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SIMPLIFICAÇÃO ADMINISTRATIVA E EXPERIMENTAÇÃO

Simplificação administrativa é decisão política multidimensional e sequencial. Em sentido mínimo, simplificação administrativa significa a redução ou eliminação de exigências burocráticas estabelecidas em normas e a implementação de formas alternativas e menos onerosas de cumprimento de exigências administrativas substitutivas ou remanescentes.

A simplificação administrativa não deriva de qualquer decisão voluntarista isolada: é processo administrativo e pressupõe  mapeamento de fluxogramas, cargas ou ônus, identificação de aperfeiçoamentos processuais, orgânicos e gerenciais, realização de investimentos em estruturas de atendimento e digitalização, capacitação de pessoal e reforma de mentalidades e, sobretudo, avaliação de impacto normativo de modo prévio (ex ante) e sucessivo (ex post), inclusive com atenta apuração da arquitetura de incentivos dos agentes envolvidos. Administrar envolve cuidar de modo permanente de avaliar e propor reformas normativas, considerar as consequências práticas das normas e decisões administrativas (Art. 20 e 21, LINDB, introduzidos pela Lei 13.655/2018), e não apenas executar a lei de ofício.  

Essa compreensão amplia as responsabilidades tradicionais dos administradores públicos e dos estudiosos do direito administrativo. A tarefa de propor ou implementar reformas normativas deve ser assumida pelo gestor como tarefa própria e convocar a atenção e a contribuição do especialista, que não cumpre a sua função social se reduz o seu papel ao de mero intérprete descritivo de soluções estabelecidas.

Em direito administrativa precisamos estudar legística e programas de better regulation . A Administração pública é importante editora de normas secundárias e responsável direta pela avaliação da legislação primária vigente, seja quanto a sua adequação à realidade e aos limites orçamentários e institucionais presentes, seja quanto a proporcionalidade dos ônus impostos, a reversibilidade das normas editadas ou a sua justiça intergeracional.

Nada impõe que toda proposta de reforma normativa seja geral e definitiva. O princípio da igualdade permite o experimentalismo administrativo e normativo. Modificações incrementais de normas e rotinas podem ser aplicadas a setores ou em localidades específicas ou testadas de modo controlado em programas de sandbox, com afastamento pontual de exigências burocráticas para alguns agentes específicos e posterior avaliação de sua conversão em normas gerais obrigatórias. Administrar hoje é também experimentar soluções administrativas e normativas inovadoras e localizadas, temporárias e controladas, diferentes da aplicação do regime uniforme permanente. 

Simplificação e desburocratização
Programas de simplificação administração, no Brasil, trazem à memória o antigo Programa Nacional de Desburocratização, instituído pelo Decreto 83.740, de 18 de julho de 1979, explicitamente destinado a “dinamizar e simplificar o funcionamento da Administração Pública Federal”.

O Programa Nacional de Desburocratização era ambicioso, sendo atribuído ao próprio presidente da República, com o auxílio do ministro Extraordinário da Desburocratização. Entre os seus objetivos constava, no artigo 3º, os de "a) construir para a melhoria do atendimento dos usuários do serviço público; b) reduzir a interferência do governo na atividade do cidadão e do empresário e abreviar a solução dos casos em que essa interferência é necessária, mediante a descentralização das decisões, a simplificação do trabalho administrativo e a eliminação de formalidades e exigências cujo custo econômico ou social seja superior ao risco; c) agilizar a execução dos programas federais para assegurar o cumprimento dos objetivos prioritários do governo; d) substituir, sempre que praticável, o controle prévio pelo eficiente acompanhamento da execução e pelo reforço da fiscalização dirigida, para a identificação e correção dos eventuais desvios, fraudes e abusos; e) intensificar a execução dos trabalhos da reforma administrativa de que trata o Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, especialmente os referidos no Título XIII; f) fortalecer o sistema de livre empresa, favorecendo a empresa pequena e média, que constituem a matriz do sistema, e consolidando a grande empresa privada nacional, para que ela se capacite, quando for o caso, a receber encargos e atribuições que se encontram hoje sob a responsabilidade de empresas do Estado; g) impedir o crescimento desnecessário da máquina administrativa federal, mediante o estímulo à execução indireta, utilizando-se, sempre que praticável, o contrato com empresas privadas capacitadas e o convênio com órgãos estaduais e municipais; h) velar pelo cumprimento da política de contenção da criação indiscriminada de empresas públicas, promovendo o equacionamento dos casos em que for possível e recomendável a transferência do controle para o setor privado, respeitada a orientação do governo na matéria".

Em 1986, com a edição do Decreto nº 92.396, foi extinto o Ministério da Desburocratização, e as suas atribuições transferidas para o Ministério Extraordinário para Assuntos de Administração. Em 2005, pelo Decreto 5.378, foi extinto o Programa Nacional de Desburocratização e em seu lugar instituído o Programa Nacional de Gestão Pública e Desburocratização (Gespública), com a "finalidade de contribuir para a melhoria da qualidade dos serviços públicos prestados aos cidadãos e para o aumento da competitividade do país". E,  ao longo do tempo,  novos decretos foram sendo editados, com finalidades semelhantes, e sucessivamente revogados (Decreto 6.932/2009; Decreto 9.094/2017), estando vigente hoje o Decreto 10.178, de 18 de dezembro de 2019, que regulamenta dispositivos da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019. Preservam ainda vigência e aplicabilidade as Leis 13.460/2017 e 13.726/2018.

O foco do programa original de desburocratização era adoção de medidas endógenas de redução de estruturas organizacionais públicas, a inibição do crescimento do número de estatais, a redução do intervencionismo econômico direto e a eliminação de formalidades desnecessárias e de controles burocráticos exigidos dos cidadãos e dos gestores mais onerosos do que os benefícios auferidos. Na década de 90 do século passado a tônica da desburocratização ganhou sentido mais abrangente, envolvendo diretamente medidas de desregulamentação, abertura de mercados, ampliação da competição na prestação dos serviços públicos e na prestação de atividades econômicas sujeitas à fiscalização e regulação estatal. Mais recentemente, além de todo esse programa, houve preocupação crescente em ampliar a segurança jurídica do administrado e dos administradores, consolidar a legislação tida por necessária, aperfeiçoar a sua racionalidade e coerência, e a ampliar a exigência de estudos de impacto normativo e administrativo de caráter empírico (a chamada "viragem pragmática"). Por óbvio, essa sequência etapista é imperfeita — como todo etapismo — e algumas iniciativas que caracterizam o acento tônico de etapas sucessivas podem ser encontradas em caráter embrionário em etapas anteriores.

Esse inventário sumário permite ao menos compreender a razão de os programas atuais de simplificação administrativa serem mais abrangentes do que os tradicionais projetos de desburocratização. Estes últimos eram sobretudo programas autoreferidos, voltados a reduzir o aparato estatal ou ao menos conter o seu crescimento e, por igual, reduzir a carga administrativa exigida dos cidadãos perante as estruturas públicas. Nos programas de simplificação, ao menos com a sua conotação contemporânea, sem perder o viés da dieta orgânica e das medidas endógenas de agilização do funcionamento do Estado, objetiva-se ir além do aparato estatal e fomentar a competição entre privados, a abertura de mercados, a atração de investimentos, tornando mais rápida, simples e menos onerosa a constituição de empresas e o cumprimento de obrigações envolvendo empregadores e empregados e as relações econômicas em geral. 

A legislação mais recente, com destaque para a Lei 13.874/2019 e as alterações promovidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro pela Lei 13.655/2018, evidencia ainda preocupação com o que pode vir a ser exigido pelo gestor e regulador e não apenas em tornar mais simples e ágil a interação presente com a Administração Pública.  Essa diretriz enfatiza  a importância dos estudos de impacto regulatório (v.g., artigo 5º Lei  13.874/2019 e artigo 20 da LINDB/2018), explica as vedações expressas ao “abuso do poder regulatório” (v.g., artigo 4º da Lei  13.874/2019), a vedação a exigências compensatórias oportunistas sobretudo em matéria ambiental, econômica ou urbanística (artigo 3º , XI, da  Lei  13.874/2019)  e a imposição de regime de transição para alterações na orientação ou compreensão de normas administrativas de conteúdo indeterminado (artigo 23 da LINDB/2018).

Outra preocupação da legislação mais recente é o acesso facilitado do cidadão ao cardápio de serviços disponíveis (v.g, divulgação da "Carta de Serviços ao Usuário", artigo 7º da Lei 13.460/2017), à informação sobre o curso dos requerimentos formulados e o acesso aos dados pessoais manejados pela Administração Pública. Há também atenção pragmática com a fixação concreta de prazos fatais para a manifestação administrativa, objeto de definição em ato normativo secundário de ampla divulgação, observados os níveis de risco da atividade objeto de licenciamento ou controle, sendo que o incumprimento desses prazos é tutelado pelo silêncio positivo (ato tácito de aprovação), conforme dispõe o artigo 3º, IX, da Lei 13.874/2019 e o Decreto 10.178/2019.

Experimentalismo, contextualismo e incrementalismo
Embora essas iniciativas tenham grande mérito, raramente são previstas em termos a admitir ajustes finos, dosagem específica pelo gestor, assumindo ordinariamente o receituário tradicional de medidas gerais e permanentes estabelecidas desde logo pelo legislador federal ou até nacional. Exceção destacada a esta diretriz é a autorização, dada pela Lei  13.874/2019, para a definição do grau de risco das atividades econômicas pelo órgão ou a entidade responsável pela decisão administrativa de liberação, que fará o enquadramento da atividade em três níveis (risco leve, moderado ou alto), com repercussão direta na dispensa de qualquer controle prévio nas atividades de risco leve (desregulamentação) ou nos prazos de apreciação do requerimento do particular (§ 8º do artigo 3º da Lei 13.874, de 2019  e artigo 11 do Decerto 10.178/2019, com as alterações do  Decerto 10.219/2020). Esse enquadramento dos níveis de risco deve considerar preferencialmente a análise quantitativa e estatística, mas pode também prever critérios para a alteração do enquadramento quando o requerente demonstre a existência de instrumentos que reduzam ou anulem o risco inerente à atividade econômica (v.g.,  contratos de seguro, prestação de caução, ato ou contrato que preveja instrumentos de responsabilização própria ou de terceiros em relação aos riscos inerentes à atividade econômica, entre outros).

Essa orientação que devolve poder ao gestor para a análise contextual discricionária merece ser acompanhada e incentivada, pois é balizada com o apoio de critérios legais razoáveis e pela experiência e aprendizado em face de abusos vários decorrentes da invocação de cláusulas gerais e princípios pouco determinados em sede de licenciamento de atividades econômicas. Na sociedade complexa e dinâmica em que vivemos, a adaptação da regulação a novos modelos de prestação de serviços é inevitavelmente incremental, isto é, realizada por pequenas e sucessivas mudanças, mas igualmente pragmática, apoiada em diagnóstico e observação de experiências concretas. O experimentalismo pode ser incentivado e controlado, como nos programas de sandbox, ou decorrer da própria aplicação de normas gerais flexíveis a partir de análise de evidências e estudos empíricos e estatísticos. Simplificar hoje também é experimentar novas regulações e selecionar casos de diferenciação regulatória controlada como ensaio para novas reformas normativas. A Administração Pública não pode amar o passado, como canta Belchior, pois o novo sempre vem e as aparências não enganam mais.


 Entre muitos, indico a leitura da coletânea Legística, organizada em homenagem ao professor Carlos Blanco de Morais, com participação de destacados autores brasileiros (São Paulo: Almedina Brasil, 2020, 368p); a tese Teoria da Legislação Argumentação Legislativa: Brasil e Espanha em perspectiva comparada, da competente Profa. Roberta Simões Nascimento (Curitiba: Alteridade Editora, 2019, 599p); o Guia de Avaliação de impacto normativo, relatório didático do Prof. Carlos Blanco de Morais (Coimbra: Almedina, 2010, 125p) e, do mesmo autor, o Manual de Legística, Critérios científicos e técnicos para legislar melhor, Verbo, 2007; por fim, o breve e instigante livro do Prof. Piedad García-Escudero Márquez, Técnica Legislativa y seguridade jurídica: hacia el control constitucional de la calidad de las leyes? (Pamplona: Civitas/Thomson Reuters, 2010, 213p).

 A OCDE tem associado simplificação administrativa e melhorias da qualidade normativa, redução de encargos e avaliação de impacto normativo desde o informe de 2003 (“From Red Tape to smart Tape – Administrative Simplification in OECD Countries”). Desde 2015, foi criado o Regulatory Scrutiny Board, órgão independente de funcionários da Comissão Europeia e peritos externos à Comissão, que publica relatórios anuais. Em 2018, um estudo abrangente do programa foi publicado em livro (OECD Regulatory Policy Outlook 2018, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/9789264303072-en ). O relatório mais recente é de 2021, Better Regulation: Joining forces to make better laws, e pode ser obtido pela web: https://ec.europa.eu/info/sites/default/files/better_regulation_joining_forces_to_make_better_laws_en_0.pdf   

 Para uma visão da simplificação administrativa em matéria ambiental, cf. o trabalho didático e abrangente do Prof. Rafael Lima Daudt D’Oliveira, A Simplificação no Direito Administrativo e Ambiental: de acordo com a Lei 13.874/2019, Lei da Liberdade Econômica (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020,240p).