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Caso do jovem surdo preso é mais grave — ele tem deficiência intelectual

Peço desculpas. A coluna postada anteriormente era uma versão incompleta. Para não haver prejuízo, substituo o texto inteiro. Agradeço à ConJur e a todos os leitores pela compreensão. Aí vai:

Publiquei aqui artigo-denúncia de um dramático caso policial-MP-judiciário pelo qual passa Leonardo Bezerra da Costa, o jovem surdo que não fala a língua dos sinais e tem deficiência intelectual, preso no presídio no Rio de Janeiro desde 29 de março.

A prisão foi feita por "populares". Acusação: roubo de celular. Bateram no jovem. Levaram para a delegacia. Para lavratura do APF.

Consta que:

"Em seguida passou a Autoridade Policial a inquirir o 1o. Conduzido (LEONARDO BEZERRA DA COSTA) que RESPONDEU: QUE manifesta o direito constitucional de manter-se silente; QUE nada mais disse e nem foi perguntado."

Sim, é isso. A citação é autoexplicativa. "Manifestou o direito...".

Não fosse isso suficiente, o APF aponta que pai, mãe e irmã estavam cientes da autuação de Leonardo. O que não é verdadeiro, segundo familiares.

Conforme noticiado (aqui), o delegado teria alegado que um parente acompanhou o Leonardo durante o depoimento, mas a família disse que isso não é verdade, e que está há duas semanas sem contato com o jovem. "O delegado colocou que ele estaria acompanhado por parentes. Isso é mentira. Dentro da delegacia não podemos ter contato com ele, pois o inspetor disse que ele responderia sozinho por ser maior. Nós realmente fomos para delegacia, mas ficamos do lado de fora, sem ter contato com ele. E ele foi ouvido sozinho, sem um intérprete. Porque nem o inspetor era intérprete", disse a irmã do jovem.

A vítima e uma testemunha disseram que o jovem tentou "subtrair" o celular do bolso de trás. A vítima afirmou que, depois de o jovem ter subtraído o celular, segurou-lhe a camisa e, então, foi agredida por esse. Subtração é ato típico do furto. O jovem teria agredido a vítima assim que esta o segurou pela camisa. O que transformaria o ato em roubo.

Porém, é possível enquadrar como roubo tentado? Essa palavra da vítima é confiável, já que não tem a versão do jovem (que não consegue se comunicar)? Talvez.

Preocupa é o modo como a polícia faz um enquadramento de forma tão simplista e ainda escreve uma inverdade (a de que o indiciado manifestou o desejo de ficar calado).

O jovem é surdo. Não sabe a língua dos sinais. Também é analfabeto. Tem deficiência. Recebe o auxílio chamado LOAS. Outra coisa: o jovem tem deficiência intelectual, conforme atestado juntado (CID 10-F71 — retardo mental moderado). Tem 24 anos e consta ser curatelado pela mãe. Portanto, não há que se perguntar se tem emprego ou ocupação ou endereço. Mora com a mãe e recebe mensalmente benefício assistencial.

Sigo. Quando o juiz realizou a audiência de custódia no dia 30, já constavam nos autos os comprovantes de que o jovem sofre de deficiência intelectual. E não deve ser muito difícil de constatar essa circunstância. Juntando isso com a surdez e a consequente incapacidade de falar-expressar, temos a "tempestade perfeita". A justiça exige muito cuidado. Tem de ter paciência com os mais fracos. As pessoas não são meras estatísticas.

E mesmo assim o magistrado disse que ele representava um perigo para a ordem pública. De onde o magistrado tirou isso? Da mera observação? Mas se o indiciado não entende nem a língua dos sinais...

Importante frisar que o intérprete de libras chegou no dia seguinte à referida audiência na qual o juiz decretou a prisão. Portanto, na audiência em que lhe foi decretada a preventiva ele estava desassistido. Tinha advogado. Mas o advogado não podia com ele se comunicar. Por causa das deficiências múltiplas do indiciado.

Portanto, o APF e a decretação da prisão na audiência de custódia foram feitas sem a presença do intérprete de libras ou alguém especializado que pudesse "falar" com ele. Os autos bem demonstram isso. Quando o réu foi "ouvido" via intérprete de libras o foi já como mera formalidade. A própria juíza disse que a prisão já estava determinada pelo outro juiz. Um dia antes.

Bom, se é assim que funciona a justiça brasileira, fujamos.

Cada um faça a sua análise.

Tem um habeas impetrado desde o dia 29 de março. Até hoje não foi julgado. Habeas corpus. Remédio heroico...! Será?

Mais. O jovem é primário. Ficha limpa. Pergunta de um milhão de códigos processuais: Por que o juiz não esperou a chegada do intérprete de libras?

Por que não examinou ou levou em conta o relevante fato de que o indiciado-preso sofre de deficiência intelectual?

Tinha o indiciado capacidade de entender seu ato?

Não devia o Ministério Público, como fiscal da lei, tomar providência quanto a isso? Qual é, mesmo, o papel do MP? Tenho me perguntado muito sobre isso.

Um jovem surdo, sem comunicação nem por sinais (aliás, o intérprete nada explicou como se comunicou com o indiciado) e que tem deficiência intelectual não tem direito a receber a substituição da prisão nos moldes do art. 319 do CPP? Que perigo representa um jovem desses?

Repito: se o sistema jurídico trata assim das pessoas com deficiência, fico pensando: o que está acontecendo com os agentes que cuidam do sistema?

O Brasil necessita de um choque de civilização.

O Brasil não conhece o Brasil. Quando o conhecer, fugirá.

O mais grave é o silêncio eloquente da comunidade jurídica.

O silêncio do MP.

O silêncio da polícia.

O silêncio do Judiciário.

O silêncio eloquente daquilo que chamamos "sistema".

Post scriptum: solidarizo-me com a vítima que, ainda bem, teve seu celular recuperado. E lamento se, de fato, foi agredida pelo indiciado. O que escrevo, aqui, é sobre garantias processuais-fundamentais. Simples assim. E que foram violadas no caso.