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ORGANIZADO POR COMISSÕES DE DIREITOS HUMANOS, EVENTO NA UFF ABORDOU TEMAS COMO RACISMO, MISOGINIA, HOMOFOBIA E PERSEGUIÇÃO RELIGIOSA

Realizado pelas comissões de Direitos Humanos da Seccional e da OAB/Niterói, o evento “Intolerância e crimes de ódio” reuniu diferentes lideranças sociais na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), no bairro do Ingá, em Niterói, na noite de terça-feira, dia 26, e debateu questões como racismo, violência contra a mulher e intolerância religiosa às vésperas das eleições presidenciais. 

“Conversando com o pessoal da UFF, surgiu uma pergunta que nos faz refletir”, contou o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária (CDHAJ) da OABRJ, Álvaro Quintão na abertura do evento.


“A política é capaz de combater o ódio? Muita gente diz que política não se discute e isso vem das elites dominantes, das pessoas que não querem ter seu poder questionado. Normalmente quem defende esse tipo de visão é quem quer manter as coisas sempre como estão. Eu acho que a política precisa ser discutida, especialmente em um momento como o que enfrentamos, em que o ódio vem sendo disseminado diariamente por pessoas que deveriam usar o espaço político para combater todo tipo de discriminação. Aqueles que durante muitos anos não tiveram coragem de expressar o ódio, hoje se sentem politicamente representados e vão às ruas”.


Na primeira mesa, sob a mediação da coordenadora do Grupo de Trabalho de Intolerância e Crimes de Ódio da Comissão de Direitos Humanos da Seccional, Sônia Ferreira, um painel de palestrantes femininas discutiu a violência de gênero e a atuação das forças policiais em comunidades carentes do Rio de Janeiro. 

“Eu não suporto a palavra ‘intolerância’”, afirmou, no início de seu discurso, a presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/Niterói, Andréa Kraemer. “‘Intolerância’ é derivada do verbo ‘tolerar’, e não acho que ninguém deva simplesmente tolerar ninguém. Todos nós temos que nos respeitar. A política hoje virou o berço da violência. Estamos vivendo a violência da fome, da falta de políticas públicas, especialmente para o povo preto, pobre e periférico, para as mulheres e a população LGBT+. Temos movimentos sérios que atuam e lutam, mas precisamos de remédios que sejam efetivos, e não paliativos”.

Completaram o painel a professora e ex-vereadora Walkíria Nichteroy; a fundadora da ONG Superação da Violência Doméstica, Marilha Boldt, e a procuradora da CDHAJ, Mariana Rodrigues, que falou sobre a violência do Estado contra populações mais vulneráveis, citando a atuação da comissão em casos como o das mortes da menina Ágatha Félix e da jovem Kathlen Romeu, baleada durante operações policiais no Complexo do Alemão e no Complexo do Lins, em 2019.  “Na entrega da carteirinha da Ordem juramos defender o Estado democrático de Direito e os direitos humanos, então não fazemos favores”, afirmou Mariana.
 

“Essa é uma obrigação da OABRJ. Cerca de 80% das demandas que chegam à comissão são demandas de violências estatais, sejam de violência policial ou de ações em postos médicos e hospitais públicos. Quando recebemos a notícia de uma morte de uma criança em ações policiais, sempre que chegamos há lá uma mãe. E quase sempre é uma mãe preta, pobre e desamparada. É muito comum imaginar a violência de Estado somente pensando nos policiais atirando com fuzis nas comunidades. Mas o Estado não está no IML, no hospital, não há qualquer assistência às vítimas. Isso também não é violência por parte do Estado? Quando uma mulher é agredida dentro de casa e vai até a Delegacia da Mulher ser atendida por um homem que traz todas repetições sociais do conservadorismo, isso também não é violência de Estado? Como pedir às vítimas que procurem delegacias para registrar ocorrências se o próprio processo de registro é enormemente revitimizador?”.  


Na visão da procuradora, a intolerância é a principal força por trás de políticas que colocam em risco as vidas de grupos minoritários e populações periféricas.

“Todos os casos de violência de Estado em que atuamos deveriam estar combinados com a pauta de intolerância e crimes de ódio”, declarou Mariana. “Sempre que há uma chacina, recebemos pedidos de ajuda porque há idosos que querem descer até o posto médico e não conseguem, ou crianças que foram alvejadas por tiros que perfuraram as portas de suas casas. É só ver de onde esses pedidos vêm. Eles não vêm de áreas mais ricas. Isso não acontece na Av. Vieira Souto. Se isso não é a prova máxima de um movimento reafirmado de intolerância estatal que vem dos mais altos escalões do governo, eu não sei dizer o que é”.
 

Compromisso reafirmado pela defesa dos direitos humanos

 

Comandado por Walkíria, o segundo painel, que discutiu temas como o racismo estrutural e a intolerância religiosa, contou com a participação da diretora do Centro Gênesis e pesquisadora da UFF, Lourdes Brazil; da procuradora da Advocacia-Geral da União (AGU), Luciene Saldanha; da presidente da Comissão da Igualdade Racial da OAB/Niterói, Jaqueline Cristina; do ex-presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, Rodrigo Mondego, e do vereador e presidente da Comissão de Cultura da Câmara de Vereadores de Niterói, Leonardo Giordano.

“Nós saímos da senzala para os subúrbios, as favelas e as periferias”, afirmou Jacqueline Cristina. “Existe muita gente boa falando sobre racismo estrutural e cobrando ações, mas preferi tentar levar informação e consciência às pessoas, porque a maioria da população periférica não sabe que tem direitos, não sabe que pode frequentar qualquer espaço. O racismo estrutural também está no fato de 55% dos mortos na pandemia serem pretos contra 38% brancos. É importante discutir o que todos nós podemos fazer para levar essa conscientização. Esse é o compromisso que devemos ter. O de transformar pesadelos em sonhos e fazer com que os negros deixem de acreditar que servem apenas para servir e entendam que servem para ser o que quiserem”.

Clamores por um maior comprometimento na luta contra a intolerância também marcaram o discurso de Rodrigo Mondego, que falou sobre o longo histórico de preconceito estrutural arraigado na sociedade brasileira. “Lembro-me que Débora Maria da Silva, líder das Mães de Maio, certa vez disse à então presidente Dilma Roussef, uma ex-guerrilheira: ‘Vocês derrotaram a ditadura. A ditadura militar acabou no Brasil. Mas o Brasil esqueceu de avisar isso à Polícia Militar’, afirmou Mondego.

“No campo e nas favelas, o Estado de Exceção nunca deixou de existir. Hoje, 40% das pessoas que estão presas no Brasil estão presas sem o trânsito em julgado e a esmagadora maioria dessa população tem cor e tem CEP. São pessoas negras das favelas, muitas vezes presas de maneira arbitrária, ilegal e sem fundamento. O Estado brasileiro categoriza e sempre categorizou seres humanos. Este é um país no qual, há 140 anos, uma pessoa branca poderia possuir uma pessoa preta; no qual, há 70 ou 80 anos, uma pessoa poderia ser presa por estar vestida com a indumentária das religiões de matriz africana, e apenas há dois anos, a indumentária apreendida na época passou a ser devolvida, mais de trinta anos depois da Constituição cidadã de 1988. A chamada legítima defesa da honra, que permitia que um homem matasse uma mulher caso sentisse ciúmes, felizmente caiu em desuso, mas nenhum legislador até hoje disse que ela não poderia ser invocada sob hipótese alguma. Há dez anos, companheiros homossexuais não tinham direito à herança porque o Estado brasileiro determinava que essa relação era inferior a outras”.

O advogado também abordou o tema dos privilégios da população branca em sua fala, exortando a sociedade a tomar posturas mais sólidas no combate à intolerância.

“O Estado que hoje começa a criar estruturas e mecanismos é o mesmo que ajudou a fomentar o espírito de ódio”, declarou Mondego. “É muito legal falar bonito para todo mundo ou fazer uma postagem com um arco-íris no Facebook. Mas nós, que falamos de um espaço de privilégio, temos que ir muito além da mera verbalização. Quando há uma chacina, temos que nos colocar na frente porque somente a nossa presença é capaz de impedir mais mortes. Isso é um privilégio e na luta por uma sociedade melhor temos que ser solidários de fato e ter atitudes concretas, caso contrário, tudo será em vão”.