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DECISÕES SINALIZAM NOVA CHANCE PARA EX-PRESOS QUE NÃO CONSEGUEM PAGAR MULTA

Decisões recentes de dois importantes tribunais brasileiros sinalizam uma mudança de entendimento da Justiça em relação aos presos que cumpriram a pena de prisão, mas são impedidos de retomar a vida em sociedade porque não conseguem pagar a multa estipulada na condenação, em complemento ao tempo de reclusão.

ReproduçãoDecisões sinalizam nova chance para ex-presos que não conseguem pagar multa

No início de janeiro, um homem teve a sua punibilidade extinta pelo Tribunal de Justiça de São Paulo por não ter condições financeiras de quitar a dívida com a Justiça. A corte paulista seguiu o novo entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre casos semelhantes.

Ambas as decisões coincidem com um dos objetivos da Resolução CNJ 425/2021, que determinou aos juízes de execução penal avaliar a possibilidade de extinguir a punibilidade do réu que já tenha cumprido a pena de prisão e esteja em situação de rua.

O homem foi preso em 2014 e deixou a prisão em março de 2017. No entanto, seguiria devendo à Justiça enquanto não saldasse a multa que lhe foi sentenciada, após sair da prisão. Como consequência, em 2022, cinco anos após deixar o sistema prisional, ele não recuperara seus direitos políticos, pois não cumprira integralmente a sua condenação.

Esse caso não é isolado. Como ele, milhares de pessoas saídas do sistema entram em um labirinto burocrático quando tentam reabilitar suas vidas. Só em São Paulo, de um universo de 40 mil ex-presos condenados ao pagamento de multa, apenas 1% conseguiu fazer o acerto entre setembro de 2020 e 2021, de acordo com dados do TJ-SP.

Enquanto não pagar a multa, o egresso sem punibilidade extinta fica impedido pelo Estado de recuperar seus direitos políticos e de regularizar seu registro no CPF. Sem o documento, não é possível emitir a Carteira de Trabalho e, fora do mercado formal, ninguém consegue se cadastrar junto ao governo federal para receber benefício social pago a pessoas de baixa renda, como o Bolsa Família (atualmente Auxílio Brasil) ou o Auxílio Emergencial pago em função da pandemia da Covid-19.

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que ajuizou as causas que resultaram nas decisões do STJ e do TJ-SP, calculou que 53% das intimações que chegam ao órgão cobravam multas criminais de valor inferior a R$ 500 das pessoas sentenciadas e representadas pela Defensoria.

Mesmo assim, as multas seguem em aberto por falta absoluta de recursos. Apenas 31% dos réus entrevistados afirmaram trabalhar, geralmente como ajudante, mecânico, servente, pintor, pedreiro, em troca de uma remuneração mensal inferior a R$ 1 mil. A escolaridade de 70% da população prisional do estado se restringe ao ensino fundamental.

Exclusão e criminalização
Ciente das condições precárias de sobrevivência enfrentadas por quem sai do sistema prisional, o CNJ busca modificar a abordagem da Justiça criminal em relação a pessoas como o homem citado nesta reportagem, que não raro saem da prisão sem emprego nem renda para pagar aluguel e, por isso, são levadas a buscar moradia nas ruas.

Por isso aprovou a Resolução CNJ 425/2021, que determinou a juízes de execução penal “observar a possibilidade de extinção da punibilidade da pena de multa” das pessoas que tenham cumprido a pena de prisão e que, enquanto estiverem em situação de rua, não terão condições de pagar a multa.

O artigo da norma que desobriga juízes a cobrar de condenados em situação de rua o pagamento da multa para concluir a punibilidade faz parte de um normativo com alcance maior.

A Resolução instituiu a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e interseccionalidades, com uma seção dedicada exclusivamente às medidas em procedimentos criminais que agora devem ser adotadas quando a Justiça estiver lidando com pessoas em situação de rua.

Essas medidas originaram-se em contribuições feitas pelo Departamento de Fiscalização e Monitoramento do Sistema Carcerário e do Sistema Socioeducativo (DMF/CNJ).

De acordo com a mestre em serviço social Melina Miranda, a população de rua é historicamente excluída e criminalizada. O fato de não ter moradia fixa exclui esse contingente humano do Censo Populacional e ainda hoje é usado como justificativa pelo Poder Judiciário para manter a prisão de muitos detidos em flagrante.

"É importante que os magistrados tenham atenção quanto à aplicação da pena de multa para uma pessoa em situação de rua. Torna-se uma medida quase perpétua, que vai vincular essa pessoa a uma trajetória criminal em função da hipossuficiência (falta de condições financeiras), ao agravamento da sua condição social", afirmou a especialista que representou o DMF/CNJ no grupo de trabalho que discutiu e elaborou a versão preliminar do texto do normativo.

Hipossuficiência
No último dia 10 de janeiro, quando a 7ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP julgou o caso, os desembargadores aderiram à conclusão do relator do processo, desembargador Klaus Marouelli Arroyo, de que o fato de o homem ser representado pela Defensoria Pública do estado bastava para presumir que faltavam ao sentenciado condições para arcar com o pagamento da multa.

Como o Ministério Público não comprovou que ele tinha meios de pagar, a decisão extinguiu a punibilidade do condenado devido ao "integral cumprimento da pena, independentemente do pagamento da pena de multa", destacou o magistrado. No seu voto, o relator fez referências ao novo entendimento do STJ sobre o tema, que deve orientar juízes e juízas de instâncias inferiores diante de casos idênticos.

Esse tipo de inadimplência entre condenados é tão comum na Justiça criminal e nos chamados recursos repetitivos apresentados ao STJ que a Corte decidiu estabelecer uma posição definitiva a respeito. O chamado Tema 931 orienta todos os casos semelhantes que chegam ao Tribunal e às demais instâncias da Justiça, como aconteceu no caso analisado pelo TJ-SP, julgado pela Câmara de Direito Criminal, por exemplo.

A 3ª Seção do STJ enunciou em um acórdão de setembro de 2021 o entendimento sobre a questão, em forma de tese: “Na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade”. Em outras palavras, o pagamento da multa era indispensável para que a pena fosse declarada extinta pela Justiça.

Diferenciação de crimes e penas
A posição tomada pelo STJ em setembro de 2021 foi uma adequação à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que decidiu em agosto de 2019 que a multa permanecia como parte da pena criminal, quando fosse sentenciada em complemento à pena de privação de liberdade. Nessa condição, a sanção deveria receber o mesmo tratamento dispensado aos débitos inscritos na Dívida Ativa da Fazenda Pública.

Pior: a Lei de Execução Penal — LEP (Lei 7.210/84) permitia até que o Ministério Público cobrasse a inadimplência do condenado, com a possibilidade de execução de bens do ex-preso devedor e até de retenção de parte do que o preso recebesse pelo trabalho realizado na cadeia. Em dezembro de 2019, no entanto, o Congresso Nacional ajustou o Código Penal e tornou a multa uma dívida de valor, cobrável pela Fazenda Pública.

Dois meses depois de adequar o Tema 931 à decisão do STF, a 3ª Seção do STJ modificou o entendimento que a Corte, desta vez para acrescentar uma exceção à obrigatoriedade de se pagar a multa para conseguir extinção de punibilidade. Não pagar a multa não impedirá a extinção da punibilidade apenas nos casos em que o condenado comprovar não possuir meios para quitar o débito estipulado em sentença criminal.

De acordo com o relator do processo que ocasionou a mudança de orientação, ministro Rogério Schietti, tanto no Parlamento quanto no STF os debates e decisões sobre a exigência de quitação prévia de multa para extinção de punibilidade do condenado se referiam a crimes econômicos, de colarinho branco, geralmente cometidos contra a administração pública, e não a “crimes de rua”, estes, sim, o motivo de encarceramento da grande parte da população prisional.

Perfil
Em dezembro de 2020, 40,91% dos presos em estabelecimentos prisionais ali estavam por crimes contra o patrimônio; 29,9%, por tráfico de drogas, e 15,13%, por praticar crimes contra a pessoa (homicídio e tentativa de homicídio, por exemplo), de acordo com o InfoPen, levantamento do Departamento Penitenciário Nacional.

"Tal cenário do sistema carcerário, note-se, expõe as vísceras das disparidades socioeconômicas arraigadas na sociedade brasileira, as quais ultrapassam o inegável caráter seletivo do sistema punitivo e se projetam não apenas como mecanismo de aprisionamento físico, mas também de confinamento social, a frequentemente reduzir o indivíduo desencarcerado ao status de um não cidadão e, assim, relega-lo à condição de pária social", afirmou em seu voto o ministro Schietti.

No voto, o ministro também reconheceu a "maneira central" com que o Conselho Nacional de Justiça tratou a questão na Resolução CNJ 425/2021, ao considerar a vulnerabilidade social dos réus nos novos procedimentos especiais para a população em situação de rua que for atendida pela Justiça criminal.

De acordo com Schietti, depois de pagar por seus crimes, os condenados que sofrem com a pobreza material recebem uma segunda condenação: a invisibilidade social. Quem tem familiares a quem recorrer acaba por sobrecarregar as finanças domésticas e “agravar a penúria”, o que faz a pena “transcender” para além da pessoa do condenado, o que é vedado pela Constituição Federal e pelo Pacto de São José, tratado interamericano de direitos humanos.

Nessas circunstâncias, a inadimplência produz uma nova violação aos direitos humanos, a perpetuação da pena. A exceção aberta pela 3ª Seção do STJ aos ex-presos comprovadamente miseráveis baseia-se na solução encontrada pelo STF ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3.150/DF).

A Suprema Corte permitiu a progressão de regime apenas àqueles que comprovassem condição de penúria, mantida a obrigatoriedade de pagamento da multa aos que tivessem condição de pagar como exigência para progredir para outro regime, fechado para semiaberto, por exemplo.

Novas perspectivas
Após conseguir vitórias no STJ e no TJ-SP, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo tem agora o novo desafio de descobrir uma forma de comprovar a "hipossuficiência" dos réus que defende, de acordo com o assessor Criminal e Infracional da DEPSP, Glauco Mazetto. A decisão da 7ª Câmara de Direito Criminal da corte paulista não necessariamente precisa ser replicada pelas outras 15 câmaras do maior tribunal da Justiça Estadual.

"O caminho é longo porque precisamos construir uma forma que comprove que essa pessoa não tem condições de pagar. Essa é a nova batalha. A declaração de que é pobre, apresentada pela pessoa à DPESP, é suficiente para a concessão de justiça gratuita", afirmou Mazetto. O órgão também busca divulgar a decisão para os defensores públicos que atuam em casos individuais.

Como resultado, a decisão da 7ª Câmara de Direito Criminal, embora recente, já teve repercussão em outros órgãos do TJ-SP, com algumas decisões favoráveis aos recursos da Defensoria. "Já houve divulgação interna da decisão, também fizemos, e vamos fazer novamente, encontros virtuais para discutir e compartilhar orientações sobre uma nova forma de atuação nesses casos", afirmou. Com informações da assessoria de imprensa do CNJ.