PROTAGONISMO DO STF NA CRISE DE DIVISÃO DOS PODERES GARANTIU GOVERNABILIDADE
*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil 2022, lançado nesta quinta-feira (30/6) na TV ConJur. A publicação está disponível gratuitamente na versão online (clique aqui para ler) e à venda na Livraria ConJur, em sua versão impressa (clique aqui para comprar).
O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, tem uma resposta engatilhada a cada vez que lhe perguntam se existe ativismo do Judiciário. “O Supremo Tribunal Federal tem a obrigação constitucional de dar respostas à sociedade a partir de ações protocoladas por diversos atores. O STF não age sem provocação para definir políticas públicas, mas sim é acionado para dirimir conflitos e garantir direitos. Seria interessante se o tribunal tivesse a prerrogativa de decidir não decidir, entender que a sociedade não está preparada para determinado tema. Mas, no regramento brasileiro, não existe essa possibilidade explícita”, afirmou Fux em entrevista ao Anuário da Justiça.
O decano do STF, ministro Gilmar Mendes, acredita que o tribunal vive uma situação paradoxal. O trabalho da corte nas mais diversas áreas pode ser criticado, mas “todos querem que atue ou cobre a atuação de outros órgãos”. Ou, como lembra, encerrado o debate parlamentar e aprovada nova legislação, o STF é acionado para se pronunciar.
Nas reclamações de que o STF intervém em demasia no que Mendes chama de “tecido político”, normalmente a crítica vem acompanhada de expressões como “isso não é tarefa do tribunal”. Então, conclui, “nós vivemos esse dilema e temos que decifrar esse enigma, definindo de maneira talvez mais clara quais são as questões nas quais nós devemos intervir, talvez com algum critério de importância ou essencialidade”.
A atuação do STF parece cada vez mais necessária para preservar a integridade das instituições e o Estado Democrático de Direito. Na visão do ministro Roberto Barroso, duas situações podem exigir uma atuação mais proativa, mais expansiva do Supremo: a preservação das regras da democracia e a proteção dos direitos fundamentais. É isto que está em jogo no atual momento político.
A corte terá meses difíceis pela frente, como admite o decano Gilmar Mendes. “É sempre muito difícil. Nós temos um novo mundo também, em função da internet, e precisamos estar atentos a tudo isso. Mas espero que todos nós, inclusive a sociedade, estejamos mais preparados para enfrentar esse desafio”, diz.
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Desde que o presidente da República subiu em palanques no Rio de Janeiro e em São Paulo no último 7 de Setembro os ataques ao Supremo e a seus ministros cresceram de intensidade. A partir daquele evento, no qual insultou frontalmente os ministros Alexandre de Moraes e Roberto Barroso, que então ocupava a presidência do Tribunal Superior Eleitoral, o mandatário passou da palavra à ação.
Prometeu descumprir decisões vindas do ministro Moraes, não por acaso relator dos inquéritos que apuram a ação de milícias digitais, acusadas de espalhar mentiras para tumultuar o ambiente político, e que será o presidente do TSE no período eleitoral.
O ápice da investida presidencial aconteceu em abril, quando o STF, por 9 votos a 2, condenou o deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) a oito anos e nove meses de reclusão e, em consequência, à perda do mandato e a suspensão de direitos políticos enquanto durarem os efeitos da condenação.
Silveira, um deputado obscuro eleito em 2018 na esteira do bolsonarismo, dedicou seu mandato a cumprir o manual dos seguidores do presidente. Entre outras manifestações, defendeu o retorno do Ato Institucional 5, instrumento da ditadura militar, para promover a cassação de ministros do STF, com referências aos militares e aos ministros, visando a promover uma “ruptura institucional”. Também incitou a população, por meio de suas redes sociais, a invadir o Supremo.
Troca de direção: Luiz Fux encerra mandato em setembroNelson Jr./SCO/STF
E passa o comando da corte para a ministra Rosa WeberRosinei Coutinho/SCO/STF
Em atitude inédita, fez publicar no Diário Oficial da União um decreto que concede o benefício da graça (perdão de pena judicial) ao parlamentar, em ato fortemente contestado pela comunidade jurídica. Em sua sanha para atingir o Judiciário, o presidente da República entrou com ação no próprio STF contra Alexandre de Moraes por suposto abuso de autoridade como condutor dos inquéritos que o atormentam e ameaçam seu futuro político. Rejeitada a ação no Supremo, o presidente recorreu ao procurador-geral da República, que também considerou inepta a ação.
Apesar dos ataques ao Judiciário, as próprias ações e omissões do governo federal acabaram dando protagonismo ao Judiciário. O melhor exemplo disso deu-se no enfrentamento à crise sanitária provocada pela epidemia de covid-19, quando o STF estabeleceu a base jurídica segura para a aplicação das políticas públicas necessárias, no rastro do vácuo político aberto com a falta de ação do Executivo e também do Legislativo. O Supremo governou.
Nada mais crucial para a volta à normalidade do que controlar a disseminação do vírus. Com o início da campanha de vacinação contra a covid-19 no país, o ministro Ricardo Lewandowski concedeu liminar ainda em janeiro de 2021 e impediu a União de se apropriar dos instrumentos para a imunização, como agulhas e seringas, que foram contratados pelo estado de São Paulo.
No seu entendimento, o governo federal não tinha o direito de se apropriar de bens ou serviços providenciados por um estado ou município, pois isso fere a autonomia constitucional dos entes da federação. “A incúria do governo federal não pode penalizar a diligência da administração estadual, a qual tentou se preparar de maneira expedita para a atual crise sanitária”, afirmou. Em março, a liminar foi referendada pelo Plenário.
Foi só o começo de uma série de decisões do STF nesta área, que fizeram do tribunal um gestor das ações no combate à disseminação da doença. O Supremo passou, efetivamente, a determinar o rumo do que tinha que ser feito, apesar do negacionismo do governo.
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As estatísticas do STF são eloquentes. Até o início de maio de 2022, a corte examinou 10.622 processos e proferiu 14.071 decisões relacionados ao tema covid – da questão de vacinas ao referendo às decisões tomadas pelos governos estaduais e municipais para gerir os procedimentos a serem adotados durante a epidemia. À União coube a coordenação geral dos protocolos, função que se tornou mais um ponto de atrito entre o Executivo e o Judiciário. O presidente da República passou a difundir a ideia de que não assumia o controle do combate à epidemia porque estaria sendo impedido pelo STF.
Ainda no início de 2021, o Supremo decidiu, por 9 a 2, que estados e municípios poderiam restringir celebrações religiosas presenciais, como cultos e missas, durante a epidemia do coronavírus. A maioria do Plenário entendeu que a liberdade de professar religião em cultos não é um direito absoluto e pode temporariamente ser restringida para assegurar as garantias à vida e à saúde.
“O Brasil, que já foi exemplo em importantes atividades de saúde pública, como política de vacinação, atualmente é o líder mundial em mortes diárias por covid-19. Em números aproximados (e uso aqui os mais conservadores), temos cerca de 2,7% da população mundial, mas 27% das mortes por covid-19 que ocorrem no planeta dão-se aqui, sob nossos olhos”, disse o ministro Gilmar Mendes em seu voto.
Uma das iniciativas mais importantes veio em abril de 2021. No início daquele mês, a crise sanitária no país causada pela epidemia de covid-19 estava em um dos seus piores momentos, batendo recordes de mortes diárias e de casos de infecção. Nesse contexto, o ministro Roberto Barroso determinou, liminarmente, que o Senado adotasse as providências necessárias para a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar eventuais omissões do governo federal no enfrentamento da epidemia. Vista como “política” e de interesse apenas da oposição, a CPI, que funcionou no Senado durante quase seis meses, começou titubeante, mas sua agenda acabou se impondo, mostrando as omissões do governo e enveredando por casos escabrosos de corrupção na compra de imunizantes no âmbito do Ministério da Saúde.
Diálogo institucional: na comemoração dos 15 anos da repercussão geral, presidente do Supremo exortou a almejada reverência dos tribunais aos precedentes jurisprudenciaisNelson Jr./SCO/STF
A epidemia, paradoxalmente, representou uma oportunidade para que a corte levasse em frente uma de suas prioridades: o Supremo Tribunal Federal 100% digital. No relatório de atividades de 2021, o presidente Luiz Fux assinala que há cerca de dois anos essa meta se tornou objeto das peças de comunicação externa da corte. “À época, a virtualização total foi vista como ambiciosa e de difícil concretização no curto prazo. No encerramento de 2021, o STF 100% digital é o retrato da realidade”, escreveu. Citou os seguintes marcos: 94% dos serviços administrativos prestados aos jurisdicionados têm canais de atendimento virtual; e 98,5% das tarefas do trâmite processual são realizadas em sistemas informatizados.
O uso do Plenário Virtual foi marcante. Em um período no qual o STF não promoveu sessões presenciais, em cumprimento aos protocolos de enfrentamento e aos planos de contenção da epidemia de covid-19, as sessões virtuais, somadas às telepresenciais, possibilitaram a continuação da prestação jurisdicional da corte. Com a Emenda Regimental 53, de 18 de março de 2020 – que praticamente coincide com o início da epidemia no Brasil –, houve ampliação da competência do PV, com a equiparação do plenário físico ao virtual.
As alterações normativas refletiram na proporção de decisões proferidas pelo STF por meio do Plenário Virtual. Em 2019, o tribunal havia proferido 81,9% de suas decisões colegiadas em ambiente virtual; em 2020, esse percentual elevou-se para 95,5%; e, em 2021, até 30 de junho, o quantitativo havia alcançado 98,4%. Nos nove meses anteriores à epidemia, o percentual de utilização do PV em decisões colegiadas foi de 80,3%, contra 97,6% nos nove meses posteriores.
O Supremo fechou 2021 com o menor acervo processual em 22 anos. O relatório de atividades da corte, com dados atualizados até 31 de dezembro, mostra que, naquela data, 24.082 processos estavam em tramitação, número 8% menor do que o de 2020. Em comparação com o resultado consolidado em 2016, a redução acumulada é da ordem de 58%. Do total do acervo, 10.301 processos são ações originárias (42,77%) e 13.781 processos recursais (57,23%).
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Entre os vários fatores que explicam a queda do acervo, o ministro Luiz Fux destaca um. Segundo ele, o advento do Código de Processo Civil de 2015 representou uma mudança paradigmática nos padrões de litigância do país. Por exemplo, o CPC/2015 conferiu maior relevância aos mecanismos adequados para resolução de disputas como a mediação, a conciliação e a arbitragem. Além disso, estimulou a criação de uma cultura de precedentes por meio de institutos jurídicos como o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR). “Essas previsões normativas caminham no sentido de garantir um acesso responsável à Justiça, impondo ônus às ações frívolas e fomentando a duração razoável dos processos em tramitação”, comenta o presidente da corte.
No caso específico do STF, os filtros de acesso previstos na legislação, as súmulas (vinculantes ou não) e os critérios jurisprudenciais estabelecidos para determinadas classes processuais têm auxiliado a corte a reduzir seu acervo e otimizar o trabalho. “Cada vez mais, o STF se torna uma corte responsável por teses constitucionais relevantes para todos os cidadãos brasileiros, e não por demandas individuais”, afirma Fux.
As estatísticas mostram que o STF recebeu 77.449 processos em 2021, um aumento de 3% em relação a 2020. O total é inferior aos anos anteriores, em que recebeu entre 90 mil e 100 mil processos. Do total de recebidos, 23.268 são ações originárias (30,04%) e 54.181 processos recursais (66,96%). Ao longo de 2021 foram quase 100 mil decisões, 84,3% delas monocráticas. Além disso, houve um total de 77.571 processos baixados. A maior parte dos processos do acervo trata de temas do Direito Administrativo e outros temas de Direito Público, com 39,9% do total. Em seguida, vêm o Direito Processual Penal (13,8%) e o Direito Tributário (11,1%). Durante o ano foram realizadas 79 sessões plenárias ordinárias (38) e extraordinárias (41), presenciais ou por videoconferência e 64 processos foram julgados.
Em março, o país foi surpreendido pela decisão do ministro Edson Fachin que reconheceu a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba e do juiz Sergio Moro para processar e julgar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos casos do tríplex do Guarujá (SP) e do sítio de Atibaia (SP) e em duas ações envolvendo o Instituto Lula.
Além de anular as condenações do petista e de restituir-lhe seus direitos políticos, a decisão significou o enterro da famigerada “operação lava jato”, uma cruzada que o então juiz Sergio Moro em conluio com membros do Ministério Público Federal empreendeu com a suposta intenção de exterminar a corrupção na Petrobras e no Brasil. Em seu voto, o ministro Edson Fachin demonstrou que não havia conexão entre os supostos crimes atribuídos a Lula e a investigação de atos de corrupção na Petrobras.
A pá de cal na operação foi dada pela 2ª Turma do STF, ao decretar a suspeição de Moro para julgar os processos contra o ex-presidente Lula. Os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski votaram por reconhecer a parcialidade de Moro. Mendes afirmou que, enquanto esteve à frente da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, Moro interferiu na produção de provas contra acusados, dirigiu as investigações do MPF e juntou documentos de ofício, sem manifestação do órgão. Em junho, o Plenário confirmou a decisão da 2ª Turma.
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A poucos meses das eleições gerais de outubro, o STF vive um momento delicado, talvez o mais complicado politicamente nos últimos anos. Com o Judiciário sob permanente ataque partindo principalmente do chefe de outro poder – no caso o Executivo, com o presidente Bolsonaro à frente –, a corte terá meses difíceis pela frente, como admite o decano Gilmar Mendes.