"UM DOS DILEMAS DO DIREITO PENAL É FOCAR SÓ NA REPRESSÃO E NÃO NA PREVENÇÃO"
Em casos de violência sexual, há muito menos de libido na origem do delito e muito mais de cultura e poder. A satisfação de cunho sexual é o que conta menos, pois o criminoso vê a mulher como um objeto do qual pode dispor como bem entender.
A opinião é da desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo Ana Paula Zomer, especialista em criminologia. Ela foi procuradora do Estado por 33 anos e tomou posse na corte paulista em novembro de 2021, indicada pelo quinto constitucional da advocacia. Em entrevista à ConJur, Zomer falou sobre a transição para a magistratura e a contribuição de procuradores do Estado ao Judiciário.
Pós-graduada em Criminologia pela Scuola di Specializzazione in Criminologia da Università Degli Studi di Milano, na Itália, e doutora em Criminologia e Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), a magistrada também falou sobre os desafios e dilemas do Direito Penal, o combate à corrupção e a escalada de denúncias de violência contra a mulher.
"Um dos grandes dilemas do Direito Penal é continuar focando exclusivamente na repressão. Nós nos habituamos a uma vertente voltada para o momento posterior ao do cometimento do delito, quando deveríamos, por infinitas razões, concentramos mais esforços na sua prevenção. Toda vez que se previne um delito, uma vítima deixa de existir, assim como danos individuais e sociais", afirmou ela.
Leia a seguir a entrevista:
Conjur — A senhora foi procuradora do Estado por mais de 30 anos e se tornou desembargadora em novembro de 2021. Por que decidiu ingressar no Tribunal de Justiça de São Paulo?
Ana Paula Zomer — Fui procuradora do Estado a minha vida toda, inclusive como estagiária. Ingressei na Procuradoria aos 23 anos e nela permaneci por 33 anos. A vontade de vir para o tribunal nasceu no momento em que houve a cisão das duas carreiras, Defensoria e Procuradoria-Geral do Estado, que se deu com a criação da Defensoria Pública. Optei por ficar na Procuradoria e fui trabalhar na Procuradoria de Procedimentos Disciplinares, que nada mais é do que um tribunal administrativo, responsável por julgar casos de irregularidades, frequência irregular e abandono de cargo ou função cometidos por funcionários das várias secretarias de Estado. Foi exercendo essa função, e partindo da perspectiva de que, se bem analisados os dois lados de uma controvérsia, aquele que julga tem concretas condições de fazer um trabalho profícuo em prol da sociedade, que comecei a trilhar o caminho do quinto constitucional.
Conjur — Qual a principal contribuição que um procurador do Estado pode dar ao TJ-SP?
Ana Paula Zomer — Sou suspeita para falar da Procuradoria, que foi a minha carreira desde cedo e, estou convicta, presta um serviço da maior relevância para a população. Seus integrantes têm uma qualificação diferenciada. São profissionais bem formados, sérios e que zelam pela legalidade, pela coisa pública, e pela Administração em geral, assim contribuindo com o bom andamento da máquina e do sistema judiciário como um todo.
Conjur — A senhora é especialista em criminologia. Na sua opinião, quais são os principais desafios e dilemas do Direito Penal atualmente?
Ana Paula Zomer — Um dos grandes dilemas do Direito Penal, no meu sentir, é continuar focando exclusivamente na repressão. Nós nos habituamos a uma vertente exclusivamente voltada para o momento posterior ao do cometimento do delito, quando deveríamos, por infinitas razões, concentrar mais esforços na sua prevenção. Toda vez que se previne um delito, uma vítima deixa de existir, assim como danos individuais e sociais. É muito mais econômico, sob todos os pontos de vista, prevenir o delito do que administrar sua manifestação. Os números são claros. Embora, por óbvio, tenhamos de continuar repreendendo os crimes que sempre acontecerão, por melhor que seja a sociedade na qual estejamos inseridos, já não é sem tempo que a prevenção ganhe espaço efetivo e caminhe ombreada com a repressão no combate ao delito. Os índices de reincidência após o cumprimento de penas privativas de liberdade evidenciam que só a repressão não tem sido bastante para minorar a violência que nos assola cotidianamente. Se só a repressão não tem nos permitido viver em segurança, tampouco nossas famílias, creio ser válida a implementação de outras políticas em busca desse almejado e necessário fim, isto é, paralelamente às sanções penais, é preciso investir em estruturação das condições familiares, sociais, e de educação. Bases sólidas nesses quesitos costumam gerar possibilidades de inserção profícua no mercado de trabalho e uma sensação de pertencimento e respeito pelo lugar ao e no qual se vive. Não é comum que pessoas nessas condições optem por uma carreira criminal.
As políticas de prevenção, necessariamente, passam muito mais pelo extrapenal do que pelo penal, por fazer com que as pessoas tenham mais oportunidades de não se voltarem para a criminalidade. Isso não quer dizer que não é preciso ter penas e punições. Mas, se só há políticas de repressão, o inchaço do sistema carcerário é inevitável. Já somos a terceira população que mais prende no mundo. Este é o grande norte: prevenção e repressão precisam andar em paralelo.
Conjur — A senhora acredita que há uma supervalorização de casos de corrupção em relação a questões mais reais do dia a dia da população, como furtos e tráfico de drogas?
Ana Paula Zomer — De forma alguma. A corrupção é a mazela que está na origem de uma série de problemas de envergadura que assolam nosso país. Explico: é através dela, a corrupção, que determinados grupos, que jamais teriam a possibilidade de cometer crimes de cunho econômico-financeiro, se aliam a pessoas que infelizmente não honram seus cargos, e, por meio delas, conseguem ter acesso a determinados favores e instituições aos quais nunca lograriam, não fosse através do vínculo que a corrupção cria. O problema é que os chamados 'crimes de colarinho branco', e o termo vem da criminologia, mais precisamente de Sutherland, historicamente foram relegados a segundo plano no Brasil, e há bem pouco tempo começaram a ser efetivamente punidos. Esses delitos podem ser muito mais graves e causar muito mais danos do que aqueles que constituem uma violência explícita. O chamado Estado paralelo, a meu ver, é, em verdade, uma facção criminosa que, perniciosamente, se instala dentro do chamado establishment através da corrupção. Por conseguinte, bani-la é uma prioridade vital.
Conjur — Como a senhora vê a discussão entre juiz legalista x juiz garantista?
Ana Paula Zomer — Trata-se de uma discussão que não soma ao Poder Judiciário. Uma das grandes honras que tive na vida foi ser convidada, juntamente com outros profissionais da área, a traduzir a obra de Luigi Ferrajoli "Direito e Razão — Teoria do Garantismo Penal". Como sabido, o garantismo tem seus enunciados ou axiomas próprios. Ocorre que, muitas vezes, de uma maneira pouco substanciosa, tenta-se equipará-lo ao abolicionismo, ou, na melhor das hipóteses, a uma intervenção insipiente do Estado-juiz. Tal posicionamento é injusto e desprovido de verdade, eis que o juiz garantista, em brevíssima síntese, nada mais é do que aquele que aplica a lei de acordo com a Constituição vigente e observa o devido processo legal, bem como os seus corolários lógicos.
Recuso-me a imaginar que dentro do maior Tribunal de Justiça do país exista algum juiz que não aja dessa forma. Afirmar que um magistrado não é garantista porque eventualmente sopesou uma sanção acima do mínimo legal é um erro, e, sob a minha ótica, fomenta animosidades absolutamente desnecessárias. Aliás, Ferrajoli, citando Max Weber, pondera que, no garantismo, o que não podemos admitir é a manifestação da condição íntima, por intermédio de uma afirmação ou negação, sem nenhum limite legal preventivo, ou despida de uma motivação completa do fato; explica que os adeptos da corrente abolicionista não reconhecem justificação no Direito Penal. Portanto, confundir garantismo com abolicionismo externa um equívoco terminológico e filosófico que não se sustenta.
O modelo garantista descrito por Ferrajoli requer dez condições para sua implementação; entre elas, podemos citar que não se admite qualquer imposição de pena sem o cometimento de um delito; que este tenha sido legalmente alçado a tal categoria; a necessidade de sua proibição e punição; seus efeitos lesivos para terceiros; a imputabilidade de seu autor; a culpabilidade do mesmo; que a acusação produza suas provas perante um juiz imparcial, em um processo público e contraditório, em face da defesa. A meu ver, essa divisão entre garantista x legalista, além de não ir ao encontro do jurisdicionado, presta um desserviço ao sistema de Justiça como um todo.
Conjur — A violência contra a mulher é um tema muito atual e que tem chamado atenção pelo número crescente de casos. Como a senhora vê essa escalada de denúncias?
Ana Paula Zomer — Os casos, em princípio, aumentaram durante a pandemia, pois, em 80% deles, os algozes estão dentro de casa, e, na medida em que as mulheres ficaram confinadas em seus lares, juntamente com seus potenciais agressores, o incremento foi de 30% nas ocorrências, infelizmente. Em geral, as denúncias aumentaram porque, a partir do advento da Lei Maria da Penha e com as campanhas de conscientização sobre o tema, as antigas cifras obscuras foram paulatinamente desnudadas. Aquelas violências de espectro psicológico, físico, patrimonial, sexual, que aconteciam sem serem denunciadas, eis que as mulheres não se sentiam amparadas o suficiente para discorrerem sobre elas, começaram a vir à tona, como resultado de um lento processo de conscientização das vítimas de que podiam e deviam fazer algo por si próprias e de que encontrariam guarida. E obviamente, por conseguinte, as denúncias cresceram.
Nos casos de violência de cunho sexual, o estudo da criminologia demonstra que há muito menos de libido na sua gênese do que de cultura e poder. O que quero dizer com isso é que a razão de ser desse tipo de delito, diferentemente do que intuitivamente se supõe, guarda relação diminuta com a satisfação de cunho sexual, se comparada com o exercício de poder sobre o objeto que a mulher constitui para tal criminoso. O delinquente com esse perfil vê a mulher como um objeto do qual pode dispor como bem entender. Dou um exemplo: há casos de castração química em que homens continuam praticando abuso sexual com instrumentos pérfuro-contundentes, revelando o acerto dessa hipótese criminológica. Ao agredir uma mulher, molestá-la psicologicamente, tirar-lhe os bens materiais ou violar sexualmente, você nada mais faz do que retirar-lhe a humanidade, vale dizer, a condição de ser humano. Está dispondo dela como algo inanimado. Isso desenha um inequívoco cenário de poder, e não de desejo.
Outra ideia incorreta é a de que todo autor de delito sexual é inexoravelmente um louco. Essa postura guarda compreensível relação com a nossa necessidade de nos diferenciarmos daquela pessoa, sendo oportuna a lembrança do que Erving Goffman escreveu em "Manicômios, Prisões e Conventos". Faço tal afirmação porque, ao exame clínico, a maioria desses algozes se revela plenamente imputável, ou seja, tem capacidade de compreender o caráter da sua ação e de se autodeterminar de acordo com esse entendimento. Estima-se que os inimputáveis não excedem a 10%. Ocorre que fatos desse quilate nos agridem sobremaneira, e, assim, tendemos a chamar de loucos criminosos plenamente imputáveis, cuja capacidade para exercer o mal nos choca em demasia.
Conjur — A senhora citou que as denúncias aumentaram. Isso decorre de uma maior consciência das mulheres a respeito dos diferentes tipos de violência?
Ana Paula Zomer — Ainda hoje, muitas mulheres sequer percebem que estão em estado de violência. As campanhas de conscientização são primordiais, assim como compreender que nenhuma mulher está em um relacionamento abusivo porque quer. É corriqueiro que ela necessite de auxílio para deixar uma relação desse tipo. Em toda espécie violência está embutida uma de cunho psicológico. Obviamente ela pode existir de forma isolada, mas está presente em todas as demais formas de violência. As campanhas de conscientização fazem com que muitas mulheres percebam que estão inseridas em um relacionamento destrutivo, que, não raro algumas imaginam como absolutamente normal.
Conjur — Às vezes ela só vai perceber anos depois...
Ana Paula Zomer — Estudos norte-americanos mostram que um número expressivo de mulheres que sofrem violência sexual praticada por conhecidos se sente em culpa por ter sido abusada. Tarana Burke, precursora do projeto Me Too, deu início ao movimento exatamente para que, em exercícios de catarse, moças violentadas sexualmente pudessem falar da sua experiência e notar que outras também passaram por isso. Na medida em que expunham e trocavam suas tristes histórias, iam se libertando dessa sensação de que, de algum modo, haviam concorrido para o acontecimento trágico, e passavam a entender que eram apenas vítimas, sem qualquer culpa a carregar. Pontuo que quando o agressor era um desconhecido esse mesmo sentimento não se verificava.
Conjur — Você fica pensando o que fez de errado...
Ana Paula Zomer — O que você fez de errado para ter acontecido isso? É muito grave porque, partindo da premissa de que 80% dos potenciais agressores estão dentro de casa, a cifra de meninas nessa situação é muito grande. A conscientização é fundamental, e, mais uma vez, entra naquele conceito que a gente falou lá atrás, de prevenção. Prevenção, cultura, educação são fatores cujo grau de funcionalidade é muito mais eficaz do que aquele que se verifica depois que o mal já aconteceu.