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O JUIZ E A CAPITULAÇÃO DADA PELO AUTOR NA PETIÇÃO INCIAL DA AÇÃO DE IMPROBIDADE

A dignidade do ser humano, seja em sua perspectiva ontológica, relacional ou ainda como limitação axiológica do alvedrio estatal é pressuposto de todos os direitos fundamentais. A necessidade de tutelar especialmente determinados valores, dotando-os de fundamentalidade, deriva do quão imprescindíveis são para a satisfação das necessidades básicas indispensáveis à vida digna. Assim, é a dignidade do ser humano que é a justificativa filosófica e, logicamente, a motivação da existência do feixe de direitos consagrados constitucionalmente em determinado momento da história. Violar tais direitos é, em última análise, atingir o desenvolvimento livre do ser humano.

Num contexto social em que tantos exemplos de despreparo, má gestão e corrupção corroem a credibilidade do sistema democrático e provocam a descrença no Poder Público, a proteção do patrimônio público como direito fundamental espelha a imprescindibilidade de resguardar os recursos cujo destino é a prestação dos serviços públicos que, por sua vez, tem o fim precípuo de garantir direitos fundamentais das mais diversas ordens.

Daí que questões sobre o que seja má gestão, improbidade administrativa, corrupção, os custos sociais de cada um desses fenômenos e quais os mecanismos ideais para prevenção e repressão integram, com máxima urgência, a pauta de prioridades no gerenciamento do setor público.

A reformulação impelida pela Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, no sistema de responsabilização previsto pela Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992), tem demandado nos últimos tempos dos profissionais do direito intensas reflexões a respeito de inúmeros temas. Uma dessas temáticas, refere-se ao disposto no §10-F do artigo 17 da novel lei.

Preceitua tal dispositivo ser nula a sentença de mérito que condenar o réu à tipologia diversa da apontada na petição inicial.

Pois bem!

É certo que, exprimindo o jus puniendi estatal, toda ação de improbidade administrativa deve conformidade aos princípios constitucionais, garantindo-se a existência de um núcleo mínimo de garantias em favor daquele contra o qual se volta o Estado.

Também não se ignora a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o festejado Pacto de San José da Costa Rica, cuja ratificação pelo Brasil deu-se em 1992, e que dispõem em seu art. 8º, n. 2, “b”, o direito do acusado à comunicação prévia e pormenorizada quanto à imputação que o Estado lhe dirige.

Da mesma forma, parece-nos indiscutível que os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, dispostos no art. 5º, incisos LIII, LIV e LV, da Constituição da República, dentre outros, integram também o núcleo do direito administrativo sancionador.

Entretanto, prudente ressaltar que contraria a ontologia de qualquer sistema punitivo — inclusive o Direito Administrativo Sancionador — que tais premissas se transformem em blindagem absoluta de agentes ímprobos, em verdadeiro festejo à impunidade.

Guardadas as devidas proporções, rememoremos as lições da doutrina do funcionalismo no Direito Penal. Na perspectiva de Günther Jakobs (funcionalismo sistêmico), a função do Direito Penal é proteger a higidez do sistema normativo, a validade da norma (uma vez que se pressupõe a ação do Direito Penal à violação do bem jurídico). Por outro lado, para Claus Roxin (funcionalismo teleológico), a dogmática penal se incumbe, precipuamente, da tutela dos bens e valores essenciais para aquele seio social. Sem adentrar ao mérito de qual dessas perspectivas é a mais benquista pela doutrina especializada brasileira, não há como discordar que ambas possuem em comum o ponto de partida: a função desse ramo do direito (daí porque "funcionalismo"), justamente a partir da qual se determinará, dentre outros consectários, o alcance da disciplina jurídica penal.

Se empregarmos o raciocínio similar para o Direito Administrativo Sancionador a ponto de questionar-nos: "qual a função do Direito Administrativo Sancionador?", certamente encontraremos respostas que rechaçam qualquer possibilidade do emprego das raízes do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa como instrumento de blindagem absoluta de agentes ímprobos.

Nesse contexto, é incongruente pretender a superação do desafio de assegurar concretude aos direitos fundamentais, principalmente dos direitos fundamentais sociais (que demandam atuação positiva do Estado), sem que se tenha também assegurada, de forma prioritária e efetiva, a defesa do próprio patrimônio público. Assim, aceitar qualquer interpretação do §10-F do artigo 17 da novel lei que venha a vincular a condenação em ação de improbidade administrativa, de maneira absoluta, intransponível, à tipificação explicitada na respectiva petição inicial, afronta a própria ratio do Direito Administrativo Sancionador.

Se até mesmo no âmbito do jus puniendi estatal criminal, no qual se permite inclusive a aplicação de sanções com reflexos na liberdade do indivíduo, há previsão legal admitindo a possibilidade de emendatio libelli para a hipótese em que a condenação criminal caminhe para uma capitulação penal diversa daquela dada na denúncia, como negá-la no âmbito do Direito Administrativo Sancionador?

É possível que existam vozes a responder tal pergunta baseando-se na gravidade da sanção aplicada no processo-crime. Se, por um lado, não se nega que a sanção oriunda do processo-crime é a mais gravosa em nosso sistema normativo, por outro lado é inadmissível deixar de reconhecer que a sanção do Direito Administrativo Sancionador também é consideravelmente grave, a ponto de o Constituinte prever expressamente a improbidade administrativa, ao lado da condenação criminal transitada em julgado, como hipótese de suspensão dos direitos políticos (artigo 15, V c/c artigo 37 §4º), além de outras disposições que denotam o jaez rigoroso da sanção administrativa.

Evidentemente, a conclusão é a de que o comando disposto no §10-F do artigo 17 da Lei de Improbidade Administrativa deve ser interpretado à luz do processo constitucionalizado, que legitima o sistema processual (especialmente o sancionador) e seus respectivos institutos à luz da Constituição da República.

Desse modo, não há que se falar em "nulidade" da decisão de mérito apenas e tão somente se "condenar o requerido por tipo diverso daquele definido na petição inicial". Ora, não é segredo para ninguém que a nulidade (ao menos via de regra) é a medida aplicável quando há prejuízo para as partes, em respeito ao princípio da instrumentalidade das formas (pas de nullité sans grief) (exemplificado, em nosso sistema processual, pelos artigos 563 do Código de Processo Penal e 277 do Código de Processo Civil).

Destarte, solução cabível é implementar o que preceitua o artigo 493 do Código de Processo Civil, de modo a não admitir que o réu venha a ser surpreendido com uma condenação alicerçada em condutas tidas como ímprobas e que não lhe tenham sido explicitamente imputadas, impedindo-o, assim, de defender-se regularmente. Tal dispositivo jamais deve ser transformado inadvertidamente em uma amarra ao Judiciário, afastando-o dos anseios de segurança e de justiça tão proclamados por toda a sociedade — até por que, frisa-se, a defesa não se opõe à capitulação legal, mas aos fatos.

Neste aspecto, de todo salutar também relembrar as lições da professora e promotora de Justiça mineira Maria Carolina Silveira que, com muita propriedade, pontua que de nada adiantam as construções doutrinárias sobre a função do processo e seus adequados meios de utilização se a morosidade de sua tramitação impede a satisfação do direito a que se faz jus[1].

Diante disso, findada a instrução processual e constatado algum fato que possa repercutir em nova capitulação do tipo de improbidade administrativa, diversa daquela explicitada na inicial do autor, imprescindível que seja oportunizada manifestação às partes, garantindo-se ao réu o exercício da ampla defesa e do contraditório. Adotado tal cuidado, estar-se-á superado o comando do §10-F do artigo 17, da Lei nº 8.429/92, cabendo ao Judiciário o devido julgamento da ação, inclusive com possibilidade de condenação do réu pela prática de ato de improbidade administrativa diverso daquele capitulado na petição inicial.

Referência bibliográfica:
BERALDO, Maria Carolina Silveira. O comportamento dos sujeitos processuais como obstáculo à razoável duração do processo. Ed. Saraiva, 2012.

[1] in  Maria Carolina Silveira. O comportamento dos sujeitos processuais como obstáculo à razoável duração do processo. Ed. Saraiva, 2012. fls. 30/31.