TOKENS NÃO-FUNGÍVEIS E SUAS IMPLICAÇÕES NA RELAÇÃO DE CONSUMO
Em um mundo cada vez mais digital, a difusão dos tokens não-fungíveis (NFTs) certamente provoca, e continuará provocando, dúvidas a respeito de seu conceito, da sua dinâmica de funcionamento e da solução dos conflitos que possam advir de sua utilização, inclusive pela ótica jurídica e contenciosa.
Como passo inicial, e para que o leitor tenha o correto entendimento do tema, podemos conceber o NFT como um sistema de registro que valida a propriedade de um bem, ou seja, um certificado digital de autenticidade. Pode ser apenas o recibo de propriedade de um ativo, ou o ativo em si, a depender do que for convencionado entre quem faz a transação.
Seja o ativo ou apenas o recibo de propriedade, o NFT tem clara singularidade, pois é digitalmente único e validado por uma rede blockchain. Há, assim, um aspecto de escassez do bem, enquanto seu conteúdo econômico vem justamente da certeza da propriedade.
Ainda do campo conceitual, decorre uma dualidade que desde já vale apontar e esclarecer: ao se adquirir um NFT, não necessariamente se adquire a propriedade intelectual de um determinado produto. E tudo porquanto, o comprador pode obter (i) apenas o item em si, sem o direito autoral sobre a sua criação, o que veda a exploração econômica e o direito irrestrito de editar, exibir, divulgar, publicar ou reproduzir, assemelhando-se à aquisição de um item de colecionador, que não pode ser livremente manipulado; ou (ii) o item em si e o respectivo direito autoral, daí decorrendo o amplo direito de explorar o ativo como bem entender, ressalvadas as limitações da legislação autoral aplicável.
O céu é o limite para as possibilidades de uso do NFT, mas hoje o que temos de mais palpável é a utilização desta tecnologia em obras de arte ou propriedade intelectual (físicas ou virtuais, como uma escultura digital ou tokenizada, uma performance de balé, uma canção em plataforma de streaming, uma publicação histórica em uma rede social, um meme viralizado ou mesmo um raro rótulo digital de uma determinada cerveja), no universo dos games (itens colecionáveis que podem ser usados em um game, como armaduras, armas, acessórios etc.) ou no campo registral e de autenticação (a tokenização da escritura de propriedade de um imóvel, registros civis, ou a certificação acadêmica por meio de um badge — ou seja, um registro respaldado em tecnologia blockchain, a ser replicado em rede social.
E não podemos sequer imaginar as possibilidades infinitas de uso do NFT no metaverso, sem prejuízo da utilização do NFT como um símbolo de status social em "comunidades NFT", e do crescimento vertiginoso dos ramos que correm em paralelo ao mercado de tokens não-fungíveis, como as plataformas de streaming para músicas em NFT, ou mesmo telas e monitores para a exibição do token enquanto pintura física tokenizada ou imagem digital.
Não se ignora que o token não-fungível é tecnologia nova, ainda de visibilidade limitada, e que carece não só de regulação específica, mas também de estudos pela ótica jurídica. Mas, de uma forma ou de outra, não vemos como se escapar à aplicação das normas comerciais, civis e consumeristas para se solucionar a disputa que daí possa surgir, sobretudo daquelas que, dentro do Direito Civil, versem sobre bens infungíveis, dada a singularidade inerente ao NFT.
É importante determinar se a transação possui caráter estritamente civil, ou se toma contornos de consumo, a atrair dois modelos legais distintos para lidar com a controvérsia.
É o caso ainda de se pensar na seguinte situação: uma imagem digital em NFT é criada sob encomenda do adquirente, e o criador, detentor do direito autoral, aliena a obra a tal comprador, surgindo daí um conflito. Trata-se, a nosso ver, de relação jurídica de caráter civil.
Por outro lado, se os NFTs colecionáveis são produzidos em larga escala e oferecidos livremente ao consumidor — como exemplo, os tokens não-fungíveis da liga norte-americana de basquetebol (NBA)[1] —, pode se tratar de uma relação de consumo a atrair as normas consumeristas.
É dos regimes jurídicos, mas não apenas deles, que podemos desaguar em dúvida a respeito do órgão jurisdicional competente que apreciará a demanda a respeito da comercialização do token não-fungível. O silêncio do smart contract ou das plataformas intermediadoras sobre a competência potencializa o questionamento.
A comercialização conflituosa de um NFT, com aspecto consumerista, vista pelo caráter de responsabilidade civil, pode resultar em demanda que deveria ser proposta no foro do domicílio do autor (CDC, artigo 101, I). Ou, em se tratando de transação de um token na qual o consumidor tenha domicílio no Brasil — e o criador ou comercializador do token resida no exterior —, a jurisdição brasileira aparenta ser a competente para julgar e processar a ação decorrente do insucesso da transação (CPC, artigo 22, II). Isso, sem prejuízo das demais regras de competência previstas no próprio CPC e na legislação correlata sobre o tema.
Ainda sob o ponto de vista das relações de consumo, outra questão bastante sensível e que demandará uma atenção especial diz respeito à forma de contratação do NFT.
A transação de um NFT está alicerçada em um smart contract, seja ele mais simples, como termos de uso, ou mais complexos, com regulamentações específicas e sofisticadas. A ideia é ótima, se considerarmos que se trata de um mecanismo dinâmico e seguro, que conta com o trunfo da chamada “autoexecução”, no sentido de que a relação jurídica se concretiza somente quando o smart contract é assinado digitalmente e quando são cumpridas todas as condições contratuais; por consequência, o descumprimento implica necessariamente na execução das penalidades previstas no mesmo contrato, mediante comandos digitais automáticos.
No entanto, a se tratar de relação de consumo, o smart contract deverá necessariamente atender os requisitos da lei consumerista. Assim, a desburocratização da transação não pode ser confundida com a ausência de um instrumento contratual robusto que detalhe o objeto da negociação, os direitos e deveres das partes e esteja alinhado, frise-se vez mais, às normas aplicáveis à espécie.
Diante de tantas especificidades e novidades, cabe aos operadores do direito não apenas a conscientização sobre os conceitos e o funcionamento da tecnologia do NFT, mas também a busca constante por soluções criativas dentro do universo jurídico, principalmente na prática contenciosa, que se valham do ordenamento e até dos princípios para resguardar os direitos a que o cidadão faz jus.
Uma coisa é certa: tanto os participantes da relação contratual como os operadores do direito têm o dever, respectivamente, de, antes de realizar a transação ou aplicar o direito no caso concreto, estudar e se aprofundar sobre o objeto da aquisição e todos os elementos que circundam essa relação comercial.
Novos tempos exigem novas perspectivas, visões e conhecimento.
[1] https://nbatopshot.com/ - consultado em 16/03/2022.