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MARCO DO SANEAMENTO BÁSICO: O QUE FAZER ATÉ O DIA 31 DE MARÇO DE 2022

Durante os debates até aqui travados para implementar o Novo Marco do Saneamento Básico (Lei nº 14.026/2020), ouvi de um prefeito a seguinte frase: "essa lei vai ser que nem o lixo [falava dos resíduos sólidos, em verdade]: ao estarmos próximos de 2033 [data-limite para implementar as metas do novo marco], o Congresso aprovará uma nova lei prorrogando os prazos". Ele se referia à Lei de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/2010) e ao fato de se prorrogarem as metas ali fixadas (ver artigo 54), notadamente em relação à eliminação dos "lixões" — aterros à céu aberto e sem a devida licença ambiental.

Respondi ao prefeito: "sabedor desta 'fama', o legislador nacional, no caso do saneamento, tomou vários cuidados. Dentre eles determinar que, até 31 de março de 2022, as metas de universalização sejam cumpridas. Mas não só! Deverá se dizer claramente 'como' assim se o fará" (ver artigo 11-B, §1º). Ao que o prefeito me interpela: "então o problema está comigo e terá de ser resolvido no meu mandato?". A resposta minha naturalmente foi afirmativa, sendo este o ônus de ser titular do serviço.

Na minha opinião, aliás, o foco principal do novo marco é centrado na universalização, ou seja, a Lei nº 14.026/2020 pretende que o tratamento de esgoto seja oferecido à noventa por cento dos cidadãos e a água potável seja entregue a noventa e nove por cento da população até o ano de 2033 (artigo 11-B). São metas bastante audaciosas, ainda que já previstas em 2007 na Lei nº 11.445.

Sabedor da sua "audácia" em repetir os percentuais, o legislador nacional estabeleceu uma série de mecanismos jurídicos e determinou providências administrativas para conseguir se chegar aos mencionados percentuais. Por exemplo: 1) entendeu que se precisava de um regulador nacional para dar uniformidade ao setor, diminuindo as assimetrias normativas — e assim o fez por meio de normas de referência da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA); 2) previu "incentivos compulsórios" ao modelo de prestação por delegação, na forma do artigo 175 da Constituição Federal; e 3) determinou que os contratos em vigor, notadamente de programa e feitos com Companhias estaduais, fossem adaptados.

Sobre este último ponto, fixou um prazo: até 31 de março de 2022 os contratos atuais devem ser aditivados a incorporar as metas de universalização mencionadas, o que, convenhamos, não é nada simples. Primeiro, toda alteração de metas pressupõe reequilíbrio econômico-financeiro, que, em geral, pode ser operacionalizado de três maneiras: 1) por alongamento de prazo para amortizar os investimentos (payback); 2) por alteração da tarifa; 3) por receitas extraordinárias ou externas à tarifa (verbi gratia aporte de recursos orçamentários).

Mas o novo marco colocou alguns pormenores neste contexto: a) Primeiro, o alongamento de prazo dos contratos de programa é vedado pela legislação, salvo se a companhia estatal for desestatizada e o Município concordar com o alongamento — artigo 14, § 2º; b) Aumento de tarifa passa a ser uma das alternativas, trazendo à tona os seus efeitos colaterais drásticos: penalizar o usuário, ou seja, no final será quem "pagará a conta". c) Temperando a modicidade tarifária e o reequilíbrio, o artigo 11-B, §3º, parece tentar encaminhar uma solução proporcional, balanceando (c1) metas a serem atingidas; (c2) prazo final do contrato, e (c3) regras de cálculo tarifário.

Então, um contrato que tem seu vencimento antes de 2033 ou próximo desta data deverá ser aditivado compatibilizando estes três parâmetros. Exemplifico: pode ser que a tarifa não aumente para fazer frente aos investimentos e eventual custo não amortizado seja indenizado ao final do contrato. Na prática, o custo que seria amortizado em uma tarifa maior ao longo dos anos é repassado ao final do pacto. Ou pode ser que se fixem nos próximos anos metas menos agressivas ao atual prestador, e se faça a contratação de um novo prestado. Ou o município pode encaminhar diretamente as estruturas falantes para a universalização (verbi gratia ele se encarrega da construção de estações de tratamento, canalizações, caixas d’água de reservação etc. não amortizadas pela tarifa). Hoje estamos em um período de transição: o atual modelo de contratos de programa deverá a ser substituído por contratos de concessão (Lei nº 8.987/1995). Contudo, é uma "transição" que pode durar até o atingimento das metas, caso se tenha, por exemplo, um atual pacto com vencimento bem depois de 2033.

Independentemente do prazo final fixado, o que deve ser feito? O legislador deu a resposta: Município e Companhia estatal ou concessionária já contratada devem estabelecer um diálogo e negociar. Fixou-se, no primeiro caso, verdadeira solidariedade interfederativa, sobretudo porque as partes devem — é ato vinculado — acreditar bom aditivo aos contratos. Mas com um "porém", alguns itens devem ser inseridos nos ajustes, o que podemos chamar de "conteúdo mínimo dos aditivos". E isso deve ser feito até 31 de março de 2022!

A lista de providências é vasta, custosa e nem um pouco simples, o que, na minha opinião, colocar em xeque muitos dos modelos de aditivo apresentados como sugestões, os quais são entregues e dispostos por associações ou órgãos governamentais como garantidores da regularidade dos contratos. Para deixar clara nossa inconformidade com os modelos sugeridos por aí, vamos simplesmente listar os itens que devem constar nos aditivos a partir do texto da Lei nº 14.026/2020:

a) Art. 10-A:
a-1) Cláusulas essenciais previstas no artigo 23 da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 [1];
a-2) Outras disposições:
a-2.1) Metas de:
a-2.1.1) expansão dos serviços;
a-2.1.2) redução de perdas na distribuição de água tratada;
a-2.1.3) qualidade na prestação dos serviços;
a-2.1.4) eficiência e de uso racional da água;
a-2.1.5) energia e de outros recursos naturais;
a-2.1.6) reúso de efluentes sanitários; e
a-2.1.7) aproveitamento de águas de chuva, em conformidade com os serviços a serem prestados
a-2.2) Inserção facultativa: possíveis fontes de receitas alternativas, complementares ou acessórias, bem como as provenientes de projetos associados, incluindo, entre outras, a alienação e o uso de efluentes sanitários para a produção de água de reúso, com possibilidade de as receitas serem compartilhadas entre o contratante e o contratado, caso aplicável;
a-3) Deve ser alocada a metodologia de cálculo de eventual indenização relativa aos bens reversíveis não amortizados por ocasião da extinção do contrato – isso pode já estar normatizado pela agência reguladora pertinente, e não se necessita de uma regulação pelo contrato.
a-4) repartição de riscos entre as partes, incluindo os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária.

Veja que não se fala em “matriz de risco”. Logo, o tema não precisa ser por deveras detalhado, e bem pode já estar mapeado na regulação discricionária de eventos que permite revisões extraordinárias de tarifas, por exemplo.

b) Artigo 10-B: a comprovação da capacidade econômico-financeira da contratada, por recursos próprios ou por contratação de dívida já foi normatizada e imposta pelo Decreto federal nº 10.710/2021, e deveria ter sido implementado até o final do ano passado. Caberá refletir no contrato eventual o conteúdo da mencionada comprovação;
c) artigo 11: se não existe, o Município deverá implementar plano de saneamento básico. Se ele existe, deverá quiçá adaptá-lo ao novo marco;
d) artigo 11-B: metas de universalização que garantam o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033, assim como metas quantitativas de:
d-1) não intermitência do abastecimento;
d-2) de redução de perdas — já repetido pelo artigo 10-A; e
d-3) de melhoria dos processos de tratamento — em tese já contemplado nos itens do artigo 10-A.

Observação: o contrato, aditivo ou anexo deverá indicar como a universalização se dará no tempo, ou melhor, quais percentuais serão atingidos a cada ano, a partir de um plano de obras claro.

Duas palavras finais. O que se percebeu até então são movimentos das companhias estaduais para a formalização dos aditivos, quando deveria ser o contrário, porque o maior interessado no cumprimento das metas e quem será cobrado por isto é o município. Ele deveria estar afoito em consegui assinar o aditivo.

E se existir um prefeito que se negar a assinar o aditivo, por pura "birra política" ou por outra razão ilegítima? Bom, primeiramente fica claro que ele estaria descumprindo o que determina a lei nacional, porque as partes devem adaptar o aditivo para incluir, no mínimo, os itens que citamos logo antes. Não há espaço para oportunidade e conveniência.

Segundo, o gestor que resiste injustificadamente ao aditivo não poderia alegar que o contrato é precário e irregular, porque ele é quem deu causa a isto. Em outras palavras, comportar-se-ia contraditoriamente — venire contra factum proprium. E, no limite, quiçá, algum órgão de controle poderia avaliar as consequências de uma conduta deste jaez.

Os próximos dias [e anos] prometem!


[1] Lei nº 8.987/95, artigo 23: "São cláusulas essenciais do contrato de concessão as relativas:

I - ao objeto, à área e ao prazo da concessão;

II - ao modo, forma e condições de prestação do serviço;

III - aos critérios, indicadores, fórmulas e parâmetros definidores da qualidade do serviço;

IV - ao preço do serviço e aos critérios e procedimentos para o reajuste e a revisão das tarifas;

V - aos direitos, garantias e obrigações do poder concedente e da concessionária, inclusive os relacionados às previsíveis necessidades de futura alteração e expansão do serviço e consequente modernização, aperfeiçoamento e ampliação dos equipamentos e das instalações;

VI - aos direitos e deveres dos usuários para obtenção e utilização do serviço;

VII - à forma de fiscalização das instalações, dos equipamentos, dos métodos e práticas de execução do serviço, bem como a indicação dos órgãos competentes para exercê-la;

VIII - às penalidades contratuais e administrativas a que se sujeita a concessionária e sua forma de aplicação;

IX - aos casos de extinção da concessão;

X - aos bens reversíveis;

XI - aos critérios para o cálculo e a forma de pagamento das indenizações devidas à concessionária, quando for o caso;

XII - às condições para prorrogação do contrato;

XIII - à obrigatoriedade, forma e periodicidade da prestação de contas da concessionária ao poder concedente;

XIV - à exigência da publicação de demonstrações financeiras periódicas da concessionária; e

XV - ao foro e ao modo amigável de solução das divergências contratuais.

Parágrafo único. Os contratos relativos à concessão de serviço público precedido da execução de obra pública deverão, adicionalmente:

I - estipular os cronogramas físico-financeiros de execução das obras vinculadas à concessão; e

II - exigir garantia do fiel cumprimento, pela concessionária, das obrigações relativas às obras vinculadas à concessão".