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INVERSÃO AUTOMÁTICA DO ÔNUS DA PROVA

O Superior Tribunal de Justiça, a quem cabe pacificar a interpretação do direito federal, já entendeu que "a simples aplicação do Código de Defesa do Consumidor não impõe a inversão do ônus da prova" (REsp 1.006.888/SP) e que o juiz deve "examinar e decidir sobre a possibilidade de inversão do ônus da prova, desde que observada a presença, ou não, de algum dos pressupostos genericamente trazidos pela norma com vistas, sempre, à hipótese concreta que lhe é submetida" (REsp 1.729.110/CE).

Caberia, portanto, ao juiz avaliar a possibilidade de inverter ou não ônus probatório em favor do consumidor em cada caso.

Mas não é o que vem ocorrendo. Reiteradas decisões determinam a inversão do ônus probatória apenas na sentença ou, pior ainda, no acórdão, adotando a narrativa unilateral do consumidor como uma verdade absoluta.

É certo que o artigo 6º inciso VIII do Código de Defesa do Consumidor dispõe sobre a inversão do ônus da prova, com o objetivo de facilitar a defesa dos direitos do consumidor, mas existem requisitos que devem ser obedecidos no caso concreto para que a faculdade possa ser exercida.

Existem dois pressupostos que podem, em tese, inverter o ônus da prova em relações consumeristas: a hipossuficiência do consumidor ou a verossimilhança das alegações. Quanto ao primeiro, se trata de hipossuficiência exclusivamente técnica, ou seja, deve existir algum obstáculo que impossibilite o consumidor de comprovar os fatos por ele narrados. Nessa lógica, ainda que se trate de relação de consumo, se o consumidor possui melhores condições de produzir a prova, é dele o ônus probatório.

Já o segundo requisito se refere a plausibilidade da alegação, isto é, deve haver aparência de verdade da alegação do consumidor.

Apesar de os requisitos não serem cumulativos, é indispensável que pelo menos um esteja presente, pois, ao inverter o ônus da prova indiscriminadamente, tão somente por se tratar de relação de consumo, se tem um grande risco de insegurança jurídica, enriquecimento sem causa do consumidor e prejuízos aos fornecedores e fabricantes, pois em muitos casos é atribuído a eles o ônus de comprovar um fato impossível.

A regra geral do ônus da prova é determinada pelo artigo 373 do Código de Processo Civil, sendo a inversão prevista no inciso II, estabelecendo que o ônus da prova incumbe ao réu "quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor". Todavia, o próprio artigo dispõe sobre a necessidade de cautela na inversão do ônus probatório, pois ela "não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil" (parágrafo 2º).

Portanto, a inversão de ônus da prova não pode atribuir à parte ré o ônus de comprovar fato negativo e produzir prova impossível (prova diabólica), pois, apesar da vulnerabilidade do consumidor, não se pode inviabilizar o exercício do direito do fornecedor ou do fabricante. E, diferente do que é equivocadamente compreendido por muitos, existem diversas hipóteses em que os fornecedores e fabricantes são as partes tecnicamente hipossuficientes da relação, pois há obstáculos para produção da prova por eles.

Existem, por exemplo, situações em que o consumidor narra um dano no produto que ocorreu ou foi identificado em sua residência, que somente ele presenciou, sem sequer registrar. Nesses casos, não há como o fornecedor comprovar que não aconteceu o relatado pelo consumidor em sua residência. Se trata, portanto, de prova diabólica, impossível de ser produzida e, sempre que não for reconhecida a impossibilidade de inversão de ônus da prova nessas situações, o consumidor será automaticamente indenizado porque não será obrigado a comprovar a alegação. Na lição de Fabrício Lunardi [1], "com base nesse entendimento, poder-se-ia dizer que toda vez que a prova seja difícil de ser produzida e estiverem presentes os requisitos para inversão do ônus da prova, o réu será condenado. Por exemplo, seguindo essa lógica, sempre que o consumidor alegar que encontrou algum objeto estranho não deteriorável (o que torna sem utilidade qualquer perícia) dentro de um recipiente de alimento haverá grande probabilidade de condenação do fornecedor. Isso talvez gere situações de irrazoabilidade e injustiça".

Dessa forma, a banalização dos requisitos autorizadores da inversão do ônus probatório acaba por incentivar o ajuizamento de ações indenizatórias frívolas em relações consumo, pois leva o consumidor a crer que está dispensado de qualquer produção de prova, bastando apresentar narrativa unilateral para fundamentar seu pedido.

De acordo com o Boletim Estatístico do Superior Tribunal de Justiça, apenas em abril de 2022 tramitaram naquela Corte Superior 10.433 ações referentes a indenização por dano moral. É certo que se trata de minoria e exceção, mas não há como negar a existência de ações indevidas, decorrentes da chamada "indústria do dano moral", que causa um tumulto processual em diversos tribunais do país.

O Superior Tribunal de Justiça já vem tentando limitar as inúmeras ações diariamente ajuizadas, sendo salutar o entendimento do ministro Raul Araujo sobre a indenização em relação de consumo no REsp nº 1.899.304/SP: "Os cuidados aqui devem ser maiores ou virá uma indústria de dano moral, nessas circunstâncias banais. Note-se serem bem atraentes os valores das indenizações, incentivando fraudes por pessoas aproveitadoras. Não podemos ser ingênuos, ignorando essas circunstâncias. Não digo, absolutamente não, que o presente caso retrate um desvio doloso. Entretanto, estou projetando estejamos incentivando fraudes futuras, caso adotemos o entendimento muito facilitador da caracterização banal de dano moral, por singelas possíveis ocorrências".

Entendimento diverso age como desincentivo para o investimento, traz enorme insegurança jurídica e contribui para o famoso risco Brasil.

Uma das formas de não incentivar ações infundadas de indenização de danos morais é reconhecer que a vulnerabilidade do consumidor não pode impedir o legítimo exercício do direito do fornecedor, de maneira em que para inverter o ônus probatório deve se comprovar a presença de algum dos requisitos (obstáculo para comprovação ou demonstração da aparente veracidade da alegação) e, principalmente, a prova deve ser possível de ser produzida pelo fabricante ou fornecedor.

A Constituição determina que o Estado deve promover a defesa do consumidor (artigo 5º, inciso XXXII), mas igualmente dispõe que é direito do litigante que seja assegurada a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (artigo 5º, inciso LV). Logo, a presunção de boa-fé em favor do consumidor não é absoluta e os instrumentos facilitadores constantes do código consumerista não autorizam a prolação de decisões que inviabilizam o direito de defesa ao impor o ônus de produzir uma prova impossível.