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INCONGRUÊNCIAS SOBRE DEVER CONSTITUCIONAL DE FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES

O Direito é ciência humana, dinâmica por excelência, e evolui a partir das mutações operadas nas suas matrizes de ordem cultural, econômica e social. Empiricamente, as premissas que sustentam determinada tese estão frequentemente submetidas aos efeitos das mutações havidas nas várias facetas da sociedade, o que abre flanco para superação da concepção outrora reputada acertada.  

Nesse contexto, tal como a lei, a solução jurídica padronizada (precedente) ruma à obsolescência à medida que as relações sociais evoluem, o que pode se configurar pelo aspecto social ou sistêmico, como observa Eddie Parish Silva:

"Um precedente deixa de ter congruência social e consistência sistêmica quando se torna controverso, ensejando distinções inconsistentes e críticas doutrinárias, assim como se torna incongruente e inconsistente quando uma nova concepção geral do direito, uma nova tecnologia, uma mudança nos valores sociais ou uma substancial alteração no mundo dos fatos impõem sua superação.
A incongruência social é uma relação de incompatibilidade entre as normas jurídicas e as expectativas dos cidadãos, de maneira que a manutenção de um precedente injusto pode até garantir a estabilidade do sistema, mas afeta a segurança jurídica do cidadão que passa a enxergar o Poder Judiciário com descrédito, não identificando nele o reconhecimento das expectativas da sociedade. Para o leigo, a previsibilidade do sistema está diretamente ligada a um equilíbrio e compatibilidade entre as normas jurídicas e as normas da vida real.
Já a inconsistência sistêmica é a desarmonia entre as diversas normas que habitam o sistema.
Quando entre elas há contradições, incompatibilidades, desajustes, a norma perde a sua consistência, deixando o cidadão sem saber ao certo em qual delas confiar." [1]

É imperioso, portanto, que os tribunais superiores, pela função que exercem no campo da administração da justiça, mantenham-se atentos a esses movimentos, inclusive como forma de legitimação da sua atuação, se o caso, adequando seus posicionamentos às novas realidades consolidadas, o que, na prática, dá-se por meio do reconhecimento da superação dos seus precedentes.

É o que ensina Luiz Guilherme Marinoni:
"Tendo em conta a necessidade de desenvolver o direito a fim de mantê-lo sempre fiel à necessidade de sua congruência social e coerência sistêmica, um sistema de precedentes precisa prever técnicas para sua superação — seja total (overruling), seja parcial. (...) A superação de um precedente (overruling) constitui a resposta judicial ao desgaste da sua congruência social e coerência sistêmica. Quando o precedente carece desses atributos, os princípios básicos que sustentam a regra do stare decisis — segurança jurídica e igualdade — deixam de autorizar a sua replicabilidade (replicability), com o que o precedente deve ser superado. Essa conjunção constitui a norma básica que rege a possibilidade de superação de precedentes." [2]

Pois bem.

Dispõe o artigo 93, IX, da Carta Política de 1988, no ponto que importa para este estudo, que todas as decisões proferidas pelos órgãos do Poder Judiciário devam ser fundamentadas, sob pena de nulidade. Cuida-se de Norma que impõe ao juiz — lato sensu — expor as premissas que o levaram a decidir de determinado modo.

Mas, afinal, quais seriam o conteúdo e o alcance do conceito de "fundamentação da decisão" erigido pelo aludido comando?

No ano de 2010, o Supremo Tribunal Federal assentou seu posicionamento sobre o tema. No âmbito do julgamento do recurso autuado sob o nº AI 791.292 QO-RG/PE, relator o ministro Gilmar Mendes, reconhecida a repercussão geral da matéria, por maioria — vencido o ministro Marco Aurélio Mello —, concluiu a Suprema Corte por reafirmar sua jurisprudência iterativa e, assim, consolidar a compreensão de que a exposição dos motivos que conduziram à conclusão exarada na decisão seria suficiente ao preenchimento da tal determinação constitucional, dispensando-se, nesse quadro, o enfrentamento individualizado de todos os argumentos expostos pelas partes.

A propósito, o acórdão então proferido restou assim ementado:

"Questão de ordem. Agravo de Instrumento. Conversão em recurso extraordinário (CPC, artigo 544, §§3° e 4°). 2. Alegação de ofensa aos incisos XXXV e LX do artigo 5º e ao inciso IX do art. 93 da Constituição Federal. Inocorrência. 3. O artigo 93, IX, da Constituição Federal exige que o acórdão ou decisão sejam fundamentados, ainda que sucintamente, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas, nem que sejam corretos os fundamentos da decisão. 4. Questão de ordem acolhida para reconhecer a repercussão geral, reafirmar a jurisprudência do Tribunal, negar provimento ao recurso e autorizar a adoção dos procedimentos relacionados à repercussão geral" [3]

Sucede que o dispositivo em análise prevê o que segue:

"Artigo 93. (...)
IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;".

Perceba-se: não cuida o mesmo de estipular as diretrizes a serem seguidas para a edificação de uma decisão judicial adequadamente fundamentada, concluindo-se, desse modo, tratar-se de um exemplo claro de dispositivo constitucional de caráter "aberto" — como sói ocorrer no Texto Magno —, cujo correto e completo sentido é obtido somente a partir da adoção do método integrativo de interpretação, de sorte que se obtém que o entendimento paradigmático ora abordado, necessariamente, fora influenciado por concepção externa ao próprio preceito que se pretendia decifrar.

Pela pertinência, vale conferir o texto artigo 131 da Lei Federal nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 — Código de Processo Civil revogado, que assim prescrevia:
"Artigo 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento."

Quando da vigência daquela lei adjetiva, instado a se pronunciar sobre a correta interpretação a ser dada ao comando indigitado, pronunciou-se o Superior Tribunal de Justiça no sentido de que se tratava de normativo que conferia ao juiz liberdade para adotar a solução jurídica entendida como cabível no caso concreto diante das provas exibidas nos autos, exigindo-se-lhe, nesse enredo, que a conclusão exarada na decisão fosse precedida de motivação com ela compatível, afigurando-se despiciendo o exame individualizado de todos os argumentos articulados pelos litigantes. Concebia-se, então, o assim nominado princípio do livre convencimento motivado — ou da persuasão racional.

Note-se: foi justamente essa a interpretação emprestada pelo STF ao texto do artigo 93, IX, da Lei Maior, de modo que se tem identificada sua inspiração direta, como bem constatam Cláudio Penedo Madureira e Francisco Vieira Lima Neto:

"É que o posicionamento pretoriano que se formou no sentido da desnecessidade do enfrentamento das razões das partes tem por fundamento o princípio do livre convencimento do juiz, extraído pelo Superior Tribunal de Justiça do artigo 131 do código de 1973, que prescrevia, na vigência do regime processual pretérito, que 'o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes', devendo 'indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.'" [4]

E há que se reconhecer: trata-se de posicionamento justificável, à medida que baseado na dicção expressa da lei processual vigente à época e na própria doutrina conjuntural.

Contudo, de lá para cá, operou-se uma profunda transposição de ideias no campo de estudo do tema, fomentada principalmente pelos desdobramentos da própria aplicação da jurisprudência aludida.

Diretamente ao ponto, passou-se a notar que, o julgador da causa, uma vez "autorizado" pela jurisprudência do Excelso Pretório, ao negligenciar questões de fato e de direito suscitadas pelas partes, acaba, a rigor, ignorando o resultado do exercício da ampla defesa e do contraditório (artigo 5º, LV, da CR/88). Ou seja, segundo a concepção contemporânea, o modelo de prestação jurisdicional então reputado válido à luz da Carta Política de 1988 inviabiliza a consumação do gozo de garantias processuais constitucionais — portanto, invioláveis ­­—, quadro em que esses sagrados baluartes do Estado de Direito restam rebaixados ao status de mera formalidade procedimental, criando-se, assim, um ambiente de contraposição normativa.

A experiência de implementação do tal entendimento jurisprudencial possibilitou a conclusão de que a ampla defesa e o contraditório somente se realizam efetivamente quando têm seu fruto objetivamente considerado pela decisão [5] — mesmo que para ser rechaçado —, de maneira que, visando-se a coexistência harmônica entre os direitos e garantias de ordem processual, passou-se a compreender que o artigo 93, IX, da Lei Maior deva ser admitido como obrigação atribuída ao julgador de enfrentamento de todos os argumentos ventilados pelas partes — desde que capazes de infirmar a conclusão cogitada —, sob pena de negativa de prestação jurisdicional.

A doutrina é efetivamente unânime nesse sentido, sendo um dos exponentes desse posicionamento o insigne jurista Humberto Theodoro Júnior, que leciona:

"No processo justo, instituído e garantido pelo Estado democrático, o contraditório deve ser completo, desde o diálogo da propositura da demanda até a resposta jurisdicional. Como o acesso à justiça há de ser pleno (CF, artigo 5º, XXXV), pois não é dado ao litigante praticar a autotutela mediante suas próprias forças, nenhuma questão relevante para a justa composição do litígio pode deixar de ser apreciada e ponderada pelo juiz. A resposta do órgão judicial não é arbitrária, nem mesmo discricionária. Tem de ser 'suficiente e adequada' diante das pretensões contrapostas, devendo a motivação do decisório abarcar as questões de fato e de direito integrantes do litígio. As garantias do processo e da tutela jurisdicional constituem direitos fundamentais assegurados pela Constituição, com destaque ao dever de proferir decisões adequadamente fundamentadas, sob pena de nulidade do julgamento (CF/1988, artigo 93, IX)."

Grave não é apenas a falta de resposta a um pedido do autor ou a uma defesa do réu; é também igualmente grave a análise incompleta dos fundamentos das pretensões deduzidas em juízo. Nesta última situação, há uma resposta judicial àquelas pretensões, mas uma resposta imperfeita e insuficiente para cumprir o dever constitucional de fundamentação imposto ao Judiciário em todas as suas decisões.

Se decidir aquém da demanda, reduzindo indevidamente o pedido ou os fundamentos postos pelas partes, ou por algumas delas, o juiz infringirá a garantia constitucional da ação e de acesso à justiça (CR/1988, artigo 5º, XXXV), como adverte Cândido Dinamarco.

Decorre diretamente da garantia do devido processo legal (CR/1988, artigo 5º, LIV) a obrigatoriedade de que a motivação da decisão judicial (CR/1988, artigo 93, IX), tenha extensão e profundidade para “justificar suficiente e racionalmente o deslinde dado à causa”. E isto só acontecerá quando, no dizer Taruffo, a sentença ostentar a completeza da motivação [6].

Seguem a mesma linha, dentre outros, Luiz Guilherme Marinoni [7], Alexandre Freitas Câmara [8], Nelson Nery Júnior [9] e Fredie Didier Jr [10].

Esse movimento, na realidade, representara um rompimento com a Teoria do Processo como Relação Jurídica, modelo em que o juiz é alçado a uma espécie de posto superior de discricionariedade.

Pela nova ótica, a solução jurídica deve provir do efetivo diálogo entre os sujeitos do processo, refletindo-se na decisão o poder de influência das partes a partir do exercício das garantias processuais. Cuida-se da nominada "Teoria Constitucionalista do Processo", tema muito bem explorado por Gabriela Oliveira Freitas e Sérgio Henriques Zandona Freitas:

"Destaque-se que a compreensão ora exposta acerca do instituto em análise decorre da instauração do Estado democrático de Direito, que modifica o conceito de processo, não podendo mais ser compreendido como uma relação jurídica entre as partes, na qual um excesso de poderes é conferido ao órgão julgador, diante da justificativa de busca pela justiça e paz social, dentre outros escopos metajurídicos.
Nessa nova conjuntura, o processo passa a ser compreendido como um procedimento constitucionalizado realizado em contraditório entre as partes, com o objetivo principal de garantir o efetivo exercício dos direitos fundamentais, ou seja, a partir da Teoria Constitucionalista do Processo.
(...)
Por tratar o processo como uma relação jurídica entre as partes, colocando o magistrado em posição superior, o direito baseado na mencionada teoria permite que o magistrado, na busca pela pacificação social e visando escopos metajurídicos, atue de forma discricionária e solipsista, desprezando a participação das partes no processo, o que é totalmente incompatível com o Estado democrático de Direito.
(...)
Desse modo, entende-se que a atividade jurisdicional deve ser compreendida a partir da Teoria Constitucionalista do Processo e, por isso, na valoração das provas, a atividade do julgador não é livre, estando vinculada ao contraditório, que permite a inclusão das partes no debate processual.
(
...)
Tem-se, assim, que o processo deve se aproximar do texto constitucional, sendo um verdadeiro instrumento de efetivação dos direitos fundamentais, o que justifica, nessa conjuntura, a adoção da Teoria Constitucionalista do Processo, que deveria ser seguida pela legislação brasileira atual em sua conjuntura plena.
Desse modo, exige-se que o provimento jurisdicional seja construído pela participação dos afetados pela decisão final, em simétrica paridade e mediante o exercício do contraditório e da ampla defesa, de modo que sejam as partes capazes de limitar e fiscalizar a atividade do julgador e seu dever de fundamentar suas decisões." [11]

E as mudanças não se resumem ao contexto doutrinário.

Com efeito, não se pode ignorar que o Codex Processual Civil de 2015 constitui flagrante desdobramento dessa mudança de paradigmas, tendo a única base legal para defesa da permanência do livre convencimento motivado enquanto conceito aplicável no ambiente de administração da justiça nacional dado lugar a preceito que impele a adoção da técnica de "fundamentação substancial" da decisão — como bem se observa do seu artigo 489, §1º [12].

Isso tudo para demonstrar que as premissas em que se assentou o posicionamento então sedimentado pelo STF não subsistem.

Inquestionavelmente, as teorias e a norma infraconstitucional que ensejaram a formação do aludido paradigma encontram-se efetivamente superados. Ou seja, em alusão às considerações iniciais aqui alinhavadas, o precedente vinculante em análise não guarda mais coerência com o sistema jurídico que deveria forjá-lo e sustentá-lo, circunstâncias que tornam imprescindível o reconhecimento da sua superação.

Marchando-se para a conclusão, eis trecho do posicionamento – vencido e isolado — externado pelo ministro Marco Aurélio no âmbito do julgamento do recurso autuado sob o nº ADI 791.292 QO-RG/PE:

"Presidente, reporto-me ao voto proferido no caso antecedente e ressalto cumprir ao Judiciário emitir entendimento explícito sobre todas as causas de defesa, sobre todos os pedidos formulados pela parte. O órgão judicante não está compelido a fazê-lo apenas quando o articulado se mostre incompatível com o entendimento já adotado no pronunciamento judicial. Lembro-me de que certa vez me deparei, em nota de rodapé de uma publicação do Código de Processo Civil, com um precedente que considerei perigosíssimo. Segundo assentado, o juiz não é um perito e, portanto, não precisa se manifestar sobre todas as matérias de defesa veiculadas pela parte. Digo que o juiz é um perito na arte de proceder e na de julgar e que não existe prestação jurisdicional aperfeiçoada se não se examinarem, até para declarar a improcedência, todos os pontos enfocados pela parte." [13]

Cremos seja o caso de se resgatá-lo.

[1] SILVA, Eddie Parish. Os Efeitos da Superação de Precedentes. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito, v. 24, nº 26, 2014. Disponível em: https://cienciasmedicasbiologicas.ufba.br/index.php/rppgd/article/viewFile/11926/9418. Acesso em: 7/4/2021

[2] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado. 5 ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2019, p. 1055.

[3] AI 791292 QO-RG, relator(a): GILMAR MENDES, julgado em 23/06/2010, REPERCUSSÃO GERAL  MÉRITO DJe-149 DIVULG 12-08-2010 PUBLIC 13-08-2010 EMENT VOL-02410-06 PP-01289 RDECTRAB v. 18, nº 203, 2011, p. 113-118.

[4] MADUREIRA, Claudio Penedo; NETO, Francisco Vieira Lima. O CPC-2015 e o Princípio do Livre Convencimento. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito–PPGDir./UFRGS, v. 14, nº 1, 2019. Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/ppgdir/article/view/91232/54762. Acesso em: 7/4/2021.

[5] Nessa toada, GAJARDONI leciona: "o contraditório tem estreita relação com a construção da decisão, emancipando-se da mera condição de ato prévio à sua emanação. A manifestação das partes, enquanto expressiva da realização do contraditório, não é mais simplesmente um ato procedimental, refletindo também na fundamentação da decisão, transmudando-se num dos itens do epílogo jurisdicional". (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Execução e Recursos: comentários ao CPC 2015, 2 ed., Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, v. 3, 2018, p. 1094)

[6] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 52 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2019, v. 3, p. 1151/1152.

[7] Leciona MARINONI: “A apreciação que o órgão jurisdicional deve fazer dos fundamentos levantados pelas partes em seus arrazoados tem de ser completa (artigo 489, §1º, IV, CPC). Vale dizer, a motivação da decisão deve ser completa — razão pela qual cabem embargos declaratórios quando for omitido "ponto sobre o qual devia se pronunciar o juiz de ofício ou a requerimento" (artigo 1.022, II, CPC). A omissão judicial a respeito de ponto sobre o qual devia pronunciar-se o órgão jurisdicional constitui flagrante denegação de justiça. Viola o direito fundamental à tutela jurisdicional (artigo 5º, XXXV, CF), o direito ao contraditório como direito de influência (artigos 5º, LV, CF, e 9º e 10º, CPC) e o correlato dever de fundamentação como dever de diálogo (artigo 93, IX, CF, 11 e 489, §1º, IV, CPC). O parâmetro a partir do qual se deve aferir a completude da motivação das decisões judiciais passa longe da simples constância na decisão do esquema lógico-jurídico mediante o qual o juiz chegou à sua conclusão. Partindo-se da compreensão do direito fundamental ao contraditório como direito à participação, como direito a convencer o órgão jurisdicional (artigos 5º, LV, CF, 9º e 10º, CPC), a completude da motivação só pode ser aferida em função dos fundamentos arguidos pelas partes (aí entendidos como todos os argumentos capazes de infirmar, em tese, a conclusão adotada no julgado, artigo 489, §1º, IV, CPC), na medida em que o direito fundamental ao contraditório impõe o dever de o órgão jurisdicional considerar seriamente as razões apresentadas pelas partes em seus arrazoados (...)”. (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado. 5 ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2019, p. 1150/1151.)

[8] Assim adverte CÂMARA: "A fundamentação da decisão judicial é o elemento consistente na indicação dos motivos que justificam, juridicamente, a conclusão a que se tenha chegado. Este é um ponto essencial: fundamentar é justificar. É que a decisão precisa ser legitimada democraticamente, isto é, a decisão precisa ser constitucionalmente legítima. Para isso, é absolutamente essencial que o órgão jurisdicional, ao decidir, aponte os motivos que justificam constitucionalmente aquela decisão, de modo que ela possa ser considerada a decisão correta para a hipótese. E esses fundamentos precisam ser apresentados substancialmente. Afinal, se os direitos processuais fundamentais (como o direito ao contraditório ou o direito à isonomia) têm de ser compreendidos em sua dimensão substancial — e não em uma meramente formal, o mesmo deve se aplicar ao direito fundamental a uma decisão fundamentada. (...) Exige-se, portanto, uma fundamentação verdadeira, suficiente para justificar a decisão, de modo a demonstrar que ela é constitucionalmente legítima. E daí se extrai a íntima ligação que há entre o princípio do contraditório e o da fundamentação das decisões. É que, sendo a decisão construída em contraditório através da comparticipação de todos os sujeitos do processo, torna-se absolutamente fundamental que a decisão judicial comprove que o contraditório foi observado, com os argumentos deduzidos pelas partes e os suscitados de ofício pelo juiz, todos eles submetidos ao debate processual, tendo sido considerados na decisão. Ademais, sempre vale recordar que um dos elementos formadores do princípio do contraditório é o direito de ver argumentos considerados (que a doutrina alemã chama de Recht auf Berückisichtingung). Pois só se poderá saber no caso concreto, se os argumentos da parte foram levados em consideração na decisão judicial — e, portanto, se o contraditório substancial foi observado — pela leitura dos fundamentos da decisão. Daí a intrínseca ligação entre contraditório e fundamentação das decisões, por força da qual é possível firmar que, sendo o processo um procedimento em contraditório, torna-se absolutamente essencial que toda decisão judicial seja substancialmente fundamentada". (CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 5 ed., São Paulo: Atlas, 2019, p. 280/281).

[9] Segundo NERY JÚNIOR, "afirma-se hoje que o juiz também participa do contraditório, pois deve demonstrar que as alegações das partes, somadas às provas produzidas, efetivamente interferiram no seu convencimento. A contraposição autor-réu só faz sentido se submetida à apreciação de um terceiro imparcial". (NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil comentado. 17 ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2018, p. 1320).

[10] Para DIDIER, "cabe [ao juiz] examinar os pontos controvertidos de fato e de direito. O juiz, sobretudo no modelo cooperativo do processo, tem uma posição de diálogo e deve enfrentar as questões de fato e de direito. As partes têm o direito de influenciar e de participar do convencimento do juiz. Este, por sua vez, tem o dever de respeitar o contraditório (artigo 9º, CPC) e de consultá-las, ainda quando se depare com questão que deva ser conhecida de ofício (art. 10, CPC). Ora, se as partes têm o direito de participar do convencimento do juiz e este tem o dever de consultá-las, é certo que o juiz deve enfrentar as alegações apresentadas (artigo 489, §1º, CPC). De nada adianta o juiz exercer o dever de consulta, se não tiver de fundamentar a respeito das questões de fato e de direito contidas no processo. O contraditório seria meramente formal, não havendo a efetiva garantia conferida constitucionalmente". (DIDIER JR., Fredie / CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil: o processo civil nos tribunais, recursos, ações de competência originária de tribunal e querela nullitatis, incidentes de competência originária de tribunal. 15 ed. reform., p. 298/299, Salvador: Ed. JusPodivm, 2018).

[11] FREITAS, Gabriela Oliveira; FREITAS, Sérgio Henriques Zandona. A superação do livre convencimento motivado no Código de Processo Civil de 2015: uma análise do dever de fundamentação das decisões. Revista de Estudos Jurídicos UNA, v. 3, n. 1, p. 247, 2016. Disponível em: http://revistasgraduacao.una.emnuvens.com.br/rej/article/view/50/49. Acesso em: 7/4/2021.

[12] "Artigo 489. (...) §1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento". (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm; Acesso em: 10/02/2022)