'HCS NO REGIME MILITAR FORAM AS CAUSAS DE QUE MAIS ME ORGULHO', DIZ ARNOLDO WALD
O Brasil já teve e tem grandes nomes do Direito: Rui Barbosa, político, diplomata e estadista; Pontes de Miranda, versado em Matemática, Ciências Sociais, Filosofia e política; Sobral Pinto, humanista, arauto do iluminismo que enfrentou tempos perigosos — nem tanto quanto Luiz Gama, que driblou a escravidão e tornou-se patrono do abolicionismo brasileiro.
Comparar advogados, assim como juízes e jornalistas, é delicado. Ninguém é bom em tudo. Aos olhos da multidão, os criminalistas sempre têm mais relevo. Não por acaso. O produto do seu trabalho é a vida e a liberdade. A engenharia jurídica que viabiliza obras, soluções monetárias ou financeiras, destrincha intrincadas questões — em última análise, destrava o desenvolvimento — reverbera menos.
Unanimidade não há. Mas nenhum outro chegou tão perto, no campo cível, quanto Arnoldo Wald — que acaba de completar 90 anos, 70 de advocacia. Ele passeou de mãos dadas, durante essas décadas, com a Justiça, com a Economia, com a História e pontificou como nenhum outro na tecnologia de ponta do Direito.
Na segunda parte de sua entrevista (clique aqui para ler a primeira), ele narra algumas passagens dos movimentos importantes que viveu na defesa de perseguidos políticos e dos planos econômicos que estabilizaram o país. E como fez para evitar, no Brasil, a repetição do crash de 1929, que levou os Estados Unidos à lona. Não por acaso, a solução encontrada — o Proer — seria depois copiada pelos americanos.
Leia a segunda parte da entrevista de Arnoldo Wald:
ConJur — Professor, quais as causas das quais o senhor mais se orgulha?
Arnoldo Wald — Eu me orgulho mais das decisões que eu tive em Habeas Corpus, porque são as mais importantes para a sociedade brasileira. As outras são importantes do ponto de vista econômico, do ponto de vista social, mas não do ponto de vista daquele momento na ditadura.
ConJur — O senhor se refere ao Habeas Corpus de 1964 no STM, em favor do Evandro Muniz. Esse foi o primeiro HC concedido depois de 1964? E a primeira liminar em HC, não?
Arnoldo Wald — Foi a primeira liminar em Habeas Corpus, porque até aquela época não havia razão para ter liminar em HC. Você entrava com pedido e em cinco dias a autoridade tinha de decidir. Quando veio o regime militar, a autoridade não falava, não dava notícia e o processo ficava parado, e o sujeito podia ficar preso. Então não havia liminar em Habeas Corpus, e, quando eu falei em liminar com os ministros da Justiça Militar, eles disseram: "Mas isso não está na lei brasileira". Eu disse: "Não, mas o mandado de segurança é o filho do Habeas Corpus, o HC foi que deu ensejo ao mandado de segurança. E no mandado de segurança tem a liminar, então deveria ter também no Habeas Corpus". "Mas não teve até agora", responderam. Argumentei: "Não teve até agora porque não houve necessidade. Não havendo necessidade, por que nós íamos criar mais um momento processual? Mas, agora, quando a autoridade não responde e o réu está preso, a situação mudou. Então o juiz dá a liminar e depois vê a informação quando vier, e continua, mas já com o paciente livre".
E aí foi o almirante de esquadra no STM, que ainda era no Rio de Janeiro, que me disse: "Olha, o seu raciocínio me parece lógico”. Respondi: "Se o senhor der a liminar vai ser o argumento de autoridade, e não somente um argumento lógico". Aí ele deu a liminar, na semana seguinte levou ao Plenário. Se fosse um ministro civil talvez não tivesse a mesma receptividade, mas era ministro militar, almirante de esquadra.
E o segundo caso foi até mais complicado, um pouquinho porque foi no Supremo Tribunal Federal, em favor do antigo governador do Amazonas Plínio Coelho, que estava fugindo de ameaças e prisões na Amazônia e estava se escondendo por lá e não conseguia sair. E um amigo dele me procurou. Eu disse que não fazia Habeas Corpus, mas me disseram que nenhum advogado queria pegar o caso.
Aí eu pedi o HC ao Supremo e no dia em que ia proceder o julgamento, o relator me chamou e me disse: "Doutor Wald, tem um caso seu aí em que o senhor pode me ajudar?". E eu disse: "Certamente, com muito prazer e muita honra". "Pois é, eu quero que o senhor me garanta que se o Supremo der a ordem, ela vai ser cumprida na Amazônia", que naquela época era uma área relativamente militarizada e o Supremo não tinha certeza de ver as suas ordens cumpridas.
"Professor, o problema é seu. Se o senhor me disser que garante, nós vamos dar o Habeas Corpus, se o senhor não me disser, nós vamos denegar por unanimidade, porque o presidente Ribeiro da Costa disse que se houvesse uma ordem do Supremo não cumprida ele ia pegar a chave do Supremo e ia devolver ao presidente da República. E aí o senhor e eu ficaremos sem função". O que nós íamos fazer? "O senhor tem dez minutos, eu vou tomar café e quando sair do café, o senhor me diz a solução que encontrou." Foram os dez minutos mais duros da minha profissão porque...
ConJur — E o telefone naquela época era difícil...
Arnoldo Wald — Era difícil e não tinha para quem telefonar, pensei: "Se eu prometer ao Supremo e não cumprir, terei mentido ao Supremo. Se disser ao Supremo que não posso fazer nada, o meu cliente vai ser condenado à morte praticamente e eu, como advogado, não cumpri a minha missão". Então foram realmente uns dez minutos em que não tomei nem café, não consegui fazer nada a não ser pegar o Vade Mecum e dizer: "Quem sabe se eu encontro algum segredo aí". E aí vi que em certos casos, que não eram comuns, o tribunal poderia convocar o paciente. Então no fundo, se ele convocar o paciente, de duas uma: ou vão obedecer ou não vão obedecer. Se não obedecerem, eu fiz o que eu podia fazer. Se obedecerem, ele chega aqui, vai fazer a defesa dele, vai esclarecer os ministros e tem as garantias constitucionais.
E essa decisão era importante, como a primeira, aliás, porque definiu que as autoridades civis não podem ser processadas pela Justiça Militar, a não ser que tenham roubado o quartel (risos), aí é diferente, mas... E aí o ministro saiu e eu disse: "Ministro, acho que encontramos uma solução". "Ah, que bom. E qual é a solução?". Disse: "O senhor determinar o comparecimento do paciente". Ele respondeu: "Eu vou levar isso ao tribunal, se o tribunal achar que pode, tudo bem". Aí eles foram para a sessão e decidiram pela convocação. Na semana seguinte ele compareceu, havia três ou quatro oficiais do exército para prendê-lo se não tivesse o Habeas Corpus. Ele pediu a palavra e deram 15 minutos, depois ele pediu mais um tempinho, falou quatro horas, convenceu o Supremo.
ConJur — Nessa época o acusado podia fazer a própria sustentação?
Arnoldo Wald — O próprio podia. Especialmente em Habeas Corpus naquelas condições. O caso era muito sui generis em todos os sentidos, mas ele foi convidado para prestar informações ao tribunal e prestou informações. Esclareceu que tinha obtido Habeas Corpus do Tribunal de Justiça do Amazonas, que não era respeitado e que o único jeito era ir ao Supremo, pela situação de insegurança e incerteza que tinha, e aí deram a medida por unanimidade.
A minha carreira de penalista acabou naqueles dois casos, mas eu acho que são os dois casos mais importantes do ponto de vista social da minha vida. Porque defendi muita gente, muita coisa, defendi muito ministro, eu ainda estou no Supremo Tribunal Federal com um caso de ação civil pública contra o ministro (Pedro) Malan e outros por terem aprovado o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer). O Proer foi um financiamento que deram, depois do Plano Real, aos bancos para reajustarem as suas situações, porque eles não tinham mais o dinheiro depositado e ficaram sem rentabilidade por três ou quatro dias, mas que naquela época representava uma parte importante da receita deles. E os ministros foram condenados por improbidade e estou no Supremo com agravo para conhecimento de embargos de declaração.
ConJur — Foi o Proer que salvou os bancos de explodirem?
Arnoldo Wald — Pois é, que salvou os bancos e o sistema monetário.
ConJur — Foi nessa época se criou o Fundo Garantidor de Crédito, não foi?
Arnoldo Wald — Todo o sistema atual foi criado naquela época.
ConJur — E teve muitas críticas na ocasião, mas depois o Brasil compreendeu...
Arnoldo Wald — Eu juntei depois uma declaração do Lula dizendo que o Proer tinha sido o que salvou o Brasil, e foi imitado pelos Estados Unidos, que o presidente dos Estados Unidos mandou fazer o Proer lá na base do nosso do Brasil. Advogado tem de utilizar todos os meios lícitos para defender o cliente.
ConJur — Conforme dados do Anuário da Justiça de 2022, o número de processos no início deste ano chegou a 80 milhões. Isso mostra uma confiança no sistema jurídico e judicial?
Arnoldo Wald — Ou uma falta de harmonia na sociedade. Eu acho que muitas ações poderiam ser evitadas pela mediação, pela conciliação, a arbitragem funciona muito como meio de levar as pessoas ao acordo, então você na realidade, em vez de levar quatro anos, seis meses depois as partes chegam à mesa e já entendem quais são os argumentos da outra parte, o que os árbitros estão vislumbrando. Tem uma técnica de arbitragem em que se parte da ideia seguinte, no fundo o árbitro tem dois cenários: O cenário do demandante e do demandado, cada um conta uma história, as duas histórias parecem não ter nada de comum, algumas vezes você diz: "Mas o que tem a ver uma coisa com a outra?". Então o tribunal deveria, algumas vezes, olhar para um terceiro cenário a partir do que cada um disse e provou. É importante sempre tentar induzir um acordo.
ConJur — O senhor atuou muito fortemente nas ações contra os planos econômicos?
Arnoldo Wald — Foi, porque na realidade no primeiro plano econômico, que foi do ministro (Dilson) Funaro (Plano Cruzado), eu era advogado do Unibanco em algumas causas e o diretor jurídico do Unibanco me ligou e disse: "Eu tenho problema de desequilíbrio entre prestações". E eu disse: "Mas eu não faço família". E ele: "Não é de família, não, é desequilíbrio entre depósitos e créditos".
Houve um juiz do Rio que, a pedido do Ministério Público, estabeleceu um teto de acordo com o qual só se poderia cobrar 12% de juros ao ano, quando a inflação estava em 40%. Aí o juiz deu a liminar e decidiu que: "Se os bancos do Rio de Janeiro — que eram cinco ou seis grandes bancos — não obedecerem, eu vou mandar prender os presidentes dos Conselhos Administrativos", que eram nada menos do que Walther Moreira Salles e Olavo Setubal, entre outros.
Os advogados dos bancos me disseram: "Bom, nós temos de fechar os bancos segunda-feira, porque nós não vamos mais poder operar e o Banco Central não quer nos deixar suspender as operações". Explicamos tudo para eles (diretores do Banco Central): "É problema de vocês", eles disseram.
Eu fui conversar com o juiz, que me disse: "Talvez eu tenha dado uma decisão muito forte, mas acabo de dar uma entrevista explicando que era uma decisão importante e não posso voltar atrás. Saiu o jornalista agora, mas eu posso voltar atrás? Não fica bem".
Aí fui ao presidente do Tribunal do Rio, que era o Wellington Moreira Pimentel, que tinha sido meu colega de faculdade: "Desembargador"... "Não me chame de desembargador, me chama de você"... "Vim aqui despachar consigo, tem essa história, vou requerer a suspensão". Ele me respondeu: "Não faça isso porque eu vou ter de mandar ouvir o Ministério Público e depois o tribunal, e acaba de acontecer o seguinte: recebi neste momento uma ligação telefônica do governador, que era o Brizola, dizendo que foi a melhor decisão que o Tribunal de Justiça deu nesses 50 últimos anos. Então eu não posso decidir rapidamente, tenho de ouvir o Ministério Público, vou levar ao Plenário, são 36 desembargadores, alguns nomeados pelo Brizola, não sei o que vai acontecer".
Eu disse: "Mas não dá, vão fechar os bancos". "Problema dos bancos" (risos). Aí voltei ao meu pessoal do escritório e disse: "Vamos tentar alguma coisa no Supremo, mas o quê? Não dá para pular as instâncias". Eu disse: "Eu acho que é um conflito de atribuições, porque o juiz se atribuiu, na realidade, o direito de fixar teto de juros, que é competência legislativa, ou então competência do Banco Central". Foi no mês de julho e o STF estava de férias. O único ministro que estava em Brasília era o ministro (Francisco) Rezek. Afinal de contas, consegui falar com ele, que me disse: "Professor, não consegue resolver os seus problemas no Rio? Em julho, é uma maldade o que o senhor está fazendo comigo". Eu respondi: "Não, a maldade fizeram comigo, agora eu preciso da sua ajuda e da ajuda da Justiça". Ele disse: "Ah, bom, então o senhor quer chegar daqui a meia hora?". Eu estava no Rio de Janeiro. Cheguei lá antes do jantar e conversei com ele: "Estou vendo que o negócio é complicado mesmo, complicado subjetivamente e objetivamente". E eu disse: "Mas eu vim aqui porque só o Supremo pode sair disso, porque é evidente o conflito".
Umas sete, oito horas da noite, tocou o telefone, a secretária já tinha o despacho, o ministro concedeu a liminar, mas disse: "Como o senhor vai conseguir comunicar isso a quem de direito é problema seu". Então eu digo: "Vou aí, pego o processo, vou ver o que eu posso fazer". O Supremo fechado, consegui ligar para o porteiro do Supremo: "Pode abrir o Supremo para mim?". Ele disse: "Abrir eu posso, estou pescando no momento, mas eu posso interromper a pescaria, já que o senhor está aí. Já veio do Rio para Brasília, eu posso ir. Mas não é suficiente, porque eu abrindo o Supremo, o que vou fazer? Tem de ter o telexista". Ainda era Telex. Encontrei o telexista na casa da namorada, fomos buscar o telexista, abrimos o Supremo em um sábado às 11 horas da noite, e mandamos o Telex, aí o sujeito telexista falou: "Pra quem eu mando?". E eu disse: "Manda para o presidente do Tribunal de Justiça do Rio, para o juiz, para o procurador-geral da Justiça, para o procurador-geral do estado, todos os gastos de telex eu pago". E eu saí de lá meia-noite e meia. Eles me ligaram e disseram: "Estamos mandando o avião da Febraban para buscá-lo, para você voltar íntegro da sua peregrinação". E, cinco anos, depois ganhei isso no Plenário, seis a cinco.