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TEMA 1.087 DO STF: SOBERANIA DOS VEREDICTOS OU IMPUNIDADE IRRECORRÍVEL?

No final do século 19, havia um nome que aterrorizava o sudeste do país, notadamente o interior de São Paulo: Diogo da Rocha Figueira, conhecido por Dioguinho. Matador contumaz, que se servia de uma rede de proteção da elite cafeeira, e que ostentava mais de 50 homicídios cometidos por pistolagem. Em comum, apenas o fato de nunca ter sido condenado por nenhum de seus malfeitos.

Assim Amoroso Netto, na obra Dioguinho, ilustrou a ineficácia do Sistema de Justiça e a impunidade que pairava sobre ele: “(...) quase todos os seus crimes, por esta ou por aquela razão, nunca puderam ser convenientemente apurados. Sem contar, naturalmente, os que nunca chegaram ao conhecimento das autoridades. (...) Jurados quase analfabetos, escolhidos a dedo entre os amigos do criminoso, ou então pobres diabos aos quais o terror paralisa até a consciência. (...) Quando for a São Simão, vá ao cartório do crime e peça pra ler. Veja o processo de fuga do criminoso Querubim Gianini, por exemplo, que Dioguinho ajudou a escapar da cadeia de lá. (...) Você vai ficar com vergonha, diante dos despachos e das sentenças, algumas das quais tão mal escritas que fazem pena; isso, sem contar o desprêzo à prova provada, para despronunciar ou absolver o homem”. [1]

Aquele cenário dos matadores sertanejos de aluguel ainda existe nos rincões do país, a impor o mesmo temor de outrora na população daquelas cercanias. Vide, por exemplo, o assassinato de Dorothy Stang, que colocou no bando dos réus dois fazendeiros do interior do Pará, acusados de contratarem pistoleiros para assassinarem a referida missionaria. Ou, mais recentemente, o assassinato dos jornalistas Bruno Araújo Pereira e Dom Phillips, em circunstâncias ainda a serem esclarecidas a envolver conflitos regionais na Amazônia.

Todavia, a realidade atual se reveste ainda de outros elementos que conferem maior preocupação aos crimes de morte.

Nos últimos anos, o número de crimes de homicídios no país variou entre 40 a 60 mil, a impor a vergonhosa estatística de um dos países mais violentos do mundo. E, ao lado desse cenário cruento, emergem os homicídios cometidos em contexto de organizações criminosas. Tornou-se cada vez mais corriqueira a existência de execuções cometidas por facções criminosas em julgamentos sumários por ela realizados e cuja pena de morte se estabelece como "sanção imposta"; nessa dinâmica, centenas de agentes de segurança pública foram executados, mesmo em seus momentos de lazeres, e outros tantos foram assassinados sob a "condenação" de pertencerem a outros grupos criminosos, em verdadeira guerra civil travada à luz do dia.

Em todos os casos aventados, em que pesem as diferenças de contextos e de motivos, há circunstâncias que os aproximam: o temor daqueles que comporão eventual Conselho de Sentença no Tribunal do Júri. Afinal, como bem ilustrou Amoroso Netto, diante de criminosos tão violentos, os jurados podem se transformar em "pobres diabos aos quais o terror paralisa até a consciência".

É por tal razão que o Código de Processo Penal, ao longo de décadas de vigência, estabeleceu a possibilidade de apelação às partes quando as decisões do Tribunal do Júri se demonstrarem manifestamente contrária à prova dos autos (artigo 593, III, d do CPP). É, nesse contexto, que o duplo grau de jurisdição mitigado sempre se realizou nos crimes dolosos contra a vida.

No entanto, embora se esteja diante de considerável contexto de insegurança pública, onde o Estado constituído cada vez mais disputa espaço com o criminoso Estado Paralelo, o Supremo Tribunal Federal julgará, na próxima quarta-feira (dia 22.06.2022), o Tema de Repercussão Geral 1.087 (no ARE nº 1.225.185), no qual se discute a possibilidade ou não de recurso de apelação das decisões absolutórias do Tribunal do Júri. In verbis"Possibilidade de Tribunal de 2º grau, diante da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, determinar a realização de novo júri em julgamento de recurso interposto contra absolvição assentada no quesito genérico, ante suposta contrariedade à prova dos autos".

Com a devida vênia, eventual restrição à possibilidade recursal encontra-se apartada de qualquer interpretação constitucional que se queira preservar tanto a mens legislat quanto a mens legis extraída da Carta Constitucional de 1988.

A teoria do originalismo constitucional (Mens Legislatoris)
A teoria do originalismo constitucional, com raízes na jurisprudência norte-americana, assevera que, dentro do processo hermenêutico, cumpre ao Poder Judiciário o dever de buscar o sentido primário, inicial, da norma constitucional. A razão pela qual a norma foi inserida na Carta Constitucional, perquirindo a vontade do constituinte originário na formatação do contrato social.

Ao lecionar sobre métodos de interpretação constitucional, Luis Carlos Sáchica , apud Morales [2], ensina que se deve dar preferência ao que atende à vontade do constituinte, porque "cada constituição significa uma resposta a uma situação histórica concreta e sua validade deriva da decisão de solucionar crises, estabelecer compromissos, iniciar transformações requeridas pelas relações sociais e políticas desse momento" [3]. E uma das formas de se alcançar a "vontade do constituinte", como bem adverte Marcelo Caetano, é justamente o estudo dos debates travados nas Assembleias Constituintes, pois "os trabalhos dessas Comissões constituem importantíssimos subsídios para a interpretação dos textos promulgados". [4]

Nesse sentido, sobre o tema trazido à discussão — a irrecorribilidade das decisões absolutórias do Tribunal do Júri — ao contrário do que possa parecer, não é tema atual ou decorrente de uma nova percepção de "juristas iluminados". Muito pelo contrário. Esta ideia permeou os debates da Assembleia Constituinte nos idos de 1988, sendo, inclusive, objeto de destaque apresentado pelo então constituinte Nyder Barbosa quando discutido o formato das garantias constitucionais afetas ao Tribunal do Júri. [5]

Naquela oportunidade, Nyder Barbosa apresentou destaque para que fosse incluído, no rol das garantias constitucionais do Tribunal do Júri, que "as decisões absolutórias não poderão ser objeto de recurso". Em outras palavras, buscou-se conferir caráter absoluto à soberania dos veredictos quando se estivesse diante de uma decisão absolutória do Conselho de Sentença.

Todavia, em meio à discussão travada, bem se posicionou o Constituinte Costa Ferreira: "Então, se por ventura em um crime hediondo ou qualquer outro o réu for submetido a Júri Popular e o conselho de sentença se pronunciar a seu favor, dando-lhe a liberdade, precisamos considerar que também deve haver o direito dos familiares da vítima recorrerem dessa decisão. Devem eles ter pelo menos as suas esperanças de, através da Justiça, ver aquele que consideram criminoso ser submetido a uma nova instância, a fim de que haja uma nova decisão. Já que estamos tratando de direitos e garantias da pessoa humana, se eu me posicionar do lado do réu ficarei contra a vítima, o de cujos; se todavia, eu me posicionar do outro lado estarei cometendo uma injustiça. Acho que deve haver recurso. É um direito que todas as nações do mundo reconhecem, para beneficiar a pessoa ou pelo menos para que os familiares da pessoa prejudicada ou que faleceu tenham satisfação de ver aquele que praticou o crime contra o seu parente —  passar pelo menos uma temporada num determinado local para cumprir a pena".

No mesmo sentido, o Constituinte-Relator Darcy Pozza ponderou que "não admitir recursos a outras instâncias seria o mesmo que estabelecer a infalibilidade do Júri. E isso não ocorre".

Em razão da expressa contrariedade evidenciada, o Constituinte Nyder Barbosa, sob aplausos, retirou o destaque apresentado. Frise-se novamente: sob aplausos!

Embora a matéria não tenha sido colocada em votação, esse resgate histórico da Assembleia Nacional Constituinte revela que houve expresso afastamento da ideia apresentada em meio à discussão travada, o que levou o autor do destaque a retirá-lo antes de ser deliberado pela Casa. Afinal, não era a vontade do Poder Constituinte Originário conferir caráter irrecorrível às decisões absolutórias do Tribunal do Júri.

Como bem ressalta Morales, "a posição do constituinte é peculiar, pois está ele investido do poder de exprimir, em nome de todo povo, o conjunto de decisões fundamentais, que irão constituir a base de todo o ordenamento jurídico, como estatuto básico a reger os destinos de uma coletividade. Essas decisões, embora não sejam imutáveis, destinam-se a perdurar, no tempo, e não devem ficar expostas a demasiadas oscilações interpretativas". [6]

Ora, se do estudo dos trabalhos da Assembleia Constituinte, encontra-se a vontade expressa do legislador originário em não conferir caráter irrecorrível às decisões absolutórias do Tribunal do Júri, qual o fundamento para que a Suprema Corte se posicione em sentido contrário, em uma espécie de revisionismo histórico que não guarda coerência com a opção conscientemente elegida por ocasião da promulgação da Carta Constitucional?

Desta forma, sob o aspecto da interpretação original das normas constitucionais, não há razão para que o julgamento do Tema 1087 do STF acarrete a limitação recursal às decisões absolutórias do Tribunal do Júri.

A teoria da Constituição viva (Mens Legis)
Ainda que não se queira adotar o Originalismo Constitucional, sob a perspectiva de que as normas constitucionais expressam conteúdo dinâmico e que precisam se adaptar às mudanças e evoluções civilizatórias (Teoria da Constituição Viva), mesmo assim não se encontra razoabilidade constitucional para se conferir caráter absoluto à soberania dos veredictos em detrimento à atividade recursal nos casos de decisões absolutórias.

Como bem assinala Konrad Hesse, "a constituição não deve assentar-se numa mesma estrutura unilateral, se quiser preservar a sua força normativa num mundo em processo de permanente mudança político-social" [7]. Logo, a fim de que haja a preservação da força normativa constitucional, é fundamental que haja a ponderação sobre os valores constitucionais envolvidos diante de determinado conflito normativo.

No caso sob estudo, se de um lado a Constituição Federal confere à Soberania dos Veredictos o status de garantia fundamental (artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea c), de outro, também concebe ao Duplo Grau de Jurisdição o mesmo quilate constitucional (artigo 5º, inciso LVII). Esta é a densidade constitucional do conflito normativo em questão.

Aliás, importante ressaltar que tanto a Soberania dos Veredictos quanto o exercício do Duplo Grau de Jurisdição não encontram fator de discrimine em relação ao resultado prático do processo em si. Ou seja, a Constituição assegura, ao mesmo tempo, a Soberania dos Veredictos e os recursos inerentes à atividade jurisdicional ("aos litigantes") tanto em relação às sentenças condenatórias quanto absolutórias. Do mesmo modo, o Código de Processo Penal também não condiciona a possibilidade recursal à natureza da sentença a ser recorrida.

Não há outra forma a resolver o presente conflito, portanto, senão o sopesamento entre as normas contrapostas para se alcançar o devido fundamento lógico-normativo a nortear o problema jurídico proposto. Como defendido em obra anterior, a existência de uma "sociedade insegura e demandista, de conflitos das mais variadas vertentes, pressupõe a maturidade necessária para o seu enfrentamento. E, nessa seara, o Direito Constitucional e a respectiva hermenêutica possuem a tarefa necessária para se alcançar a proteção aos direitos fundamentais mais efetiva, que não fragilize com as mutações da realidade, mas também que não a encarcere no dogmatismo abstrato". [8]

Nesse sentido, tanto a soberania dos veredictos quanto o duplo grau de jurisdição podem ser traduzidos em princípios, juízos a priori que servem de diretrizes para orientar a forma de solução do respectivo conflito de normas.

Nas palavras de Alexy, princípios são "mandamentos de otimização”, isto é “normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes”. E esclarece: “se dois princípios colidem —  que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com outro, permitido -, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deva ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face de outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão de precedência pode ser resolvida de forma oposta" [9].

As lições de Alexy nada mais são do que a aplicação do princípio da proporcionalidade em conflitos de normas e podem ser traduzidas na seguinte "Equação de Sopesamento": (PP P2) C => R

Na referida equação, P1 e P2 representariam os princípios normativos em conflito; P, a relação de prevalência; C, as condições fáticas e jurídicas de precedência; e R, as consequências jurídicas da prevalência. Em outras palavras, determinado princípio prevaleceria sobre outro dentro de determinadas condições fáticas e jurídicas a acarretar as consequências normativas de sua vigência.

No caso sob análise, observa-se que a Soberania dos Veredictos é o valor prevalente diante do que expressamente determina a processualística penal. Isto porque o Tribunal ad quem somente poderá determinar a realização de novo julgamento quando a “decisão for manifestamente contrária à prova dos autos”; esta é a relação de prevalência dentro das circunstâncias jurídicas e fáticas acima mencionadae o que confere à garantia da Soberania dos Veredictos a regra geral a ser seguida, com estabilidade suficiente a sustentar, em tese, a própria execução imediata da pena imposta.

Todavia, a contrário sensu, se a regra é a Soberania dos Veredictos, a exceção será o Duplo Grau de Jurisdição. Mas, haverá! Se, em determinado caso, a decisão tomada por Conselho de Sentença estiver apartada da prova dos autos, ou como dito antes por Amoroso Netto com “desprezo à prova provada”, incide a possibilidade de determinação de reexame da matéria por outros jurados, desde que assim determinado pelo Tribunal ad quem. Não há nessa hipótese infringência à Soberania dos Veredictos, mas sopesamento entre os princípios colidentes e prevalência do Duplo Grau de Jurisdição “dentro daquelas condições fáticas e jurídicas”, a ensejar a realização de novo julgamento (consequências jurídicas de prevalência).

Aliás, a manutenção excepcional do Duplo Grau de Jurisdição e de eventual novo julgamento pelo Tribunal do Júri, mais do que pressuposto normativo, também encontra fundamento na premissa lógica da falibilidade humana. Todo ser humano é falível. O Jurado é ser humano. Logo, o Jurado é falível. E essa falibilidade pode ser de diversas matizes, do erro na apreciação das provas ou no temor ou receio de se condenar determinados acusados violentos e perigosos. Porém, seja qual for o fator de falibilidade, não demonstrável à olho nu dada a garantia do sigilo das votações, sua percepção somente será possível com o sopesamento das circunstâncias fáticas a fim de que se alcance a necessidade de correção em novo julgamento ou não.

Assim, ainda que se afaste a vontade original do Constituinte, e se busque alcançar o exato valor das normas constitucionais contrapostas, não há como negar que o Princípio do Duplo Grau de Jurisdição vigora nos processos do Tribunal do Júri de forma excepcional, mitigada, diante de decisões manifestamente contrárias às provas dos autos, o que não significa qualquer afronta ao Princípio da Soberania dos Veredictos, que continuará a vigorar como regra geral.

Conclusão
O Tema 1.087 a ser julgado pelo STF apresenta questão fundamental à manutenção do sistema recursal do Tribunal do Júri, a ensejar justa preocupação de toda sociedade, aviltada pelos milhares de homicídios cometidos anualmente, e dos membros do Ministério Público, que atuam diariamente em centenas de plenários realizados pelo país, e que conhecem profundamente todos os meandros e circunstâncias que envolvem cada julgamento levado a cabo.

O que se está a discutir na demanda em comento não é simplesmente a atividade recursal do Ministério Público em casos de absolvições injustas, mas o direito da vítima sobrevivente ou de seus familiares, em sua ausência permanente, de obterem um veredicto que seja adequado às provas dos autos, livre de eventuais erros inerentes à própria condição humana dos julgadores.

Busca-se, assim, não apenas manter uma prerrogativa decorrente da paridade de armas das partes processuais, mas de se evitar a malfadada impunidade irrecorrível, que certamente aprisionará definitivamente o choro enlutado ou o corpo marcado pela estupidez do crime violento não punido, algo que não deveria sequer ser cogitado em um Estado que se diz "Democrático" e de "Direito" e muito menos ocupar a pauta já assoberbada da vergastada Corte Suprema.

Referências:
[1] NETTO, João Amoroso. História completa e verídica do famoso bandido paulista Diogo da Rocha Figueira, mais conhecido pelo cognome de Dioguinho. Oficinas Gráficas da Rua do Hipódromo: São Paulo, 1949.

[2]https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-16042012-161140/publico/CESAR_MECCHI_MORALES.pdf. Acesso em 17.06.2022.

[3] SÁCHICA. Luis Carlos. Derecho Constitucional General. 4ª ed.  Ed.Themis: Bogotá, 1999.

[4] CAETANO, Marcelo. Direito Constitucional. Volume II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forens,. 1987

[5]https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/1c_Subcomissao_Da_Nacionalidade,_Dos_Direitos_Politicos,.pdf. Acesso em 18.06.2022.

[6]https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-16042012-161140/publico/CESAR_MECCHI_MORALES.pdf. Acesso em 18.06.2022.

[7] HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Editora: Sérgio Antonio Fabris. Porto Alegre, 1991.

[8] MACIEL NETO, Aluisio Antonio. Liberdades, Garantias e Direitos Sociais: Aplicação do Princípio da Proporcionalidade nos Conflitos Penais e Sociais. Editora Juruá: Curitiba, 2020.

[9] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. Editora Malheiros. São Paulo, 2017.