EXPRESSÃO DE UM COSTUME INTERNACIONAL SOBRE OS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS
A divisão entre países exportadores e importadores de capital foi acentuada durante as décadas de 1950 a 1970, marcada pelo movimento de independência afro-asiático. A partir da segunda metade do século 20, os países africanos e asiáticos juntaram-se aos latino-americanos na aquisição de soberanias após longo período colonial. Os movimentos de independência concentraram na defesa do reconhecimento da igualdade entre os Estados, da auto-determinação dos povos e da independência econômica de suas nações. Frente a essa realidade, tais nações independentes atuaram conjuntamente via resoluções na Assembleia Geral das Nações Unidas, constituindo-se o principal fórum de defesa dos seus interesses.
O processo de independência das nações afro-asiáticas gerou uma alteração significativa na configuração da Organização das Nações Unidas (ONU). O número de países independentes triplicou em poucas décadas, alterando a inicial configuração de 51 nações signatárias em 1945. Em 1960, a ONU já possuía 99 membros. Em 1970, alcançou 132 e, em 1980, 154 membros. Atualmente, a ONU é composta por 193 Estados-membros [1].
Ciente da estrutura rígida do número de membros do Conselho de Segurança entre permanentes e não-permanentes, foi na Assembleia Geral que a mudança foi sentida, uma vez que a sua estrutura assenta-se sobre a regra de um voto por Estado. Dessa forma, os pleitos por uma maior defesa dos direitos das nações em desenvolvimento, tais como o reconhecimento da independência econômica, o direito de regular a entrada de capital estrangeiro e de realizar expropriações conforme o interesse público nacional, foram reverberadas nessa instância internacional.
Dessa forma, pode-se citar as três resoluções marcaram as décadas de 1960 e 1970 que abordaram a questão dos investimentos estrangeiros em prol das ex-colônias importadoras de capital:
— Resolução 1803 (XVII) referente à soberania permanente sobre os recursos naturais (Permanent Sovereignty over Natural Resources), de 14 de dezembro de 1962 [2];
— Resolução 3201 (S-VI) referente ao estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica Internacional (Establishment of a New International Economic Order), de 1º de maio de 1974, tendo sido aprovada em mesma data com o programa de ação conforme a Resolução 3202 (S-VI) [3];
— Resolução 3281 (XXIX) que adota a Carta de Direitos e Deveres Econômicos dos Estados (Charter of Economic Rights and Duties of States), de 12 de dezembro de 1974 [4].
A primeira questão levantada pelos países em desenvolvimento foi a soberania permanentes dos recursos naturais em seus territórios. O tema envolve o reconhecimento da soberania no plano econômico, a necessidade de seu caráter permanente, e a relevância dos recursos naturais para as nações em desenvolvimento, por se tratar, na grande maioria dos casos, as únicas fontes econômicas existentes.
Em 12 de dezembro de 1958, por meio da Resolução 1.314 (XIII), foi estabelecida uma comissão das Nações Unidas sobre o tema da soberania permanente sobre os recursos naturais, cujo texto foi debatido durante os anos de 1960 a 1962. Ao final, a resolução foi aprovada por 87 votos, tendo dois contrários e 12 abstenções.
O tema tratado na Resolução 1.803 (XVII) fundamenta-se como produto do princípio da auto-determinação dos povos, cujo preâmbulo assim destaca o reconhecimento do direito inalienável de todos os Estados de dispor sobre suas riquezas naturais conforme os interesses das suas próprias nações, em respeito à independência econômica dos países [5].
A partir disso, a defesa por uma soberania dos recursos naturais envolve o reconhecimento de uma independência econômica, ultrapassando a situação de soberania formal ou jurídica ao buscar por uma materialidade do exercício soberano, principalmente aos Estados em desenvolvimento.
O parágrafo 2º da Resolução 1.803 (XVII) declara que a exploração, desenvolvimento e disposição dos recursos, bem como a importação de capital estrangeiro necessário para tais objetivos, será realizado em conformidade com as regras e condições que os povos e nações definirem. Ou seja, há um forte apelo pela regulamentação sobre a exploração dos recursos naturais em bases nacionais do Estado detentor dos recursos. O entendimento é também compartilhado no parágrafo 3º, ao definir a hipótese de autorização concedida, tanto a regulação do capital importado quanto aos lucros advindos, conforme lei nacional e internacional.
O parágrafo 4º trata da possibilidade de nacionalização, expropriação ou requisição, que deve obedecer às razões de interesse público, segurança ou interesse nacional. Além disso, será pago ao proprietário uma compensação apropriada (appropriate compensation), conforme as regras do Estado expropriador e o Direito Internacional. Caso haja uma controvérsia sobre a compensação, deverá ser exaurida a jurisdição nacional. À exceção, na hipótese de acordo entre os Estados ou outras partes relacionadas (sem se restringir aos sujeitos do Direito Internacional Público, incluso os investidores estrangeiros) a solução da disputa pode ser realizada via arbitragem ou adjudicação internacional.
O parágrafo 4º é a parte essencial na Resolução 1.803 (XVII) por apresentar uma redação conciliatória entre países exportadores e importadores de capital. O texto reconhece a necessidade de observar a legislação interna em caso de nacionalização ou expropriação. Quanto à solução de conflitos, há a regra de exaurir a instância doméstica ou, na hipótese de acordo entre Estados soberanos e outras partes envolvidas, pode-se valer da arbitragem ou tribunal internacional [6].
O parágrafo 5º aborda a necessidade de respeito mútuo e de igualdade soberana, ao passo que o parágrafo 8º trata do princípio da boa-fé nos acordos sobre investimentos estrangeiros.
Muito se discute se a resolução, apesar do seu caráter não-obrigatório, poderia ser considerada como uma fonte de Direito Internacional consuetudinário. Ponto relevante é a manifestação por sua aprovação por 87 países em 1962, o que comprova um certo reconhecimento de prática aceita pelos Estados (opinio juris). Além disso, suas disposições apresentam um caráter geral a regular os investimentos internacionais, na ausência de acordos específicos, como BITs ou FTAs, o que também não invalidaria o texto da resolução que reconhece, por exemplo, soluções internacionais desde que acordadas entre as partes envolvidas.
Em síntese, a Resolução 1.803 reconhece os princípios da auto-determinação dos povos, da independência econômica, a regulação do capital estrangeiro pelas regras nacionais do Estado receptor do investimento, a prevalência da jurisdição nacional a decidir sobre investimentos, caso ausente acordo a permitir jurisdição por arbitragem ou tribunal internacional e o reconhecimento da igualdade soberana e da boa-fé dos acordos internacionais.
Em especial, conforme apresentado no parágrafo 4º da Resolução 1.803 (XVII), o consenso foi alcançado na redação de uma compensação apropriada (appropriate compensation), devendo as partes se valerem do direito doméstico do Estado importador de capital a regular tal processo. Somente em caso de acordo prévio entre as partes, estas poderiam se utilizar da arbitragem ou adjudicação internacional [7].
Por sua vez, as resoluções 3.201 (S-VI), referente ao estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica Internacional, e 3.202 (S-VI), seu programa de ação, baseiam-se na forte divisão entre países desenvolvidos e em desenvolvimento (Norte-Sul), no seio de um contexto de oposição política Leste-Oeste durante a Guerra Fria (1946-1991). Trata-se de um maior posicionamento do G77 e do Movimento dos Países Não-Alinhados. Por fim, a Resolução 3.281 (XXIX) que adota a Carta de Direitos e Deveres Econômicos dos Estados, de 12 de dezembro de 1974, teve seu início a partir da Resolução 45 (III) da Unctad de 1972, que estabeleceu um grupo de trabalho a debater sobre os direitos e obrigações econômicas dos Estados. Tais resoluções, ao contrário de 1962, não obtiveram consenso majoritário e a grande parte dos países exportadores de capital se abstiveram ou votaram contra essas resoluções. Em consequência, houve pouca repercussão quanto a sua assimilação no sistema jurídico internacional [8].
O caráter de norma consuetudinária internacional de 1962 aplicada aos investimentos estrangeiros, aprovada pela resolução de 1962, é reforçado pela decisão da Corte Internacional de Justiça no caso Armed Activities on the Territory of the Congo (Democratic Republic of the Congo v. Uganda) [9].
Dessa forma, observa-se uma reconhecida evolução jurídica internacional em reconhecer a soberania dos países sobre seus recursos naturais, principalmente aqueles em desenvolvimento que adquiriram sua condição de sujeitos de Direito Internacional após longo período de colonização. A redação conciliatória entre interesses divergentes, a prevalência da jurisdição doméstica, a possibilidade de solução via arbitragem internacional em comum acordo entre as partes e o precedente na CIJ demonstram a existência do caráter consuetudinário da resolução de 1962.
[1] UNITED NATIONS. Growth in United Nations membership. Disponível em: <https://www.un.org/en/about-us/growth-in-un-membership>. Acesso em: 3 fev. 2022.
[2] UNITED NATIONS. General Assembly Resolution 1803 (XVII) of 14 December 1962. Permanent sovereignty over natural resources. Disponível em: <https://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/1803%28XVII%29>. Acesso em: 31 jan. 2022.
[3] UNITED NATIONS. General Assembly Resolution 3201 (S-VI) of 1st May 1974. Declaration on the Establishment of a New International Economic Order. Disponível em: <https://documents-dds-ny.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/071/94/IMG/NR007194.pdf?OpenElement>. Acesso em: 31 jan. 2022; UNITED NATIONS. General Assembly Resolution 3202 (S-VI) of 1st May 1974. Programme of Action on the Establishment of a New International Economic Order. Disponível em: <https://documents-dds-ny.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/071/95/IMG/NR007195.pdf?OpenElement>. Acesso em: 31 jan. 2022;
[4] UNITED NATIONS. General Assembly Resolution 3281 (XXIX) of 12 December 1974. Charter of Economic Rights and Duties of States. Disponível em: <https://documents-dds-ny.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/738/83/IMG/NR073883.pdf?OpenElement>. Acesso em: 31 jan. 2022.
[5] UNITED NATIONS. General Assembly Resolution 1803 (XVII) of 14 December 1962. Permanent sovereignty over natural resources. Disponível em: <https://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/1803%28XVII%29>. Acesso em: 31 jan. 2022.
[6] "4. Nationalization, expropriation or requisitioning shall be based on grounds or reasons of public utility, security or the national interest which are recognized as overriding purely individual or private interests, both domestic and foreign. In such cases the owner shall be paid appropriate compensation, in accordance with the rules in force in the State taking such measures in the exercise of its sovereignty and in accordance with international law. In any case where the question of compensation gives rise to a controversy, the national jurisdiction of the State taking such measures shall be exhausted. However, upon agreement by sovereign States and other parties concerned, settlement of the dispute should be made through arbitration or international adjudication" (UNITED NATIONS. General Assembly Resolution 1803 (XVII) of 14 December 1962. Permanent sovereignty over natural resources. Disponível em: <https://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/1803%28XVII%29>. Acesso em: 31 jan. 2022).
[7] "Paragraph 4 affirms that appropriate compensation shall be paid for expropriation, thereby confirming the customary international law requirement of compensation for expropriation. The US had proposed that appropriate compensation be defined as 'prompt adequate and effective compensation,' but this proposal was withdrawn because it lacked support. An amendment by USSR proposing that national law ought to govern the standard of compensation was defeated. Thus, the reference to 'appropriate compensation,' without elaboration, was a compromise between the US position and the position of states advocating a national treatment standard" (NEWCOMBE, Andrew; PARADELL, Lluís. Law and Practice of Investment Treaties. The Netherlands: Kluwer Law International, 2009, p. 26-27).
[8] "In contrast to the 1962 General Assembly Resolution 1803 on Permanent Sovereignty over National Resources, which recognized that there is an international law standard of compensation for expropriation ('appropriate compensation'), the Charter [of Economic Rights and Duties of States of 1974] provides that compensation for expropriation is to be determined in accordance with national laws and omits any reference to international law or a minimum international standard in determining compensation. The Charter, like the NIEO Declaration, was an assertion of national sovereignty by developing states. Although the Charter was adopted by an overwhelming majority as a result of the numerical preponderance of developing states in the General Assembly, most developed states either voted against its adoption or abstained from voting. In his influential arbitral award, Texaco Overseas Petroleum Co. (TOPCO) and Californian Asiatic Oil Co. v. Libya, René-Jean Dupuy observed that although the 1962 Resolution 1803 on Permanent Sovereignty over National Resources was assented to 'by a great many states representing not only all geographic areas but also all economic systems,' the NIEO resolutions — 3171, 3201 and 3281 — were supported 'by a majority of states but not any of the developed countries with market economies which carry on the largest part of international trade'" (NEWCOMBE, Andrew; PARADELL, Lluís. Law and Practice of Investment Treaties. The Netherlands: Kluwer Law International, 2009, p. 32).
[9] INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE — ICJ. Armed Activities on the Territory of the Congo (Democratic Republic of the Congo v. Uganda), ICJ. Judgment of 19 December 2005, para. 244. Disponível em: <>. Acesso em: 20 mar. 2022.
Revista Consultor Jurídico, 5 de abril de 2022, 13h17