução de demandas.
De fato, o foco inicial da composição nos Juizados Especiais estava no desenvolvimento de soluções que ofereciam uma alternativa às práticas de Justiça formal.
Esse caminho ainda é válido e deve ser prestigiado. Não se trata aqui de saudosismo ou visão utópica de uma provável solução. Ocorre que os Juizados Especiais, gratuitos em primeira instância, céleres nas soluções dos litígios e firmes na autocomposição, entre outros atributos, tinham características que os levaram a um patamar de sucesso que foi justamente o que ocasionou, por mais paradoxal que possa parecer, a causa do abarrotamento de novas ações e a impossibilidade de tratar as demandas como elas merecem ser enfrentadas.
A justiça mais próxima dos jurisdicionados é a ideia que norteia os Juizados Especiais Itinerantes, contemplados no parágrafo único do artigo 95 da Lei 9.099. Esse alinhamento entre Juizados e justiça social esteve na gênese de todo o sistema e foi desaparecendo ao longo do tempo. O sistema dos Juizados não é apenas um mecanismo do Judiciário, mas uma alternativa abrangente e efetiva às práticas atuais de justiça. O seu resgate é prioritário para que haja um futuro para os Juizados.
Nessa linha, a valorização de soluções comunitárias, com a criação de núcleos de Juizados em bairros e comunidades deve ser incentivada, pois não apenas alarga as vias de acesso ao Judiciário, mas também afasta a ideia de exclusão, marginalização e injustiça internalizada em muitos desses grupos.
Os Juizados itinerantes podem facilmente ser adaptados a programas recentes como o Juízo 100% Digital ou Núcleos de Justiça 4.0, ambos do Conselho Nacional de Justiça, com enorme possibilidade de sucesso. Podem, também, ser alçados a programas de ampliação do acesso à Justiça, servindo de postos avançados em comunidades distantes, bastando para isso disponibilizar para a população, um local onde ela possa acessar o serviço de comarcas, por meio virtual.
Outro ponto que merece atenção é que, ao longo dos anos, os Juizados Especiais sofreram mudança no perfil de demanda, passando a solucionar de maneira endêmica questões massivas de consumo, porém focados em soluções casuais. Isso levou a uma inflação no volume de feitos e a crescente descaracterização da concepção inicial desse sistema especial.
No entanto, quase 30 anos desde o advento da Lei 9.099 até agora, não há instrumental jurídico, no âmbito dos Juizados Especiais, para a solução de questões coletivas. Pelo contrário, a maioria dos programas de composição de litígios nos juizados especiais foi institucionalizada dentro de estruturas convencionais de Justiça, muitas vezes pautados em soluções individuais para demandas coletivas, o que apenas oferece respostas pulverizadas para problemas maiores.
A abertura para a composição em demandas coletivas nos Juizados Especiais parece ser uma opção a se pensar para o futuro, para se oferecer uma solução rápida para questões com maior número de ofendidos.
Por óbvio, uma opção dessa natureza carece de instrumentos que garantam sua efetividade. Isso pode ser implementado com parcerias, especialmente com agências reguladoras e com sítios de internet, como o consumidor.gov, Reclame AQUI, entre outros.
Enquanto esse instrumental jurídico não surge, a melhor compreensão do incidente de resolução de demandadas repetitivas (IRDR) (artigos 976 e 985 do CPC) e seu manejo adequado podem reduzir as demandas massivas nos Juizados Especiais. Logo, seu uso deve ser incrementado, inclusive com a utilização de técnicas compositivas, sempre que possível.
Falando em instrumentos que merecem ser prestigiados, não podemos esquecer da figura do juiz leigo. Ele tem sido essencial para o funcionamento mais efetivo e adequado dos Juizados Especiais. Sua implementação deve ser incentivada nos tribunais que ainda não os têm, já que dariam mais funcionalidade ao sistema.
Por outro lado, o Judiciário como um todo passa por profundas transformações, não apenas quanto às novas ferramentas tecnológicas, mas também quanto à forma de utilizá-las, como desenvolver novas metodologias de trabalho, com o objetivo de viabilizar a ampliação do acesso ao sistema de Justiça a um número cada vez maior de pessoas ou, ao menos, para evitar um apartheid tecnológico.
Assim, o uso de novas tecnologias pode e deve ser incentivado. Mas é fundamental que o foco seja no jurisdicionado, em quem recebe o serviço. Não basta os Juizados oferecerem canais tecnológicos de última geração, se o destinatário do serviço não pode utilizá-lo porque não tem condições financeiras de adquirir ferramentas que permitam o acesso ou mesmo que não tenham conhecimento de como fazer-se valer delas para o exercício de seus direitos.
Logo, quanto às novas tecnologias, é essencial que sejam adaptadas às técnicas de prestação jurisdicional, o que não é algo fácil, pois exige critérios de eficiência e aplicabilidade, mas também requer que novas habilidades e competências sejam aprendidas pelos operadores do sistema jurídico. Isso tudo é um imenso desafio.
Por fim, a seleção dos softwares de lawtech mais aptos ao sistema de justiça também é um obstáculo a ser superado, porque envolve o aprendizado dessa tecnologia pelos operadores do sistema e análises precisas sobre os impactos que causam na prestação jurisdicional; o que garante o espaço do Fonaje na escolha das ferramentas mais alinhadas com os objetivos dos juizados.
Conclusão
Este artigo mostra um quadro de desafios significativos enfrentados pelos Juizados Especiais, também deixa claro que nos próximos anos eles continuarão a se expandir e "crescer", mas a relevância que terão em um futuro próximo depende, significativamente, de como lidarão com essas questões de acesso à Justiça, soluções autocompositivas, uso adequado da tecnologia e efetividade de suas decisões, para que não sofram processos de ordinarização e de descaracterização de seu rito.
O planejamento estratégico exige uma atuação proativa do Fonaje, como formulador de políticas para os Juizados e na construção de uma agenda clara sobre os desafios que o sistema enfretará em um futuro próximo. Esse é o caminho mais promissor: o envolvimento dos Juizados na construção de soluções.
A participação do Fonaje nesse processo permitirá que os operadores dos Juizados Especiais possam realmente se posicionar e ter voz ativa em âmbito nacional junto ao Conselho Nacional de Justiça e aos diversos Tribunais de Justiça. Isso transformará as expectativas do futuro em algo efetivo, em um presente.
Referência bibliográfica
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Diagnóstico dos Juizados Especiais. Brasília: CNJ. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB_LIVRO_JUIZADOS_ESPECIAIS.pdf. Acesso em: 19/1/2022.