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ADVOGADO NÃO PRECISA DE PORTE DE ARMA DE FOGO. BIC JÁ!

Advogados que saibam bem desempenhar suas missões, e não por outro fundamento, são os únicos inscritos na Constituição na qualidade de representantes da sociedade civil, e que tenham preparo técnico-jurídico capaz de honrar juramento feito quando de suas colações de grau, estão em números cada vez mais reduzidos e crescentes.

A advocacia brasileira, a maior do mundo em número de advogados regularizados, está fragilizada. Dados da OAB dão conta que, hoje, têm-se quase 1,4 milhão de advogados, advogados com inscrições suplementares, e estagiários regularizados (em torno de 190 por habitante) — contra 1.327.010 nos Estados Unidos —, e poucos possuem condições de (sobre) viver com dignidade e, ao mesmo tempo, patrocinar eficazmente os interesses dos cidadãos que lhes confiam seus problemas jurídicos. Observe-se que não se está a comentar, por exemplo, sobre os 80,18% bacharéis reprovados no último Exame de Ordem [1], o que atesta a insuficiência mínima necessária para sejam galgados à condição de advogados, com o fito de trabalhar em uma das mais difíceis (e belas) profissões.

"Já em 2015, um levantamento da OAB apontou que o Brasil, sozinho, tinha mais cursos de Direito do que o resto do mundo inteiro — 1.240 aqui, contra 1.100 em todos os outros países. Levantamentos mais atualizados demonstraram que a proporção na verdade diminuiu, mas o volume de cursos no país só aumentou desde então. (...) em 2018, com 1.502 cursos para formar bacharéis na área", apenas "[n]ove em cada dez instituições que oferecem o curso de Direito no Brasil aprovam menos de 30% dos seus alunos no exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Só 5,4% das instituições avaliadas [790] consegue aprovar pelo menos metade dos seus alunos na prova" [2].

A advocacia lida com todas as mais diversas mazelas violadoras dos direitos e garantias constitucional e legal dos nascituros até após a morte das pessoas. Vida e liberdade, patrimônios maiores do ser humano, estão em seu radar, e com eles, e por eles, não lhes é facultado descuidar milímetro sequer.   

Com a ampliação e ainda degradante qualidade do ensino jurídico no país a contar da década de 1970, exceções à parte, se incentivou a criação de faculdades de Direito privadas, em detrimento das públicas. Em consequência, dentre (poucos) outros, pretos, pobres e periféricos, já desde então por um fio para estarem totalmente alijados das instituições de ensino superior — e do sistema de Educação de maneira global —, delas foram dizimados, só retornando, recentemente, em face de política pública implementadora do sistema de cotas como medida reparadora aos descendentes dos escravizados. Daquele tempo em diante, iniciou-se as apelidadas faculdades "cuspe e giz" que, sem generalizar, traduzem considerável business econômico-financeiro de mercado despreocupado com a excelência do ensino. Pensam, tão só, em sua estratosférica rentabilidade.

É dentro desta gravíssima situação que envergonha os brasileiros, e o Brasil frente ao mundo que o presidente da OAB-AM — ao invés de cada vez mais se empenhar, ombreando esforços com o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, e com entidades da sociedade civil organizada, a resolver a má qualidade do ensino jurídico no país (na realidade, da Educação) —, criou, no início deste ano — na mesma linha do que, em passado remoto, a OAB-SC (à época presidida por advogado que, posteriormente, titularizou a pasta da Secretaria de Segurança Pública de Santa Catariana) [3] — constituiu "comissão especial pela isonomia e porte de arma à advocacia, com o objetivo de viabilizar o projeto de Lei nº 704/2015 e trabalhar pela igualdade de direitos dos advogados com relação a outros membros que compõe o tripé da Justiça" [4], sob a justificativa de que "[a]tualmente, o advogado é um membro da justiça que não possui proteção estatal individual, por não ser autorizado a ter o porte de arma de fogo, por meio da profissão que exerce. Autorizei a criação desta comissão com o intuito de lutar pela causa e conseguir dar mais segurança aos nossos profissionais que são submetidos a diversos tipos de situação, muitas vezes com perigo iminente" [5].

Porém, sua voz não é isolada. Em 15 de junho passado a OAB-DF, em sessão de comissão inaugurada para estudar a legalidade de porte de arma para advogados, os responsáveis pela condução da audiência pública viram-se obrigados a encerra-la de inopino, porque o coordenador daquela, sem o conhecimento da mesa que conduzia os trabalhos, em bizarro gesto, "levou ao púlpito do auditório da Ordem um colete à prova de balas com o símbolo do Justiceiro, um anti-herói de história em quadrinhos", provocando bate-boca entre os apoiadores e não apoiadores da proposta. Serenados os ânimos, e após retirar-se o colete do plenário, a sessão foi retomada [6].

O advogado que engatilhou toda a fuzilaria, ao ocupar o púlpito do auditório da OAB-DF, descarregando parte de sua munição, disparou: "[f]ugindo das questões políticas, mas chamando feito à ordem eu vou trazer algumas explicações iniciais porque alguns colegas, eu acho, não sabem como funcionam a questão do porte de arma para a advocacia, depois falo um pouco da isonomia e teço alguns comentários se ainda tiver tempo" [7].

E, ao findar, alvejou:

"Eu amo ser advogado e é a única profissão que eu tenho. E esse colete que estava aqui na frente, eu uso quando saio e entro nos tribunais do júri porque muitas vezes a minha vida foi ameaçada e eu quero voltar para casa, minha família e filhas. E, para simplificar, eu tenho várias armas, mas não tenho porte federal, disse, defendendo a liberação do armamento para a categoria" [8].

Não bastasse constrangedor espetáculo daquele advogado, o presidente da OAB-DF que, tal qual se sinalizou em relação ao presidente da OAB-AM, poderia estar, juntamente com àqueles, alavancando suas forças em prol do aprimoramento do ensino jurídico no país (repete-se, da Educação como um todo), disse que "A OAB-DF está promovendo esse debate entre os profissionais e, posteriormente, fará consulta pública à categoria. (...) O resultado da consulta pública da OAB-DF sobre porte de arma para a advocacia será enviado ao Conselho Federal, que representa a categoria na Câmara dos Deputados" [9].

Por lamentável, eles ainda não são os únicos e os escoteiros; esta ladainha vem de longe, vide a pretensão da OAB-SC [10]. Por pitoresco, cite-se que a Comissão de Estudo Sobre o Porte de Armas da OAB-PI realizou, em 22/5 passado, "o primeiro curso Doutores no Tiro" — Doutores no Tiro! —, com o intuito de oferecer, segunda a presidente da comissão, "capacidade técnica no manuseio da arma de fogo, colocando em prática, criteriosamente, todas as regras de segurança, sem esquecer dos fundamentos do tiro. Além disso, observar sempre a aptidão psicológica" [11].

Advogado não precisa de porte de arma de fogo. Advogado precisa, sim, saber bem engatilhar a mais potente e letal de todas as armas de fogo existentes no mundo: a caneta. Com porte de caneta ele terá, à sua disposição 24 horas por dia, armamento bélico de grosso calibre e indispensável para que, com uma só penada (e, se preferir, com sua caneta carregada com tinta prata), possa, com paridade de armas, talentosamente defender àqueles que patrocina, sem se descurar de seu compromisso constitucional, auxiliando o país a salvaguardar o Estado democrático de Direito, a todo instante posto à prova por projetis de fogo advindos de todos os campos e lados. 

Empunhando canetas, incalculáveis advogados atuaram em prol de um Brasil mais justo e democrático, possibilitando, em consequência, que cidadãos tivessem afiançados, por exemplo, a garantia de livremente se expressar sem que suas liberdades de ir e vir fossem trancafiadas, tal qual ocorreu com o causídico brasiliense. Aqueles profissionais do Direito, aliando-se a tantos outros cidadãos democratas, não raro dando suas vidas em troca, lograram êxito, a começar pela Anistia, culminando com a instalação da Assembleia Nacional Constituinte, que brindou o povo brasileiro com a Constituição Federal de 1988.

Utilizando armas de fogo, e distintos armamentos mortíferos, os ditadores militares, nos anos de chumbo, empurraram, na marra, sem ordem judicial etc., ou seja, à margem da constitucionalidade e legalidade, milhares de pessoas para abjetos e podres porões, sendo que infinitas foram torturadas e/ou mortas e inúmeras nunca tiveram seus corpos encontrados para que suas famílias e amigos pudessem prestar-lhes suas despedidas finais.

Não obstante, há diversos projetos de lei que buscam autorizar o porte de arma de fogo a advogados, e que são apoiados por outras seccionais e subseções da OAB. O que a OAB-AM apoia é o PL nº 704/2015, apresentado pelo ex-deputado federal Ronaldo Benedet (MDB-SC).

Outra proposta nessa linha é o PL nº 3.213/2020, de autoria do deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) — sim, aquele que demonstrou sarcástico prazer ao quebrar placa em homenagem à vereadora do Rio assassinada Marielle Franco (PSOL), e defendeu o retorno do AI-5, sem deixar de acicatar a população a invadir o Supremo Tribunal Federal e a aplicar uma surra nos ministros. Silveira foi condenado, pelo STF, a oito anos e nove meses de reclusão, em regime inicial fechado, por crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e coação no curso do processo, com a suspensão de seus direitos políticos e a perda do mandato parlamentar, mais 35 dias-multa no valor de cinco salários mínimos, corrigidos monetariamente na data do pagamento (R$ 212 mil, em valores atuais). Sucede que o presidente Jair Bolsonaro, seu aliado, sequer esperou a publicação do acórdão, apressando-se em lhe conceder graça, ato que está sub judice.

Por falar em Bolsonaro, seu filho primogênito, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), identicamente é autor de projeto que intenta que advogados portem arma de fogo — o PL nº 2.734/2021. Nenhuma surpresa. Desde o início de seu governo, Bolsonaro vem flexibilizando as regras para a posse e o porte de armas. Até março, sua gestão já tinha editado 15 decretos, 19 portarias e duas resoluções que afrouxaram a acesso a armamentos. Mercê dessas facilidades, o registro de armas de fogo por civis junto à Polícia Federal cresceu 300% em relação a 2018 [12]. E o número de pessoas com licença de colecionador, atirador esportivo e/ou caçadores, o que permite comprar até 60 armas e 180 mil balas por ano, aumentou 262% entre julho de 2019 e março de 2022 [13].

Como adverte Luis Inácio Admans, é "(...) preciso que se registre um ponto fundamental: arma de fogo é um instrumento destinado a matar. Ela pode ser usada para outras finalidades (esportiva, como o campeonato de tiro), mas sua função primordial é a violência e a morte. Não é como, por exemplo, uma faca, que também pode ser usada com um instrumento de violência, mas usualmente é destinada à atividade culinária [14]". Em síntese, arma de fogo, por desventura imprescindíveis, somente hão de ser franqueadas pelo Estado a diminutos agentes dos poderes públicos e, exatamente por isso, de forma parcimoniosa, controlada e com impecável fiscalização.

Já ultrapassado o tempo de se revitalizar os princípios éticos que têm de nortear à mente dos advogados porque, somente deste jeito, suas missões continuarão a merecer a importância e a respeitabilidade que sempre detiveram no seio de sociedade. Demais isto, indiscutível que "[a] OAB luta pela solução pacífica dos conflitos sociais. A Ordem só é, no contexto nacional, uma instituição respeitada por conta do seu posicionamento político ao longo da história. Ela soube se conduzir com serenidade pela solução harmônica referente a conflitos sociais", destaca Rodrigo Lustosa [15]. É preciso combater o bom combate. E o bom combate começa por saber manusear, com balas certeiras, a caneta nossa do dia a dia.

A OAB, por conseguinte, diversamente de levar sua tropa para o front, objetivando rojar em favor do porte de armas de fogo para advogados, em nome de falaciosos argumentos relacionados 1) a paridade de armas entre advogados e demais agentes dos poderes públicos e/ou 2) de proteger as integridades físicas daqueles, tem de engalfinhar-se no melhoramento técnico-jurídico dos advogados; tout court.

Devem, sem titubeação, todos os gestores da Ordem dos Advogados do Brasil se irmanarem e, segurando suas canetas com pulsos rígidos, mirar e alvejar o alvo que conduzirá o Brasil a possuir um sistema de Educação primeiro-mundista e acessível, respeitando a paridade de armas entre todos os brasileiros, independentemente de raça, classe social, credo etc., incluindo, também nesta batalha republicana, as faculdades de Direito e os demais cursos de ensino superior, propiciando, por meio precisa pontaria, que a Educação brasileira seja de escol, e com aulas ministradas por professores comprometidos e capazes de calibrar a programação de todos os cursos, também os de Direito que, como demonstrado, vai de mal à pior, aspirando que, em futuro brevíssimo — o tempo já passou, e urge seja recuperado, mas sem que os gatilhos das armas sejam acionados açodadamente —, o país chegue, definitivamente, ao status estratificado na Constituição Federal.

Ter o advogado porte de arma é algo que não milita em prol dos interesses sociais de sua missão. Ter porte de caneta, seja de que marca for, desde que ela tenha tinta, é o suficiente para que o advogado, abastecido com profundo conhecimento técnico-jurídico, e sem receio de desagradar quem quer que seja, muito menos precisando ser herói para exercitar seu labor, desfrute de todos os mecanismos e atributos para, com plena paridade de armas, nos "campos de tiro do sistema judicial", tenha preparo para trocar fogo, com ética e respeito, com o fito de resguardar os direitos e garantias constitucionais e legais daquelas pessoas que lhes confiaram a defesa de seus interesses judiciais. Se deste modo atuar o advogado, ele, não terá seu corpo alvejado por balas perdidas ou achadas, e retornará, diariamente, para sua casa e família são e salvo, cabeça erguida e alma leve, por ter ciência e consciência de ter combatido o bom combate no cumprimento de seu múnus público. 

Há de se valorizar e prestigiar o advogado. Não o armando com armas de fogo.

Bic já!